quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Um pretérito perfeito


Acabou... Quem já não experimentou a sensação de liberdade, de finalmente... ao dizer esta simples palavra? Quantas vezes dizemos acabou! e que sonoridade terrível contém esse pretérito perfeito ao estancarmos suas sílabas com espaços miúdos, nervosos, inflexíveis. Entretanto, a paixão arde apenas para satisfazer este instante que todos nós sabemos, nunca deixa de ser surpresa.

A-ca-bou! é diferente de acabou... O primeiro é dilacerante, passional, morte. Dói dizer, fere quem ouve. Mas é uma necessidade de tudo aquilo que se inicia.  Pois não representamos o mesmo ato em cenários diferentes dezenas, centenas de vezes? É necessário! Nossa condição instintiva e móvel exige a repetição daquilo que nos inquieta (bem ou mal), até a consumação, seja pelo esgotamento natural do sentimento, seja pela quebra brusca e violenta da ação. Mesmo que nos interstícios de nossos atos abusemos do imperativo acabou pensando anular o sentimento causado pela experiência, não adianta, pois só o tempo dará cabo das ramificações da ilusão.
Os amantes, somente os amantes, conhecem esta sutileza dos sentidos. Nunca se cansam de repetir acabou! para logo em seguida recomeçar tudo de novo como se fosse a primeira vez.
Há sem dúvida os senhores de si que quando dizem acabou! acabou mesmo! São de comportamento inflexível, duros, tirânicos. Chegam ao paroxismo da virilidade, orgulham-se de ser imunes à vulnerabilidade de paixões. Prudentes, desfazem-se com rapidez e sem grandes traumas dos incômodos da sedução que, para os apaixonados, são a própria existência.
São esses práticos de espírito sempre equilibrado e para quem a dúvida não conta na escalada do tempo. Têm solução para tudo que ameace a sua segurança. E se acabou, para eles não há ressurreição, Fênix. Para estes fortes, a experiência passou por longe não chegando sequer a causar um arranhão capaz de fazê-los esquecer por um segundo as convicções nem sempre sensatas.
Mas para aquele cuja vontade varia de acordo com o termômetro interno da necessidade, a verdade só chega depois de múltiplas viagens pelo território nebuloso da incerteza até um dia, cansado da batalha, esgotado da experiência, mas já endurecido pela repetição do ato que se tornou pensamento e não mais vontade, dizer, sem rancor e cheio de uma calma indiferença, acabou...

 

Ana Barros

Natal, 01/07/00

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Estranho

Estou hoje só nesta praia desconhecida
Estou hoje só e longe de casa
Dessa casa que não é nada além
De um vagar em terras conhecidas
Que carrego estranhamente
Com pés vagabundos para quem
Um terreno movediço é
Descansar do tédio que vem quando
Nada mais temos a dizer
O mendigo imundo avança sobre
O meu prato de comida:
É espírito
De novo a disputa entre o real
E o meu vergonhoso asseio
O mar – indiferente – quebra
Mais uma vez

Praia de Tambaú - João Pessoa

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Carimbo

É hábito Outra vez passo na Avenida onde dormem homens de ontem
Procuro pelos fatos que fizeram história no interior das velhas casas
e pergunto erguendo os olhos na direção das janelas cobertas de musgos
aonde foram repousar os pensamentos deitados em parapeitos tão nobres,
hoje ruínas envergonhadas entre ferros, vidro, concreto
e a burocracia demente Mas os homens despertos passam esquecidos
entre ferros, vidro, concreto e a burocracia demente, correm
na Avenida acordada, fogem dos casarões, dos fantasmas e da lentidão
que virou pó Há frenesi na Avenida,há pressa em mim que atravesso
sem ver o sinal e entro na Repartição e escrevo o mesmo despacho que
vai ser lido e carimbado por K

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Andarilho

No cemitério que cavei
Deserto: vermes, fantasmas, terra estéril
E se teus olhos nos meus andassem
Entulho não era achado
Mas saltimbancos
Arlequins

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A aliança

A mão deformada pesa
sob o símbolo que fala em nome
do ritual e da pregação do padre:
Aro grosso polido há anos (bem morto)
Modelo venerável de resignação e ódio

Inclinasse a cabeça aos pés e veria quanta dobra na alma
anelada pelo brilho falso que grudou no sexo
com a fechadura do dono

Carne mole, filho mau, desgosto, falência mental, insônia
Silêncio, silêncio, silêncio, silêncio..................................................................
Solidão, solidão, solidão, solidão.....................................................................
A aliança expiando
o último suspiro

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Alquimia


Há alegria nesse par de olhos castanhos
requebrando em rito insano a mesma dança
que dança o corpo risonho
A alegria cresce, saltita a olhos estranhos
Se pudesse abrir em banda
mostraria quão grande deslumbre esconde:
bailar, cair, equilibrar, desmoronar – de novo gozar
Mas o mundo dorme e o grito morde a garganta
Quer revelar tesouro escondido...
Quem almeja fortuna sem brilho?
- Cadê o ouro?
- Ora, o ouro sou eu!

Ana Barros
Natal, 08/04/98

Eu

A caixa de papelão manchado de fungos ainda guarda a fotografia sem data. Esquecida de querer de volta o papel amarelo e sem alma, apanhei o retângulo e olhei-o friamente. Não muito longe, lamentei a morte da inocência sob os véus da falsidade e da corrupção do gesto espantosamente revelados no arco dos ombros e nos braços frouxos caídos ao longo do corpo. Passando os olhos no pano de fundo donde sobressaem dois quadros que decoram a sala, Cristo e a Virgem, disse num suspiro de alívio e satisfação de mim: “sou o que sempre fui.” Em torno, a parede branca e sem ícones refletia a dança louca das formas vindas do Jardim ensolarado. Ali, deixei-me aliciar no rito frenético de êxtase e esfacelamento.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Desato

A imaginação é sangue
e o fluxo rasga os sentidos
Num instante, não mais que um instante, o gesto escorre
Gelo revigorante, paz, bálsamo de uma chispa

A ânsia recomeça noite adentro na vibração
dos nervos e na multiplicidade das formas,
na ocupação inflada e diabolicamente febril do Nada
Vontade a postos entre fluidos e Eternidade

Outra vez o gesto gesta e desintegra na superfície
sem jamais chegar ao fundo sem fundo onde
tudo cospe para cima e para os lados,
onde dançam miríades com o tempo da bolha
que explode e morre sem segurar o ato nem fixá-lo
na pedra da certeza sem corte

