segunda-feira, 20 de junho de 2016

Homens invisíveis



passo alto
não me ocupa degenerar
se assim faço corro o
risco de ter sentido
melhor cegar
imagens na janela de vidro
fingir que não vejo
o podre riso invisível
passo alto
entro na sala asseada
sento com homens risíveis

Ana Barros
01/01/1997.

Amor no fluxo de Utopia



Guardo o “Almanaque do amor”, presente de um antigo namorado, com o mesmo carinho com que conservo a mobília gasta e fora de moda. O Almanaque do amor é completamente obsoleto nesses dias de amores efêmeros e diversidade de amar. Mas a sua capa cor de rosa em formato de revista, ilustração ingênua de corações flechados por Cupido obriga o retorno aos casais que viveram a idealização do amor em várias épocas: Adão e Eva, Dante e Beatriz, Sartre e Simone, Henry Miller e June, Lampião e Maria Bonita, Romeu e Julieta, Tarzan e Jane, Dirceu e Marília, Isis e Osiris e tantos outros casais que marcaram o seu tempo tanto na existência quanto na literatura. O subtítulo do livro, “no fluxo da utopia”, dá a dimensão da fragmentação no lugar da “cristalização” das promessas de amor, termo encontrado por Stendhal, conhecido pela intensa sensualidade na vida pessoal e de seus personagens, para definir a quinta etapa do nascimento do amor. Nem mesmo o autor de “O vermelho e o negro” e “Do amor”, tampouco seus protagonistas mais intensos conseguiram a proeza da permanência do amor. Em todas as histórias de amor há o momento do encanto, da certeza, do cristal e, no fim, da quebra no fluxo que nos devolve ao vazio da alma até então preenchida dos mais doces e terríveis estados de excitamento. Mas que quer dizer “no fluxo na utopia”? Paradoxalmente, para ser amor este (ainda) tem que ser sofrido e inatingível, pois, intuitivamente, os amantes sabem que o amor fracassa, que fica entre o desejo e a frustração da impossibilidade. Para o apaixonado (a), quanto maior a dor da conquista maior a entrega, mesmo que a amada (o) sequer imagine os devaneios de uma mente febril. Um exemplo famoso e patético desse amor que se faz motivo existencial em meio à depressão e o tédio é o amor inventado por Dom Quixote pela imaginária Dulcinéia, devaneio mais real que as quimeras do amor-paixão, no qual tudo ilude e nada permanece. Amamos, e queremos de imediato selar compromisso, criar laço, liga, trocar alianças, juntar as roupas na mesma trouxa. Situações criadas para aprisionar o que não deixa prender. Tão fugaz quanto o tempo, o amor, que toma forma de cristal, derrete, desaparece na correnteza gelada. E aí, como lidar com o vazio deixado no corpo que pensava conhecer o pleno entre a terra e o céu? Como retornar à miséria mundana sem os transportes para outras terras onde a natureza é feita de deuses e deusas jovens? Sim, os casais do Almanaque do amor são jovens enquanto dura o encantamento, exceção de Sartre e Simone de Beauvoir, que envelhecem juntos, porém em casas separadas. Há entre eles um pacto de cumplicidade filosófica, existencial e literária no qual o erotismo, mais cérebro que sexo, torna-se (verbo muito usado por Simone na vida processo) mais companhia, intimidade entre iguais, atingindo elevado nível de amizade, podendo ser definido também como amor, mas não mais o amor-paixão. Este Simone dedica de verdade, e longe das luzes da razão, ao escritor americano Nelson Algren, com quem viveu o amor na primeira fase, aquele da sedução e completo esquecimento de si, pois o outro chegou e ocupa todo o espaço vago. Apesar da força que atraiu o homem Algren à mulher Simone, fazendo com que esta, mesmo em Paris e ele em Chicago, o chamasse de “meu esposo” e carregasse com ela até a morte uma aliança de prata na mão esquerda, trocada com Algren, a filósofa escolheu o amor frio e mental do filósofo francês. O amor que, sendo eles ateus, jamais confirmaram diante de um padre, mas que cumpriram como experiência possível entre dois iguais, permaneceu “até que a morte nos separe”. O casal mais famoso do mundo ocidental moderno não quis ter filhos nem vida doméstica em comum. Sabia não por experiência, mas por leituras de livros e de comportamentos analisados à exaustão, quanta mentira há nas relações entre homem e mulher. Negaram com veemência o romantismo rosa atravessado de infortúnio, doença, hipocrisia e traições. Se Simone teve amantes, Sartre também teve. Desconheciam a palavra traição. Havia entre eles a ética da sinceridade, a vida construída para além da sensualidade, a vida plena de cumplicidade entre dois espíritos livres que somente a morte pode separar. O Almanaque do amor trata de outras duplas famosas do mundo das artes, da filosofia e da literatura que, longe de racionalizar o amor, quiseram mesmo foi viver a inconsciência e inconsistência dionisíacas. O mais feliz de todos os amantes embriagados nas volúpias de Baco foi Dom Quixote, cuja história com a donzela Dulcinéia del Toboso infelizmente não consta no Almanaque do amor. Louco, o fidalgo se mantém íntegro e fiel escudeiro ao que há de divino no mundo: o amor de uma mulher. Mas a lucidez, ao contrário do efeito provocado no casal existencialista francês, vem e atrapalha. É ela, a razão, que fatalmente devolve o homem comum à vida sem graça, à vida cotidiana sem o engano que faz o amante, a amante.

Ana Barros
Natal, 12 de junho de 2016.