domingo, 4 de setembro de 2016

A luz da lamparina

 Quatro contos

   I – Angelina
 II – O casamento de Rosa
III – O senhor da luz
IV – A morte do contador de histórias


I – Angelina

Angelina acabou de fazer 15 anos. Contava duas menstruações quando o primeiro namorado começou frequentar a casa. Nos primeiros dias ele chegou cedo e, mal o pai da moça pigarreou ao fechar portas e janelas, bateu em retirada. Angelina, que já conhecia os princípios do homem educado nos ensinamentos de Frei Damião de Bozzano, antes que ele gritasse “pra dentro!”, pedia a bênção trêmula de medo e corria a se fechar no quarto mal iluminado com os reflexos da lamparina acesa apenas quando tudo virava breu. “Quanto desperdício!”, bramia o pai apagando a lamparina se passasse um segundo da hora determinada. Porém, com o passar do tempo, o namoro criou sarro e o pai disse à moça: “a partir de hoje vou estabelecer horário de alisar banco aqui em casa. Diga aquele fofa bosta que enquanto a lamparina tiver gás ele pode ficar com você entre mim e sua mãe. Acabou o gás, arribe”. E assim foram seis meses com as horas, antes entregues aos cochilos ao pé do rádio e às orações a Nossa Senhora, consumadas na vigilância dos namorados. Certa vez, cansados das tarefas do dia e da obrigação moral em vigiar a filha, os pais de Angelina adormeceram no banco e só retornaram do longo cochilo quando já fazia cinco minutos que o gás havia acabado e a escuridão era absoluta no ambiente no qual os jovens permaneciam sentados entre os donos da casa. De um salto, e já com o palito de fósforo aceso, o pai puxou o rapaz pelo braço e o empurrou porta afora. O gás havia queimado até a última gota e o jeito foi usar a caixa de fósforos riscando um a um os palitos para chegar até o quarto da filha onde parou à porta e aproximou a chama quase esvaída do rosto de Angelina na suspeita de confirmar algum vestígio de pouca vergonha. Constatou, portanto, que os cabelos da moça estavam rigorosamente presos à nuca, detalhe que o fez pensar satisfeito: “ela é mesmo uma santa!”.  Porém a mãe, como toda mãe que vê e adivinha no escuro, viu que a blusa da menina tinha três botões fora da casa.
                                                           