É só um instante... a febre passa

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A dança do tempo

A imagem não é só para mim, mas para os demais. Uma vingança? Você está jovem, loura e ricamente vestida. Veio à tona um fato ocorrido há dez anos quando você, abandonando as crises e o tédio na cidade grande, recolheu-se numa simples casa da montanha. Não era mais nada, apenas uma senhora em paz. Enfim, o espírito emancipado da carne. Não confiei na decisão tão extrema, nem tampouco ter como confidente o cavalo Azulão e deixar os cabelos naturalmente pixains e inteiramente brancos – na imagem eles estão alisados e cuidadosamente tingidos. Quando se descobriu uma velha, você apagou o espelho. Achou conveniente dar um basta no tempo e jogar a culpa na burguesia, que tudo compra, inclusive a simulação do eterno. Fez uma faxina nos acontecimentos e amarrou-os na boca do vento. Na imagem, você passeia sem peso na superfície. Fechei a mensagem sem deixar de me reconhecer na imagem, eu, outra velha, perto, no burburinho, dançava.

domingo, 24 de outubro de 2010

A insistência das coisas

Busquei todas as coisas e senti a essência escondida
em cada esquina virada, em cada etapa vencida.
Juntei coisas, acervo sem vida. Mas eis que de repente em volta
as coisas, novamente todas, vi surgir dos escombros
de quimera e sina. Bateram minha porta, chamaram lá fora.
Escondida fingi não ouvir. Fingi, pois o eco rasgava uma vez mais
a pele do meu fantasma.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

As três mulheres

Duas horas e ainda escuto
sussurros da natureza que vive
lá fora. Na sala de estar
as redes de franjas longas relaxam
mamãe e tia Ló
Dois pares de seios moles se desmancham
debaixo da camisola transparente e
a boca aberta de mamãe mostra a gengiva fina e sem dentes
Há pouco, cochilavam de frente pra televisão e a aura
de vazio que vi sair de seus corpos
dizia solidão de mil derrotas. Sofriam
das fendas da carne consumada. Mas o espírito
desconhecia as inquietações
nas quais naufragara o meu que
lúcido de mim
velava por nós três

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Em si


Aquela velha que encontrei ontem a caminhar
tinha a indiferença de quem viu tudo,
a convicção do real e nenhuma ansiedade mais
Observo a leveza da espinha – passos de ganso...
Andar orgulhoso e grávido dos gestos que ainda não li, pois, em mim,
há vaidade a inquietar nestes dias sem paixão em que
o olho passeia sem ver
Mas aquela velha viu

Ana Barros
Natal, 02/09/03

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A internet e as cabras

Era sempre a mesma sentença: “Estás excluída!” E um dia, lá estava eu de frente para o computador. Naveguei. Li tudo que por hábito selecionaria de um jornal, revista ou livro; desliguei o aparelho. “Mas quê! Já terminaste? És mesmo resistente!” Não compreendi. Aliás, como resistente se desde criança leio tudo o que me chama a atenção? Não era eu um daqueles privilegiados que leem mais de dois livros por ano? Então, resistente a quê? Será que era porque não compreendia imagens? Excluída de que se encontrava meu pensamento contemporâneo e fugaz tanto em meus vizinhos como nos livros, revistas e jornais impressos ou virtuais?
Certo dia, ainda com aquela sensação de que poderia ser uma excluída, fiz uma viagem pelo interior, serra verdejante, perfumada de flores e brotos diversos. Conheci seu Antônio, velho robusto, músculos rijos de tanto rasgar a terra e colher seus frutos. Ao me aproximar diminui o passo e observei longamente aquele homem baixinho, de calção de algodão cru e botinas de couro de vaca nos pés gretados, que se abeirava do chiqueiro das cabras com uma foice numa das mãos. Num salto matreiro, decepou o galho da mangueira e jogou às cabras famintas.
O silêncio ali era diferente, compacto, quebrado apenas pelo balido e o badalar fraquinho dos chocalhos pendurados no pescoço das ovelhas. O mundo se resumia àquele velho e suas cabras; mundo de ausência de tudo o que é civilização e ao mesmo tempo presença mítica de tudo o que promete a civilização. Pois não eram a liberdade e a inclusão, os mais altos valores da sociedade virtual, os mesmos valores daquele velho que tinha como companhia as cabras e o tempo?
Voltei para a cidade rindo dos meus amigos e de mim. Ignorávamos a dimensão das palavras liberdade e inclusão. Aquele velho tinha a inocência e a intuição necessárias à união da parte com o todo; ele era sim um incluído.

Ana Barros
Natal, 16/06/00

domingo, 22 de agosto de 2010

Medusa

Observava seu rosto quando me detive na imagem
tantos anos a mesma e só agora completamente dada.
Confirmava que o tempo expõe nossos vícios
à contemplação que suspeitou algo escondido,
criando lodo no fundo até um dia irromper na superfície
sem mais cuidados nem pudor. Você não me surpreendeu...
Desde o primeiro momento sabia que nos veríamos de frente para o espelho.
Você com o semblante alterado, a voz raivosa, a pele
marcada pelo cinismo cruel dos velhos míopes.
Eu a esconder o lado ruim que agoniza no subsolo e morre antes do gesto.
Pensei no encontro que teríamos na casa de R
e não senti vontade de ir nem de ver de novo a imagem
gasta que hoje sei por que nunca enxerguei de frente.
Talvez receasse encontrar a verdade
revelando-se aos poucos a uma percepção esquiva
sempre a desviar do foco quando a nudez é completa.
Mas a sua nudez era tão visível quanto a minha coberta.

sábado, 21 de agosto de 2010

Minimalismo

Aprendi a bordar com as aranhas
No labirinto minhas mãos tecem com Aracne
E teu corpo é o meu corpo, teu suor meu sangue
O verbo salta dos teus sonhos. Silêncio
Escrevo – nada

domingo, 8 de agosto de 2010

O olhar enviesado

Íamos em direção à Rua. Falávamos de nossas vidas. Você sofria não de você, mas de mundo. Vi seus olhos levemente molhados e parei no meio do caminho para beijá-los. Você estava triste pela humanidade e feliz porque eu compreendia o seu devotamento. Amei-o ainda mais e tive vontade, se o físico deixasse, de carregá-lo nos braços como quem carrega um troféu. Contentei-me, contudo, em apertar-lhe as mãos longas e magras como a dizer “você é o cara!” De mãos dadas e a sua cabeça doendo de mundo, a minha não pensava senão fotografar nuances de sua nobreza. Diminui o passo para aproveitar as impressões que a tagarelice intelectual dava início. Atravessamos a esquina que separa a Avenida do Beco, onde alguns jovens fumavam crak. Procurei seus olhos na certeza de encontrar a doçura que minutos atrás tanto amei quando você sofria de humanidade. E o que vi foi um olhar enviesado de quem não queria encontrar no caminho a Humanidade. Soltou minhas mãos, apressou o passo, voltou e puxou-me enfim pelo braço e, sem dissimular o repentino ar de enfado do rosto disse retirando o celular do bolso e digitando cento e noventa: “Vamos sair daqui!” Meu amado não tinha mais o olhar úmido nem quebrado, esperava ansioso a viatura da polícia.

