Se fôssemos livres da obscuridade que impede conhecer o nada de nossas perturbações e angústias; se a natureza se despisse dos véus que enganam e encobrem a verdade não haveria literatura. Ou melhor, poderia até haver um tipo de escrita, robusta, afirmativa em todos os sentidos, na qual reconheceríamos o prazer de existir e não o sofrimento, o pessimismo, matéria-prima de quase toda a literatura. Mas pensando bem, será que literatura não é apenas uma fase do homem inquieto e impulsivo se olhar no espelho para num tempo depois, longo ou curto, quebrá-lo, conhecer e aniquilar-se no espaço e no tempo vazios de valores que até então a eles se emaranhou como se fosse a sua natureza?
Quantos autores nos causam impacto por dizer aquilo que sentimos, aquilo que também vivemos! Uns vasculham os escondidos da alma com perícia de adivinho; outros vão fundo nas pequenas misérias humanas e delas fazem um peso insuportável de carregar; ficamos angustiados e cheios de uma espécie de ódio pelo mundo e pelo que é diferente de nós mesmos. Vale lembrar que, quando jovens e iniciados, quase por encanto, nas leituras críticas, e isso se dá geralmente através, quando não de nós mesmos numa espécie de pedido de socorro aos livros que buscamos nas horas de extremo sofrimento, de amigos ou de professores de inteligência aguda, nos deparamos com pensamentos e inquietações iguais aos nossos. São essas as leituras mais perigosas, uma vez que nos abre os olhos para um mundo até então ignorado.
Mas eis que depois da leitura e da inevitável descoberta, nos achamos estranhos, intranquilos, não raras as vezes com impulsos suicidas. Seria o termo niilista adequado para qualificar essa experiência pela qual passam todos aqueles de natureza inquieta e espasmos noturnos em sua tortuosa experiência de mundo. No entanto, esse é apenas um entre múltiplos estilos de leitura, de leitor e de escritor.
Há, entretanto, autores que ridicularizam a existência com as suas peculiaridades de vir a ser, fazendo com que quem os leia encontre em sua obra uma fonte de ironia, gozação ou desprezo pelo existente. São comuns as sátiras, comédias e novelas de costume do século dezenove, nas quais vamos encontrar e nos identificar com uma sociedade mesquinha, subserviente, corrupta, medíocre política, artística e moralmente, da qual passamos, não raro, a odiar e a nos envergonhar de fazer parte.
Há ainda aqueles autores, de estilo otimista que, sabedores ou fingidores da insegurança e da fugacidade existenciais, negam tal evidência e em seu lugar criam uma segunda natureza, eterna, racional e administrada com conceitos, que dá ao homem um poder fictício sobre o existente com toda a sua carga finita e perturbadora. Vale lembrar que aqui, como nos dois casos citados, há também niilismo, ou seja, falta ainda a grande surpresa, a grande dor, a superação da negação. Há autores que jamais são lidos por travar no leitor o entendimento e não conseguir deixá-lo ir adiante num texto erudito que tenta revelar, com diversos recursos linguísticos, ou a certeza da felicidade construída na base da bondade e da virtude, ou o desespero vazio de existir (o nada sobre o nada), ou o ascetismo moral.
É comum o leitor crítico passar a juventude e parte da vida adulta lendo e relendo os clássicos e, com o tempo, amadurecer o olhar e os sentidos passando a ler e a conhecer com agudeza as entrelinhas e o pensamento do escritor, pois amadureceu no tempo e no entendimento. È comum ainda o abandono de autores que outrora ajudaram a construir raciocínios, cujos significados passaram ao óbvio e não mais à surpresa. Aqui o leitor, já amadurecido em suas próprias experiências e reflexões, supera a literatura conhecida como porta voz da realidade. Mas é vendo-se nesse espelho superado e superando-se também, que o leitor atento vai criando outros olhares para outro tipo de leitura. Chegou o momento em que se vê no espelho, mas nega esse espelho ou, se o queria e o afirmava com todas as forças, não consegue despertar os sentimentos que outrora o abismavam em choros e convulsões. Resumindo, está morto para uma realidade também morta.
Um dia, um leitor de mente muito aguda disse numa roda de conversa entre amigos que, ao ler a biografia de dois grande escritores, o biógrafo afirmava que ambos haviam abusado sexualmente de adolescentes na juventude e que esse fato poderia ser responsável pela angústia em que mergulhara a alma dos dois, tão bem expressa em suas histórias e personagens moral e psicologicamente construídos. No instante em que ele, leitor, tomava conhecimento daquelas revelações disse perceber quão permeada de patologia era a literatura e como ela servia de espelho de si próprio. Descobria naquele instante que muitas, senão todas as suas perturbações eram criações do imaginário. Todas as lágrimas, lamentações, angústias, sofrimentos e maldade em relação ao outro com quem convivia nos momentos de tensões eram apenas construções psicológicas e, se tivesse talento, construções literárias. Percebia que os dois grandes romancistas eram exemplos de superação de si mesmos na encarnação de personagens ora niilistas, ora trágicos, ora ridículos, ora sublimes, ou seja, personagens demasiado humanos.
Quanta patologia, quantos surtos, quanta depressão por não querer ser como se é ou por se querer como se é. E daí o nascimento de teorias, ideias, filosofias, poesias que negam ou afirmam a vida de uma maneira pessoal e ao mesmo tempo universal e que flui como verdade, uma verdade gritada dos escombros de frustrações sexuais, perturbações dos nervos, inquietações metafísicas, de uma personalidade complexa e sensível.
Entretanto, um paradoxo: para que chafurdar em nossas vísceras? Que sentido tem buscar entender a vida através do conhecimento de nós mesmos, do outro e do mundo? Será que necessitamos da literatura para encontrar a nossa comunhão com a natureza? Seria então o drama literário, desde o começo, o choque necessário ao nosso aniquilamento, um meio de conhecer para poder sentir o grande abismo no qual a vida é despejada e que somos obrigados a parar o fluxo e, feito Dioniso, juntar os pedacinhos e reiniciar a realidade para a qual estivemos cegos? Ou seja, a história que se torna cinzas diante de um presente que acaba de nascer não se liberta do passado, mas o aceita como triunfo e não como derrota. Só a arte faz esse milagre. E a literatura é a arte da negação, e também da afirmação.
Ana Barros
Natal, 05 de julho de 2009.
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