                                                                   * * *

II – O casamento de Rosa


Na folhinha faltava uma semana para o casamento. As galinhas estavam presas, a cachaça a caminho do brejo de Areia, o bolo decorado com os noivos de porcelana esperado como a peça mais importante depois do vestido. Este, trazido do Juazeiro do Padre Cícero por um caixeiro viajante e escondido de todos para não dar azar, fora comprado com a venda de dois garrotes. O pai de Rosa engordou os bichos na mira de dar à filha o melhor e mais bonito traje da região. Aliás, todos sabiam da virtude da moça e da fortuna da família. O casamento da única filha não podia ser motivo de falatório da cabrueira vulgar. E foi no domingo anterior à data da cerimônia, momento no qual os homens distintos se sentam à sala para receber cumprimentos e visitas ilustres, que o vestido de Rosa foi entregue nas mãos do senhor da casa com o cuidado que se dá a mercadorias como ouro e joias preciosas, uma vez que vestido de noiva também é símbolo de poder e influência na província. Apenas Rosa e a mãe viram a encomenda embrulhada no papel branco e arrumada na caixa retangular enlaçada com fita de cetim também branca. Não menos de 10 vezes naquele dia ela abriu o baú para ver o traje de renda imaculado. Por esta felicidade é que nenhum detalhe podia ser desprezado pela moça, cuja educação tinha por base casar virgem e com rapaz de boa família, máxima repetida pelo pai tão zeloso da honra quanto negligente com o salto dado pela menina em direção à mulher em que se tornara. O esquecimento da passagem da infância à vida adulta deixara Rosa completamente sem noção de como seria sair da igreja e ir direto para a cama fazer o que era pecado e condenação caso não recebesse as bênçãos do padre. E foi no ritual preparado para uma virgem inocente que ela, acostumada a dormir com a lamparina acesa, hábito que facilitava o pai observar pelo buraco da fechadura se a moça escapava à noite, se viu em completa escuridão com o noivo ofegante de desejo a tirar-lhe o vestido, a combinação, a anágua... sem que ela movesse um dedo para frear a alegria do rapaz. Aquela noite seria relatada mais tarde às amigas como a mais quente e feliz da vida da mulher cujo pai exaltou a pureza por ter crescido longe da maldade do mundo. Mas Rosa, que quase não falava, não tinha necessidade do mundo ao qual o pai se referia para aprender as coisas. Vivera até ali longe da maldade humana, porém perto dos animais, com os quais experimentou o que os pais jamais saberiam, não porque ignorassem ou não fizessem também, mas por que a filha tinha que zelar pelo bom nome, regra básica para arranjar casamento. Mas Rosa, mais íntima dos instintos que da racionalidade prática e interesseira dos de dentro de casa, nunca prestou atenção ao real sentido das palavras “moça de família”, “zelo”, “virtude”, “bons modos” e “bom casamento” que ele, o pai – esposo digno, empreendedor, austero e temente a Deus –, repetia mal a filha sentava à mesa para tomar o café da manhã. E foi observando o hábito metódico e rotineiro do pai que aprendeu também a repetir as palavras. Dizia sempre “sim, senhor!”, “não, senhor!”, “entendi!”, depois dos sermões matinais sem se dar ao trabalho das contestações próprias de filhas que duvidam da retidão e das certezas dos pais. Em vez do conflito de opiniões, e Rosa não sabia o que era conflito nem opinião sobre o que quer que fosse, desenvolveu uma maneira de driblar a presença ostensiva do pai. Enquanto todos ainda dormiam, ela se dirigia ao curral onde parava diante da cena que a iniciou nos prazeres do sexo. Viu muitas vezes o touro subir na vaca sem que esta nada fizesse para desvencilhar-se das patas do animal. Das longas observações aprendeu o que era não ter “bons modos” nem “temor a Deus”, palavras exaustivamente repetidas em seu dia a dia por aqueles que tinham o poder de decidir o que era “bom” e “certo” para uma “moça de família”.

A noiva estava luminosa quanto o sol das oito, àquela hora, filtrado sobre o altar pelas brechas do telhado. O pensamento parava ora no curral, ora no quarto com o homem com quem se casava. Seguiu os pormenores do ritual com o silêncio e a obediência de filha que não dá desgosto. Finalmente disseram sim um ao outro, trocaram as alianças e desde então ela passou a se chamar dona Rosa S., esposa de J.S. Com a permissão do padre e da proteção da Virgem emoldurada na parede acima do espelho da cama, o noivo olhou a imagem, persignou-se, beijou a medalhinha de São José, santo protetor dos maridos, que a mãe havia pendurado em seu pescoço, e apagou a lamparina com um sopro. De seu lado a noiva, que sempre disse “sim, senhor!”, “não, senhor!” e “entendi!”, sem se dar o trabalho de aprender algo ensinado com as palavras, tomou a calcinha da mão do marido e arremessou-a na imagem que contemplava os dois sob o véu de tristeza que toda santa carrega depois de renunciar a sexo e à paixão do mundo. Mas Rosa, que dizia sim à carne e jamais dera atenção à virtude das santas, mugia e mordia o pescoço do touro.
                                                      ***