domingo, 25 de julho de 2010

Religiosos e amorais

Há uma fundamental diferença entre os religiosos e os não religiosos. Ou se quiser, entre os que aprendem e incorporam uma moral e aqueles para quem viver é entregar-se à existência sem censuras nem impedimentos; viver de acordo com os sentidos. Aos religiosos uma existência plana e sem culpas, apesar de manterem uma angustiante e permanente “confissão” de seus “pecados”, uma meia vida, uma vida cortada por grandes intervalos de penitência e auto-flagelação. Nesse compassado e meticuloso caminho do religioso a criatividade e poder do indivíduo morrem para dar lugar ao santo, pois que a besta amoral é amarrada continuamente para poder continuar existindo, às vezes, miseravelmente.
Ser religioso não significa apenas seguir uma orientação cristã ou não. É mais profundo. Ser religioso é um comportamento que vai além do social. É uma atitude de mundo. É uma forma adotada de caminhar na terra. E isso está inscrito na filosofia, na poesia, na política, na literatura e em todas as magias intuídas sobre o real. Mas... e o amoral? Ah, esse é o sal da terra, a paixão, o vigor, os instintos, os sentidos, a sensualidade, a consciência que age e pensa no corpo inteiro e não apenas pela razão culposa do homem que conhece.
O amoral não adota rédeas e assim não anda sobre o chão mas voa sobre todas as coisas, pois seu tempo é intenso e curto. Diferente do religioso o amoral não conhece a prudência nem a regra. É explícito em sua dor e em suas paixões. Não tem compaixão por nada nem por ninguém porque é o próprio miolo do ser do mundo. E ele sabe que o ser do mundo é trágico igualmente a ele e que ambos se fundem no mesmo abraço fatal. Para quem não sente em si mesmo as duas pulsões de vida, para a imensa maioria que não passa da superfície de suas próprias experiências, é inaceitável que existam seres amorais. São estes os mais odiados e incompreendidos. Apesar de serem os mais profundos e verdadeiros, são acusados de loucos, demônios, depravados, excessivos etc. etc.
Mas olhemos para trás e façamos um apanhado dos grandes homens que fizeram a história dos homens, das artes dos homens, da política dos homens, da filosofia... São em sua maioria amorais. Um dos exemplos mais exaltados é Rimbaud, a mais fiel expressão do deus pagão Dionísio. Isso não quer dizer que mais tarde, se não morressem cedo, pudessem ser senhores ou senhoras religiosos. Um grande exemplo dessa transformação é Oscar Wilde. Lendo De Profundis podemos ver como ele lutou consigo mesmo para ir do irracional Dionísio ao luminoso Apolo.
È doloroso para um homem viver apenas num dos lados, entregar-se à religiosidade, a um ascetismo moral/científico ou a um desregramento total, a uma amoralidade completa. Em ambos a morte (do poder do indivíduo) e não a vida é a vitoriosa, pois viver requer a comunhão dos dois lados – claro escuro – sem deixar que um sufoque o outro, mas sabendo o instante exato do aniquilamento de um ou do outro. O que restará depois? Talvez uma doce melancolia... e um novo recomeçar...

Ana Barros
Natal, 16 de janeiro de 2009.

Arte pós-moderna em Natal: hedonismo e afirmação

O tempo redescoberto pode presentear o observador com o poder da razão que olha o passado e dele retira o real que se deixa encobrir, ou pela imaturidade dos anos, ou pela ausência de mecanismos psicológicos capazes de fazer enxergar algo que era feito e sentido, porém não compreendido. E por não ser compreendido racionalmente considerado louco, alienado, sem sentido. No entanto, é essencialmente o sem sentido que provoca e desconcerta um mundo ordenado; um mundo acomodado numa tradição cultural e estética cuja estabilidade é quebrada por indivíduos ou movimentos em profunda sintonia com um presente incerto, trágico, niilista, ou de afirmação na existência caótica.

É o aparente caos em que mergulham as artes visuais de Natal do final da década de 1980 e correr dos anos noventa, no qual vemos nascer a tendência pós-moderna com suas ironias, hedonismo, erotismo, afirmação na ausência de esperança em algo, bem como ausência de qualquer metafísica, que hoje, depois de duas décadas, retorna como conceito, História da Arte.

A pós-modernidade causaria impacto por aqui, no entanto, já era conhecida na França desde a década de 1970, sendo seus principais seguidores os remanescentes desiludidos de 1968. Mas em Natal não houve, como aconteceu na França mais madura e integrante de uma civilização mais avançada histórico e politicamente que a nossa, nenhuma desilusão de algo prometido e não realizado. Havia sim o começo de uma democratização de valores individuais, políticos e sociais, cuja expansão inevitavelmente acabaria dando origem a uma nova vertente das artes.

Tanto em Natal como no restante do Brasil, as artes visuais passam a ser um importante veículo de divulgação e politização dos movimentos de massa, incluindo aí negros, mulheres, ecologistas, homossexuais e sem teto, transformando o belo contemplado numa arte que analisa e interpreta o mundo com seus elementos tão diversos quanto efêmeros numa sociedade não mais contida por ideologias morais ou políticas, mas aberta a uma multiplicidade de ideias e a uma infinidade de bens de consumo da era pós-industrial.

Pode ser que na França a pós-modernidade tenha representado a reação niilista diante do fracasso de todas as esperanças coletivas de progresso moral e social, porém, em Natal, herdeira de um provincianismo rural e de uma cultura saída das fraldas de uma ditadura militar, a pós-modernidade é mais um grito, um chamado, um desmoronamento de estruturas nas quais se cultivou a mentira, a fraude, o ódio e o desprezo pela identidade não só individual mas de povo. Neste contexto não há desgosto e sim busca por afirmação, mesmo sabendo ser afirmação sem qualquer base sólida, sem qualquer verdade sagrada; uma afirmação que, mesmo aparentando uma hiper-racionalidade, tem no sonho, no lúdico, no efêmero, nos impulsos, a exaltação da vida. Paulo Rouanet, em As origens do iluminismo (1987), observa que o prefixo pós tem muito mais o sentido de exorcizar o velho do que articular o novo, sendo o pós-moderno “a fadiga crepuscular de uma época que parece extinguir-se ingloriosamente que o hino de júbilo de amanhãs que despontam.”

Os pós-modernos incomodam justamente por uma atitude aparentemente desinteressada e despolitizada, quando trazem à cena as reivindicações de emancipação do cotidiano com sua multiplicidade de elementos banalizados e desprezados pela chamada alta cultura. Num sentido moral existe mesmo a ação deliberada pelo respeito às diferenças e os costumes diversos, criando um ambiente de aceitação do sensível com todos os desníveis possíveis. LIMA (2004) observa que no campo da arte e da estética parece incomodar a “emancipação do vulgar” e a mistura de gêneros. No campo da moral, existe a tendência a tolerância, o respeito às diferenças humanas, o pluralismo radical, ou seja, “sem inimigos a derrotar.”

Guaraci Gabriel: Xamã da nova arte

Poucos são os artistas dessa época que se envolveram no processo pós-moderno em Natal e que chamam a atenção para as suas intervenções. Talvez pela exposição ao público, talvez pelo exibicionismo, hedonismo, narcisismo, exagero em todos os sentidos, talvez pela afirmação de sua homossexualidade, evidente em algumas de suas esculturas fálicas, o escultor Guaraci Gabriel tenha se destacado como expoente maior das artes visuais do período. Há nomes como J. Pinheiro, Civone Medeiros, estes dois de estilo performático, e Saionara Pinheiro, talento inquestionável, no entanto, todos obscurecidos pela força e poder individual de Guaraci, que chama para si as atenções mesmo quando zomba de si mesmo. Suas atitudes e arte revelam um ser de grande capacidade criadora e discernimento de valores em desacordo com os padrões vigentes. Em seus trabalhos e na vida pessoal, Guaraci mergulha numa verdade que abraça com escárnio e irreverência, pois está aberto a novas possibilidades de experiências e aventuras, negando desse modo “o abismo niilista ao qual tantas das aventuras modernas conduzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda quando tudo em volta se desfaz”, Berman (2007).
O homem e o artista Guaraci Gabriel têm consciência dessa destruição simbólica, dessa niilidade e por isso recriam o mundo através dos elementos mais variados, dos resíduos, do refugo, do lixo; das sucatas e dos materiais imprestáveis dá nova ordem, sopra vida onde há corrupção dos sentidos. Há, em seus trabalhos, uma mística que transcende na própria realidade que, sem negar nem cultuar, zomba de seres supra-terrestres e dos símbolos de ideologias decadentes, cujos ícones são deformados nas mãos pervertidas do escultor. São objetos criados, ou recriados a partir de outros com o intuito de expressar conceitos de uma anti-moral, de uma antiestética.

Além da crítica ao formalismo, causando incômodo tanto entre artistas tradicionalistas quanto na Imprensa local, os artistas da pós-modernidade de Natal atacam com ironia e escárnio as instituições, os salões de artes plásticas e o mercado de artes. É emblemático desse comportamento a instalação realizada por Guaraci Gabriel no dia da inauguração da Capitania das Artes – Funcarte, em 1995. Inconformado com a arquitetura burocratizada, idealizada por funcionários sem visão histórica do casarão centenário, outrora Capitania dos Portos, distanciando-o de sua origem, do povo e dos artistas de vanguarda, Guaraci simula um incêndio do prédio numa instalação de carvões que emite fogo e fumaça na parte externa da Fundação e que deixa os vigias em pânico com a possibilidade real de incêndio.
Uma antiarte, uma representação não artística para ser compreendida por todos? Guaraci não se incomoda com as opiniões, apenas age, age numa cultura que não lhe diz nada além do chamado para o caos que ela mesma reverbera; para o profundo sentido de caos universal que move o poder criativo e irrompe na visão translúcida que seria de todos se, junto à agonia visionária do artista, compreendessem o real que há debaixo da bruma percebida pelo decifrador de enigmas, para quem Tápies (1979) vê “não como sendo o testemunho de um momento que se afasta, mas um profeta da nova arte pobre que constitui uma tradição visual do movimento da juventude radical.” E Baudelaire (1995) completa: “O prazer que obtemos com a representação do presente deve-se não apenas à beleza de que ele pode estar revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente.”

É desse presente que Guaraci Gabriel forja uma expressão e um conceito através de suas instalações, de seus vídeoarte, de suas esculturas monumentais, enfim, de seus projetos transformados, eles mesmos, em obra de arte.
Solidez, estabilidade num mundo que se descobriu efêmero, pêndulo do engano e da insegurança, são palavras com as quais os pós-modernos brincam e assustam os desavisados com uma linguagem pautada na objetividade e frieza do real; do presente que surge sem os véus das metáforas e se revela concretude plena de sentido. E aqui, envolto num grande paradoxo entre o auto-desenvolvimento e um mundo pós-industrializado que tudo abarca e aniquila num constante fluir, Guaraci Gabriel, artista dos resíduos, do caos, mas também de uma velada transcendência, mesmo sendo esta uma transcendência na própria matéria destroçada, é a representação do poeta fáustico contemporâneo. Para ele, as palavras de Berman, com apenas uma ressalva, apesar de ser uma referência aos modernistas do século XIX: “Um mercado mundial que a tudo abarca, em crescente expansão, capaz de um estarrecedor desperdício e devastação, capaz de tudo exceto solidez e estabilidade. Todos os grandes modernistas do século XIX atacam esse ambiente, com paixão, e se esforçam por fazê-lo ruir ou explorá-lo a partir do seu interior; apesar disso, todos se sentem surpreendentemente à vontade em meio a isso tudo, sensíveis às novas possibilidades, positivos ainda em suas negações radicais, jocosos e irônicos ainda em seus momentos de mais grave seriedade e profundidade.”