III– O senhor da luz

Na casa de Malaquias o mundo tem hora de acabar: às vinte, depois da Voz do Brasil, que ele ouve sozinho sem que ninguém o acompanhe nas informações dadas pelo locutor de voz empolada e sotaque sulista que tanto admira. Tanto que, no café na manhã do dia seguinte, ele repete as notícias imitando a afetação do locutor com a seriedade de quem acredita no próprio talento e nas informações oficiais. Enquanto o marido ouve o programa, a mulher escolhe o feijão do almoço e os filhos, duas crianças e dois adolescentes, sabem que, terminada a transmissão, chega o momento da escuridão total. E, tomados da ansiosa necessidade de traquinar o máximo que podem, os jovens param de repente ao ouvirem o repórter dizer “boa noite!”. O pai se levanta do tamborete colado ao rádio, boceja, coça a barriga, lança a gosma escura de fumo mascado no canto da parede, de onde já escorre um pequeno riacho, mija de cima do batente da porta e suspende a lamparina pela asa no começo do corredor, onde a fila, encabeçada pelo mais velho, passa solene. Um a um pedem a bênção e desaparecem guiados pelo silêncio da mãe.
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IV – A morte do contador de histórias

Padrim morreu!”, gritou o afilhado da porta da sala no momento em que Seu Luis silenciou para sempre a arte de fazer mentira virar verdade. Ele, como ninguém, soube dar alma à ficção sem que duvidassem da farsa: “um grande fazedor de mundos em seu próprio reino de faz de conta”, disse padre J. ao terminar  a extrema unção sobre o corpo ainda quente do macumbeiro, increu e filho das trevas, adjetivos com os quais exortou nos sermões de suas missas mulheres e crianças a se afastarem das garras demoníacas do contador de história, este que, envolto na atmosfera noturna da cozinha de sua casa, encantou a todos de quem fosse amigo ao emendar uma história à outra até a hora em que abrisse a boca três vezes: “Basta!”, dizia e se levantava indo em direção à porta da rua onde ouvia em coro: “bença padrim!”.

Único filho de dona T., viúva desde cedo, já passava dos 40 anos quando a mãe morreu. Mulher mal humorada e de difícil trato com a vizinhança não gostava de ninguém em sua casa, também não ia à casa de ninguém. Se quisesse conversar com os amigos, Seu Luis tinha que ir até à pracinha da rua onde se formava um círculo em torno do homem conversador. Porém, agora, livre da presença dominadora de dona T., ele abre as portas e os potes de biscoitos escondidos no guarda-roupa pela dona da casa para receber os vizinhos, todos, compadres, comadres e afilhados. Os compadres, no entanto, homens sérios que nunca davam uma risada se o assunto não fosse tratado ao pé do ouvido e carregado da malícia dos homens que só se sentem livres na presença de outros homens, jamais de mulheres e crianças tagarelas, não faziam parte daquele público alegre. Se alguém perguntava o motivo da ausência deles no ambiente quente da casa de Seu Luis, tão ao gosto daqueles para quem a vida é brincar de faz de conta, diziam: “o compadre? sei não!... além de não ter casado só fala bosta... papo furado pra engabelar menino besta e mulher que deixa os afazeres pra ouvir lorota de velho no pé do fogão”.

Dono de uma coleção de mais de duzentas histórias aprendidas dos folhetos de cordel, Seu Luis guardava tudo na memória. Em sua casa não se via livros nem estantes, mas muitos cordéis e almanaques antigos dentro de um baú de couro de boi. Apesar da variedade de temas, apenas uns poucos encantavam a plateia tantas vezes o compadre contasse. Uma delas, “O anjo que virou cão”, era contada e recontada no pequeno recinto iluminado pelas labaredas do fogo de lenha e da chama mortiça da lamparina, cujas sombras fantásticas ilustravam a história mal-assombrada. Seu Luis contava e mostrava o cordel ensebado das mãos da plateia ávida de suspense. Ele fazia questão de que todos pegassem o folheto no qual podiam ver a ênfase que o autor dava à desobediência e à punição de Lúcifer. Divertia-se em observar o terror nos olhos dos meninos e o espanto traído pelo riso de mofa e falsa cumplicidade das comadres. Alguns dos afilhados, instruídos nas aulas descoladas do professor Chico Ciência, carinhosamente apelidado por eles de C.C., e de maluco pelos pais, viam na xilogravura do diabo semelhanças com algumas capas dos discos de rock do professor. “Padrim, posso levar pra mostrar a professor C.C.?”, perguntou certa vez o mais roqueiro da turma, ao que Seu Luis respondeu tomando o folheto da mão do afilhado: “nem pense! Se ele quiser que venha até aqui.” A gravura do cão passava, assim, de mão em mão provocando simpatia e nenhum terror naqueles atentos mais à beleza da imagem que à condenação do anjo. De novo o cordel terminava na mão do dono da casa, que abria o baú velho e guardava o folheto à chave para outra noite quando ninguém mais se lembrasse dos versos.   