A ressalva é que Guaraci Gabriel, como pós-moderno, jamais atacou nem difamou o mundo contemporâneo; jamais se mostrou um niilista passivo diante da existência banalizada. São características fortes dos seus trabalhos o culto à personalidade, o hedonismo e a afirmação do indivíduo sobre a diluição de valores e objetos até então sacralizados por uma arte ou ideologia de uma minoria agora obrigada a conviver com a diversidade e uma massa ávida de consumo de toda espécie. Um exemplo magnífico dessa nuance ao mesmo tempo trágica e irônica do presente são os trabalhos expostos na mostra A Porta do Céu, na praia de Santa Rita-RN, em 1999. No meio de ferros, vidros, paus, papéis, pedras e tantos outros materiais, Guaraci Gabriel expôs um fusca velho sobre as ruínas de um casarão, junto a duas outras esculturas em ferro, de grande porte. Depois de alguns meses de completo abandono, arrastado para lá e para cá pela maré, veio enfim uma grande onda e levou a carcaça do fusca. As outras duas peça, mais pesadas, os ladrões roubaram e certamente venderam num ferro velho qualquer. Indagado à época por alguns jornalistas se não iria tentar recuperar os objetos, Guaraci riu e disse que o destino delas era aquele mesmo, ou seja, na ação amoral do mar e dos ladrões estava o sentido que o artista imprimia à precariedade da vida; do efêmero que, apesar do peso, é levado assim mesmo, quer queira ou não o homem de posse de uma razão luminosa.

Compreender a linguagem caótica de Guaraci Gabriel é entender o caos da natureza e, redundância, do próprio homem; é ler símbolos que desmistificam a dor e o niilismo dos modernistas por aniquilar toda e qualquer esperança que não surja da própria ação do homem no mundo como é dado. O próprio Guaraci é um instrumento dessa experiência não só artística, mas também humana.

Uma década de megaexposições

Toda a década de 1990 foi tomada por megaexposições e instalações de Guaraci Gabriel que, apesar da monumentalidade, poucas vezes foram levadas a sério pelos artistas consagrados no mercado local. No entanto, Guaraci sempre teve o apoio de instituições governamentais (Estado e Prefeitura) e do empresário do ramo de sucata (Compal) Joaquim Patrício, cujos incentivos levaram o artista à bienal de Cuba (várias), Áustria, Portugal e Rio Grande do Sul.

De personalidade contraditória, jamais alguém sabendo ao certo de que lado está, às vezes se assemelhando às idiossincrasias de Salvador Dali, de quem é profundo admirador, Guaraci aproveitou o máximo do escárnio, do lixo, do resíduo industrial, do abjeto e do proibido em suas criações levadas ao extremo da elaboração em projetos nos quais detalha seus trabalhos para uma maior compreensão dos símbolos, estes, múltiplos de significados apreendidos pelo artista. Em suas mãos os materiais de todo tipo tomam forma e falam a linguagem mais banal, mais cotidiana, mas que esconde em si uma verdade cruel como bem expõe Baudrillard (1985) ao afirmar que “Os papéis se invertem: é a banalidade da vida, a vida corrente, tudo o que se estigmatizara como pequeno-burguês, abjeto e apolítico (inclusive o sexo) que se torna o tempo forte.” Aqui Baudrillard, apesar de contrário ao conceito de pós-modernidade, parece descrever o substrato da arte pós-moderna propagada em Natal por Guaraci Gabriel e que iria banalizar-se em comportamentos e atitudes de minorias (homossexuais, feministas, ecológicas e étnicas), cujo ideário libertário alguns malucos haviam ousado afirmar. O próprio Guaraci Gabriel, ser e objeto da afirmação homossexual, afirma aonde vai que é gay, apesar de ninguém o levar a sério devido seu porte viril estar de acordo com o protótipo do macho. Civone Medeiros e J. Pinheiro o acompanhavam em performances nas quais tiravam a roupa, num rasgado e anunciado começo de exposição do privado e da intimidade pessoal, hoje vulgarizados pelo modismo performático e Realities Shows.

Peso que se faz leve

Símbolo da própria leveza, dançarino do caos, Zaratustra contemporâneo, Guaraci Gabriel é a encarnação do paradoxo quando escolhe o volumoso, o ferro e o aço para representar o efêmero num claro desafio ao tempo que tudo tritura e engole, semelhante a Ítalo Calvino, que propõe a leveza em Seis propostas para o próximo milênio: “Minha intervenção se traduziu por uma subtração do peso; esforcei-me por retirar peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades”, Calvino (1990).

Mas por levitar na multiplicidade e na frivolidade das coisas, há aqui a ameaça do homem perder o sentido do peso existencial; do peso metafísico que faz recuar diante da ameaça do Nada; diante de um niilismo passivo cuja saída é a morte, simbólica ou real. No entanto, é esse peso que o artista tão bem conhece e que aprendeu a dançar sobre ele com a doce ironia somente encontrada entre os indivíduos, ou seja, entre aqueles que, na própria vida, na arte e na moral, criam seus próprios valores. Guaraci Gabriel faz isso quando dança sobre a frivolidade e a seriedade das coisas entregando ao mundo um outro mundo no qual sobrevive apenas quem é capaz de rir de si mesmo e do angustiante fluxo dos fenômenos. Nietzsche (1991) ajuda a compreender esse artista, ou, se quiser, esse anti-herói, ao lembrar que “não sei quem afirmou que todos os indivíduos, como indivíduos, são cômicos e por isso não trágicos: de onde se poderia concluir que os gregos simplesmente não podiam suportar indivíduos sobre o palco trágico.”

É precipitado dizer aqui que os artistas pós-modernos de Natal representam o indivíduo nietzschiano, uma vez que os mesmos desprezam, ou desconhecem, os valores trágicos que tão bem caracterizam o homem moderno. Eles são crias do não-trágico, e por isso expressão viva da liberação, não libertação no sentido filosófico de transmutação, de um indivíduo sem o peso dorido do contingencial, mas oprimido justamente pela ausência de trágico num cotidiano sem as experiências com as quais povos civilizados davam mostras de esgotamento, de cansaço e desejo de transcendência; de um indivíduo dionisíaco sequioso de experiências diversas como liberdade sexual, consumo de drogas, consumo de bens industriais e culturais; indivíduo amante das massas e dos aglomerados, enfim, um indivíduo hedonista, provocador e diluído num espaço que ele não nega nem ama, uma vez que transformado em sua própria extensão humana num momento em que a informatização chega para coroar o processo. Processo cuja diversidade de valores, com a quebra de fronteiras entre povos, etnias, gêneros e todas as minorias sociais, já iniciada pelos pós-modernos e aprofundada nos dias de globalização, junto ao desenvolvimento científico e tecnológico que dilui e aproxima, fragmenta o tempo e o espaço, pensadores como Michel Mafesolli chamam de heteronomia estrutural.