Era com o nome cão, ser das trevas, de chifres, rabo, patas de cavalo, cheiro de enxofre, tridente e cor tão escura quanto a fumaça da lamparina, que Seu Luis impressionava as crianças ao contar mais uma vez “O anjo que virou cão”. “Padrim, só tem cão preto?”, quis saber o menino roqueiro cuja pele era preta e não se achava nem um pouco parecido com o cão. “Só, meu filho! Só existe cão preto. O pecado queima os couro. Lúcifer era galego qui nem padrim!”, respondeu Seu Luis embasado nos conhecimentos de folhetos nos quais as profecias do mal eram confirmadas nos sermões do Padre Cícero. E, para dar testemunho da verdade que alardeava ao pé do fogão diante de olhos inocentes e crédulos, ele, nu da cintura para cima, pois se tornara hábito não vestir camisa à noite, estirou o braço curto, gordo e peludo, tão vermelho que mais parecia uma lagarta de fogo, e disse: “vejam, eu nasci galego... mas os meus pecadinhos deixaram a minha pele assim, sarará, cheia de pintinhas.”, completou Seu Luis estirando o outro braço para que todos pudessem ver as marcas que o pecado deixara em sua pele. Só que ele não imaginava que algum tempo depois a sua teoria ganharia mais ciência que as aulas do professor C.C., estas, sistematicamente explicadas aos mesmos alunos que, à noite, na cozinha de Seu Luis, esqueciam as experiências rigorosamente comprovadas por gênios e doutores e embarcavam com o padrinho nas aventuras que este, sábio de longas leituras de folhetos e almanaques, dava provas. Vejamos, então:

Seu Luis estava morto. Comadres, compadres e afilhados fizeram questão de velar o defunto a noite toda. Entre uma xícara de café, namoro no alpendre, ladainha de Nossa Senhora, cachaça à vontade e conversa cacete de bêbado, a noite passou sem que ninguém pensasse em apagar as lamparinas. Um dos compadres, com receio de que faltasse querosene, comprou um latão de dez litros, suficiente com sobra para queimar a noite inteira. Quando o dia clareou não se fazia mais necessidade da luz da lamparina. sol invadira a sala e foi dar de cara com alguns encolhidos sobre sacos de arroz, outros estirados em bancos encostados à parede, os nem aí pra céu e inferno, já bêbados, entornavam o último litro de cachaça de uma caixa de dez. O afilhado de Seu Luis, o mesmo que pedira o folheto emprestado em nome do professor C.C. e que perguntara se havia outra cor de cão além daquela carimbada como a preferida do coisa ruim, acordou desorientado e com os olhos colados de remela. Ao ver sob o véu da sapiranga o rosto do padrinho, este, antes do menino adormecer, transformado em máscara de cera, e naquele instante de luz intensa feito o próprio capeta, pulou berrando de cima do saco de arroz: “padrim virou cão!”. O rosto de Seu Luis estava negro da tisna da lamparina que havia iluminado o defunto noite adentro.
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Ana Barros
Natal, 13 de fevereiro de 2016.
(concluída em 31 de agosto de 2016)