Compreender a pós-modernidade em Natal com o pensamento de hoje, quando o preconceito dá lugar a um olhar crítico e imparcial sobre a importância estética, política e social do momento; quando um olhar cúmplice por também ter compartilhado do processo se abre e enxerga com exatidão o momento às vezes abominado por uns e afirmado por outros, é analisar o fenômeno como fluxo de uma potência vital; de uma transcendência no próprio existir. É Mafesolli (1985) quem enxerga essa nova transcendência submersa no cotidiano: “De uma certa maneira, a proliferação de imagens multiformes, seja a imagem televisiva, a imagem publicitária, a teatralidade quotidiana, as pequenas imagens íntimas, tudo isso consegue, de algum modo, fazer brotar uma ambiência, uma aura específica. Uma aura que supera cada um de nós e que supera a sociedade em seu conjunto. É aquilo que eu chamo de uma transcendência imanente. Quer dizer que se tinha pensado a sociedade a partir de uma transcendência, seja Deus, o Estado, a História ou as coisas distantes. Atualmente há uma transcendência que emergiu do corpo social.”

Uma década de cultura do caos

Toda a década de 1990 até os dias de hoje representam um contínuo e progressivo desenvolvimento do comportamento massificado que Baudrillard (1985), diferente do olhar positivo de Maffesoli, chama de “situação da simulação incondicional ou do simulacro incondicional.” Nesse contexto de acelerada civilização dos costumes, Natal, cidade sem uma identidade cultural fortalecida nas bases tradicionais de um Nordeste arcaico, aberta às influências de fora, mostra-se receptiva e adaptada às mudanças e objetos àquela época ignorados ou desprezados como “lixo”, porém agora corriqueiros: banalizado mundo contemporâneo.

Independente de conceitos e correntes diversas, o que chama a atenção na fase pós-moderna de Natal é a rebeldia feliz de jovens artistas, cuja atitude contribuiu para formar uma cultura, uma história com suas ramificações em múltiplos espaços, em múltiplas tendências. Mais do que em qualquer época, e, depois de duas décadas de pós-modernidade, podemos dizer com Mafesolli: “Ora, o que é vivido é atualmente algo que é bem mais sensível, bem mais hedonista, bem mais aquilo que chamo de doméstico e que não faz parte dos universais conceitos da modernidade.”








REFERÊNCIAS

BARROS, Ana Maria. in: Equilíbrio no caos, 1997 – A estética além do tempo, 2001 – Fragmento do Nada, 2001 – Anjo Mau, 2004. (Textos avulsos)
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade – Rio de Janeiro – Paz e Terra, 1996. Coleção Leitura.
BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas – São Paulo – Editora Brasiliense, 1985.
BERMAN, Marshall.Tudo que é sólido desmancha no ar – São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o próximo milênio – São Paulo – Companhia das Letras, 1990.
LIMA, Raymond de. Revista espaço acadêmico – nº 35 – abril/2004. Disponível na Internet. (Acesso em 11/12/2009)
MAFFESOLI, Michel e BAUDRILLARD, Jean. in: Textos de cultura e comunicação – nº 28 – Universidade Federal da Bahia – Salvador, 1985.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Obras incompletas – São Paulo – Nova Cultural, 1991. (Os pensadores – I volume).
ROUANET, Paulo. Citado em LIMA, Raymond. in: Revista Espaço Acadêmico, nº 35 – abril/2004. Disponível na Internet. (Acesso em 11/12/2009)
TÁPIES, Antoni. Entrevista. in: Arte Abstrata e arte figurativa – Salvat Editora do Brasil, S.A. – Rio de Janeiro, 1979.

sábado, 24 de julho de 2010

O olho cego de Maya

O envelhecimento somado a certeza de que não se tem mais um tempo infinito leva a descobertas surpreendentes por aqueles que empreenderam uma vida percorrendo labirintos quase sempre sem saída. Mas eis que o tempo passa e o que parecia encruzilhada se transforma em lucidez, certeza de uma chegada há muito começada.

São sempre os caminhos mais difíceis, com obstáculos quase intransponíveis que, na maturidade, se abrem com uma intensa luz que chega a ofuscar a visão sempre tão curta de quem se entrega ao presente pensando que o instante é uma eternidade. Quantas vezes o êxtase da felicidade ou da dor sufocante parecem chegar e se implantar de vez! E isso se repete quase à exaustão levando muitas vezes a saídas nem um pouco racionais. Entretanto, aquele que amadurece e passa a enxergar no seu dia a dia a mesma repetição dos acontecimentos e antes de Maya cegá-lo salta sobre o feitiço com uma lança de gelo, descobre com um misto de prazer e serenidade que o tempo do homem é uma escala em movimento, a qual ele, quando descobre, pode aniquilar os pontos que, de tão repetidos na jornada banal, deixam de lhe agitar os sentidos.

São tantos os acontecimentos que contamos e recontamos em nossas vidas que estão sempre se repetindo com uma fúria de poder que chegam a envergonhar quando o efeito da embriaguez se extingue e damos conta do fiasco que foi entregar-se de novo a tão desgastada e odiosa ilusão. Há um exemplo que, por ser comum a homens e mulheres, e que por ser tido como verdade, me chama a atenção pela força e pela repetição com que todos se deixam enganar, é encontrar aquela pessoa que, quando isso acontece, nos transporta para terras imaginárias, para uma outra dimensão de erotismo, de sensações diversas, de sonhos, etc. etc. Esse tipo de experiência, não raras às vezes, se dá com pessoas completamente diferentes de nós mesmos, completamente outros naquilo que mais desprezamos em nós. Mesmo assim, como nos sentimos atraídos, apesar de saber no mais fundo da alma a tragédia que nos espera!

Pois bem, passamos boa parte de nossas vidas procurando esse indivíduo “singular”. Para uns, são raras as vezes no curso da vida que se deparam com esse ser. Para outros, aqueles que insistem na busca, estão sempre em contato com esse alguém tão buscado e sonhado. Entretanto, quando chega a maturidade para aquele que se incomodou com as frustrações dessas escolhas, e ainda está com aquela necessidade de encontrar quem lhe faça companhia e agrados e encontra ainda quem o engane percebe em segundos que a farsa acabou, que o véu de Maya foi rasgado pelo tempo que se encarregou de devolver ao homem o ser do homem. E esse indivíduo renovado descobre com uma doce ironia o ridículo de muitas de suas escolhas, principalmente as escolhas amorosas. E aí chora de desgosto e de felicidade ao perceber que jamais foram escolhas amorosas e sim uma simulação, uma corrida para os braços de uma infância que insistimos conservar.

Ana Barros
Natal,15 de fevereiro de 2009.

Literatura: negação e afirmação

Se fôssemos livres da obscuridade que impede conhecer o nada de nossas perturbações e angústias; se a natureza se despisse dos véus que enganam e encobrem a verdade não haveria literatura. Ou melhor, poderia até haver um tipo de escrita, robusta, afirmativa em todos os sentidos, na qual reconheceríamos o prazer de existir e não o sofrimento, o pessimismo, matéria-prima de quase toda a literatura. Mas pensando bem, será que literatura não é apenas uma fase do homem inquieto e impulsivo se olhar no espelho para num tempo depois, longo ou curto, quebrá-lo, conhecer e aniquilar-se no espaço e no tempo vazios de valores que até então a eles se emaranhou como se fosse a sua natureza?
Quantos autores nos causam impacto por dizer aquilo que sentimos, aquilo que também vivemos! Uns vasculham os escondidos da alma com perícia de adivinho; outros vão fundo nas pequenas misérias humanas e delas fazem um peso insuportável de carregar; ficamos angustiados e cheios de uma espécie de ódio pelo mundo e pelo que é diferente de nós mesmos. Vale lembrar que, quando jovens e iniciados, quase por encanto, nas leituras críticas, e isso se dá geralmente através, quando não de nós mesmos numa espécie de pedido de socorro aos livros que buscamos nas horas de extremo sofrimento, de amigos ou de professores de inteligência aguda, nos deparamos com pensamentos e inquietações iguais aos nossos. São essas as leituras mais perigosas, uma vez que nos abre os olhos para um mundo até então ignorado.
Mas eis que depois da leitura e da inevitável descoberta, nos achamos estranhos, intranquilos, não raras as vezes com impulsos suicidas. Seria o termo niilista adequado para qualificar essa experiência pela qual passam todos aqueles de natureza inquieta e espasmos noturnos em sua tortuosa experiência de mundo. No entanto, esse é apenas um entre múltiplos estilos de leitura, de leitor e de escritor.
Há, entretanto, autores que ridicularizam a existência com as suas peculiaridades de vir a ser, fazendo com que quem os leia encontre em sua obra uma fonte de ironia, gozação ou desprezo pelo existente. São comuns as sátiras, comédias e novelas de costume do século dezenove, nas quais vamos encontrar e nos identificar com uma sociedade mesquinha, subserviente, corrupta, medíocre política, artística e moralmente, da qual passamos, não raro, a odiar e a nos envergonhar de fazer parte.
Há ainda aqueles autores, de estilo otimista que, sabedores ou fingidores da insegurança e da fugacidade existenciais, negam tal evidência e em seu lugar criam uma segunda natureza, eterna, racional e administrada com conceitos, que dá ao homem um poder fictício sobre o existente com toda a sua carga finita e perturbadora. Vale lembrar que aqui, como nos dois casos citados, há também niilismo, ou seja, falta ainda a grande surpresa, a grande dor, a superação da negação. Há autores que jamais são lidos por travar no leitor o entendimento e não conseguir deixá-lo ir adiante num texto erudito que tenta revelar, com diversos recursos linguísticos, ou a certeza da felicidade construída na base da bondade e da virtude, ou o desespero vazio de existir (o nada sobre o nada), ou o ascetismo moral.
É comum o leitor crítico passar a juventude e parte da vida adulta lendo e relendo os clássicos e, com o tempo, amadurecer o olhar e os sentidos passando a ler e a conhecer com agudeza as entrelinhas e o pensamento do escritor, pois amadureceu no tempo e no entendimento. È comum ainda o abandono de autores que outrora ajudaram a construir raciocínios, cujos significados passaram ao óbvio e não mais à surpresa. Aqui o leitor, já amadurecido em suas próprias experiências e reflexões, supera a literatura conhecida como porta voz da realidade. Mas é vendo-se nesse espelho superado e superando-se também, que o leitor atento vai criando outros olhares para outro tipo de leitura. Chegou o momento em que se vê no espelho, mas nega esse espelho ou, se o queria e o afirmava com todas as forças, não consegue despertar os sentimentos que outrora o abismavam em choros e convulsões. Resumindo, está morto para uma realidade também morta.
Um dia, um leitor de mente muito aguda disse numa roda de conversa entre amigos que, ao ler a biografia de dois grande escritores, o biógrafo afirmava que ambos haviam abusado sexualmente de adolescentes na juventude e que esse fato poderia ser responsável pela angústia em que mergulhara a alma dos dois, tão bem expressa em suas histórias e personagens moral e psicologicamente construídos. No instante em que ele, leitor, tomava conhecimento daquelas revelações disse perceber quão permeada de patologia era a literatura e como ela servia de espelho de si próprio. Descobria naquele instante que muitas, senão todas as suas perturbações eram criações do imaginário. Todas as lágrimas, lamentações, angústias, sofrimentos e maldade em relação ao outro com quem convivia nos momentos de tensões eram apenas construções psicológicas e, se tivesse talento, construções literárias. Percebia que os dois grandes romancistas eram exemplos de superação de si mesmos na encarnação de personagens ora niilistas, ora trágicos, ora ridículos, ora sublimes, ou seja, personagens demasiado humanos.
Quanta patologia, quantos surtos, quanta depressão por não querer ser como se é ou por se querer como se é. E daí o nascimento de teorias, ideias, filosofias, poesias que negam ou afirmam a vida de uma maneira pessoal e ao mesmo tempo universal e que flui como verdade, uma verdade gritada dos escombros de frustrações sexuais, perturbações dos nervos, inquietações metafísicas, de uma personalidade complexa e sensível.
Entretanto, um paradoxo: para que chafurdar em nossas vísceras? Que sentido tem buscar entender a vida através do conhecimento de nós mesmos, do outro e do mundo? Será que necessitamos da literatura para encontrar a nossa comunhão com a natureza? Seria então o drama literário, desde o começo, o choque necessário ao nosso aniquilamento, um meio de conhecer para poder sentir o grande abismo no qual a vida é despejada e que somos obrigados a parar o fluxo e, feito Dioniso, juntar os pedacinhos e reiniciar a realidade para a qual estivemos cegos? Ou seja, a história que se torna cinzas diante de um presente que acaba de nascer não se liberta do passado, mas o aceita como triunfo e não como derrota. Só a arte faz esse milagre. E a literatura é a arte da negação, e também da afirmação.

Ana Barros
Natal, 05 de julho de 2009.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Além dos hormônios e da cultura

Conheci Alice na sala de espera do consultório da ginecologista. Naquele dia ela me contou sua história, como fazem todas as mulheres em sala de espera. Estava perto dos 50 e, há três anos, se preparou psicologicamente para o tão esperado momento. Começou a sentir pesadelos, palpitações, agitações. Lamentava-se às amigas. Menopausa era o tema preferido para explicar qualquer dorzinha. Aquele assunto foi ficando recorrente e chato. Apesar de todos os sintomas evidenciarem a fase temerosa, Alice continuou menstruando normalmente. Aquilo não era ainda menopausa.
Mas o que seriam então os transtornos que mulheres da sua idade diziam sentir? E foi durante esse período que passou por experiências pessoais e familiares muito complexas em cujo mergulho pode rever a vida que havia levado até então. Nesse processo de autoconhecimento compreendeu que a angústia e os transtornos, desde a primeira menstruação, faziam parte de uma personalidade sensível, humana e reprimida que havia se deixado levar, ora inconsciente ora conscientemente, pelas situações do momento.
A claridade interna fez com que Alice desenvolvesse um processo de superação das frustrações de filha e das culpas inculcadas socialmente, passando a uma maior aceitação de si mesma. Com o eu profundo descoberto e puxado, não sem muita dor e renúncia, para a realidade, o que restava enfim da Alice que acabava de entrar na temida menopausa? O que restava, me disse com alegria, era tão somente um corpo desperto e uma vontade que exigia se objetivar. E como as noites de Alice passaram a ser suaves a partir daqueles dias de descobertas. Desapareceram os “sintomas da menopausa” e ela se surpreendeu com a serenidade, com a ausência de medo da solidão, com o poder que ela não imaginava ter para enfrentar situações complexas como a morte e a separação de uma pessoa querida. Com o coração aquietado, pois a mente agia agora sob a magia das reminiscências que devolvem o ser a ele mesmo, com a ausência dos estrógenos que, possivelmente, associados à sua rígida educação, agiram de forma patológica sobre o seu corpo, podia dizer que estava bem na menopausa, ou... será mesmo menopausa? Será que o que chamamos menopausa não é outra coisa senão a determinação da morte do feminino pela ciência?
Façamos uma breve retrospectiva e veremos que a grande maioria das mulheres ainda vive sob a dominação ora da cultura, ora da ciência. Num passado bem recente, o valor da mulher estava ligado exclusivamente à reprodução e ao casamento. Após essa etapa, era velhice e morte. Hoje, com a maternidade sob controle, com a independência física e financeira, a mulher ainda continua amordaçada, desta vez, por um controle cientificista de seu corpo, com os sintomas da menopausa assumindo o lugar de todos os sintomas e comportamentos adquiridos ao longo dos anos de vida reprodutiva, de filha, de esposa, de mãe, de irmã, de trabalhadora, de ...aposentada.
Apesar de emancipada de uma feminilidade associada à maternidade, a grande maioria das mulheres não consegue vivenciar a sua objetivação no mundo. Passou do sonho do casamento ao pesadelo da menopausa. Passou de um corpo sem sentido, para um corpo (ainda sem sentido) manipulado pela ciência, a indústria de cosméticos e as academias de ginástica. Onde enfim encontrar a mulher que se fez no labirinto tecido pelas próprias experiências? A mulher que se auto-enxerga deixa de existir por existir, cria peso, sofre ainda, mas de outra espécie de sofrimento, pois não acredita mais nas fórmulas mágicas de eterna juventude, de eterno marido, de uma família e de um Deus que a protegerão na doença e na velhice. É nesse estágio doloroso do conhecimento, que coincide com a chegada da menopausa, ou melhor dizendo, da maturidade, que a mulher se descobre sujeito
Os homens também experimentam esse processo, só que com menos publicidade, uma vez que pertencem a um mundo mais racional e fechado, já assumindo culturalmente sua posição na história como sujeito. Em Lembranças do Subsolo, Dostoievski narra esse processo humano de forma angustiante, com o personagem central, um funcionário público, vivendo entre o limite das sensações e da razão, a qual ele duvida o tempo todo justamente por ser sempre surpreendido pelos sentidos, que são ele mesmo. Em Busca do Tempo Perdido, Proust faz a viagem para trás a partir de sensações como cheiros, sons, paisagens que ativam a memória e o levam a descobertas pessoais como lampejos, saltos na clarividência da individuação.
Mas no mundo feminino é Freud, no começo do século vinte, quem vai tentar curar a histeria feminina, esta, nada mais do que sintoma do silêncio das sensações e da mordaça subjetiva impostos ao corpo da mulher desde o começo da cultura. Um dos maiores “psicólogos” da vontade, Schopenhauer, dizia que toda força natural deve ser apreendida intuitivamente antes de poder chegar, pela razão, à consciência refletida. As “histéricas” não seriam um exemplo da vontade aprisionada no limite da loucura?
O que chama a atenção nesse assunto é que, de Freud para cá, a existência material da mulher melhorou inegavelmente sendo até uma ofensa hoje falar em histéricas. Mas será que o fundo da questão, ou seja, o domínio sobre o ser feminino não continua inalterado mudando apenas de nome? No passado, o patriarcado. Hoje, uma sociedade hedonista alimentada por um controle cientificista da fisiologia feminina, como bem analisa Ana Maria Furtado no artigo um corpo que pede sentido: um estudo psicanalítico sobre mulheres na menopausa, que vê a atual fase também como uma mordaça à individuação feminina. Ela escreve, citando J. Kristeva: restringir o desconforto somato-psíquico a um puro “desequilíbrio hormonal”, equiparando-o a uma doença, é repetir uma fórmula de controle sobre a mulher, presente na modernidade, que amordaça a singularidade da produção de sentido.
É justamente essa mulher, conhecedora de seu poder e de suas ações no mundo, que Affonso Romano de Sant’Anna tão belamente descreve no conto A Mulher Madura. Poetisa ele: “O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.”

Ana Barros
Natal, 12/11/08