quarta-feira, 7 de abril de 2021

Estômago

─ Criar nosso próprio negócio foi motivo de riso e satisfação na cozinha lá de casa. Riso e satisfação por ter o que comer na mesa rodeada de meninas e meninos de olhos grandes sobre as ações do dono da casa: “mamãe, pai é um enrolão?” perguntei ao ver o homem empurrá-lo porta a fora e gritar: “cabra safado! enrolão filho da puta!”. Minha mãe torceu as minhas orelhas com a raiva de quem acompanha de perto os negócios do marido e exige dos filhos “silêncio!”: “seu pai é um santo, ouviu?” gritou antes de jogar-me pra rua. São muitas as crônicas retornadas no tempo de barriga cheia e olhos diminuídos de saciedade. É disso que ainda mantenho o contentamento no bucho magro da invariável mistura “feijão com arroz” carregada no lombo do burro por meu pai graças à sua sagacidade para o negócio. Antes de narrar algumas histórias de vizinhos semelhantes a nós na arte da trapaça, cujo personagem central é o estômago, conto a minha engendrada por um homem dedicado a multiplicar níqueis dos outros, contudo, com talento para seu pequeno comércio. Pois bem, sobrevivemos não dos trocados recebidos pelo serviço extenuante, mas dos rolos que papai empreendeu. Não à toa o chamavam de “enrolão”, “trambiqueiro”, “gatuno” e outros adjetivos não menos injustos com o homem cujo único desejo era poder encher a pança dos filhos. Foi assim que acompanhei dos seis aos doze anos ele tanger o burro carregado de dois sacos. Um, bem menor, era o pagamento em farinha pelo trabalho de forneiro noite adentro na Usina. O outro, três vezes maior, disfarçado num lençol velho para não dar na vista, “a recompensa merecida” me dizia com a voz amaciada na sua moral de educarEu respondia ao gesto agarrando-lhe a mão ainda quente e gretada do rodo gigante com a admiração incondicional de filho obediente. Andávamos um quilômetro até o Armazém de tia Socorro aonde arriávamos a carga. Conhecedora dos trambiques do primo ela aproveitava pra dar uma liçãozinha de sua moral católica: “nada de cachaça, viu? Só comida pros meninos. Deus tá vendo!”. Partíamos carregados de mantimentos, uma rosca doce pra mamãe e dois embrulhos de açúcar que meu pai, tão logo se afastasse dos olhos da prima, trocava um deles pela garrafa de cachaça que o esperava na esquina. Mas vamos aqui a outras cozinhas semelhantes à minha na saciedade do estômago e esperteza de como enchê-lo: ─ Certa vez Zezão, filho do antigo vendedor de mel de abelhas, a quem perguntei se o produto era realmente “puro” respondeu: “que nada! colocamos calda de açúcar da metade pra baixo do vidro” disse ao abrir a garrafinha do provador: “tome... é puro... pra enganar!”. Com a morte do velho embusteiro, Zezão e os três irmãos passaram a administrar o negócio. ─ De outra feita eu conversava com Rosinha, filha de um vizinho conhecido pelos dotes de trapaceiro: “éramos sete meninas pra dar comida e educar na moral cristã” ela lembra com ar solene. “Jamais papai!” diz enfática, “aceitou que nos chamassem de “ralé”. “Você sabia, Vicente, que temos tios ricos na Europa?” “Verdade?” “Sim!” disse olhando para os lados. Como não avistasse ninguém prosseguiu na mentira: “papai era filho de portugueses!” “Hã?!” Voltemos pois ao pai das sete meninas que, longe de casa, arrebatava corações com a sua gabolice e mala estufada de panos de seda, lenços, calcinhas de renda, meias finas, pó, colônias... A malandragem do comerciante era conhecida de todos, motivo pelo qual viajava a localidades distantes de casa. Para se ter ideia de suas artimanhas, havia um comentário de que seu Quinino, como era chamado, estava de casamento marcado a alguns quilômetros dali e só foi impedido da aventura graças à visita repentina da mulher, grávida de Rosinha, a sétima flor – as meninas tinham todas nome de flor. Pois bem, o simpático senhor vendia perfumes e rouges para moças e senhoras que acreditavam nas fórmulas elaboradas na cozinha da família. “Aquilo é um safado”, disse mamãe à comadre orgulhosa da caixa de carmim. Esquecia ela que meu pai era igualmente um “safado”. De posse de incensos, corantes e farinhas encontradas em qualquer bodega, seu Quinino enchia potes, vidros e latinhas com produtos que seduziam até homens ansiosos por gomas para fixar os cabelos. As filhas o ajudavam a dar o toque final às gosmas à base de araruta, colorau e gotas do incenso conseguido no terreiro de dona Alexandina (falo dela logo mais). Graças às vendas seu Quinino pode ver as filhas formadas em algumas especialidades desenvolvidas na cozinha ou em algum cômodo da casa. Não obstante o ciúme das mulheres casadas, jamais se soube o que faziam de verdade as flores de seu Quinino.  ─ Outro dia Júlia estava furiosa com a vendedora de açafrão da terra: “vou denunciar no Zap-Zap” ela disse depois de fazer o teste e comprovar que o produto tinha mais pó de tijolo vermelho do que açafrão. “Hei!... stop! Esqueceu as enganações de sua mãe pra encher o bucho de vocês?” perguntei com conhecimento de quem sabe o valor real de um saquinho de açafrão misturado... “cansei de vê-la vomitar com o cheiro podre das galinhas goguentas” cuspi longe e continuei: “escaldava, pilava os temperos e transformava a ave em iguaria disputada no bar de Tetê”. Perto de nós morava um casal simpático, dona Tânia e seu Humberto, que havia adquirido um grande terreno no entorno da casa. Ali plantaram dezenas de pés de caju cuja carga era abundante em dezembro. Eles deixavam que chupássemos os frutos contanto devolvêssemos as castanhas: “valem ouro” ele dizia. Seu Humberto, assim como meu pai, vendia a mercadoria no armazém de tia Socorro. Certo dia, ao entrar de supetão na casa do casal pra devolver as castanhas, encontrei-o misturando um saco de pedras ao produto que seria pesado na mesma balança que pesava a farinha de meu pai. Seu Humberto deixava o armazém carregado de mantimentos sem que tia Socorro, feliz por fazer negócio com alguém “tão distinto” averiguasse o produto do homem de camisa de linho e cruz de ouro no pescoço.  ─ Quis saber de Totonho por que dona Alexandrina tinha os pés inchados. “Não sabe?” perguntou com o mesmo cinismo do tempo que seguia o pai mato adentro a procura de sapos. “Não, não se!”. “Mãe ficou com os pés deformados de pisotear no terreiro. Castigo!” Esquecia ele ter sobrevivido até ali graças aos trabalhos da mãe de santo cujos esforços físicos eram agora motivo de aleijo e condenação. Pois bem, entre os serviços oferecidos a costura da boca do sapo era o mais requisitado por esposas, ou amantes, no intuito de amarrar o homem cobiçado. “Meu pai era encarregado de capturar sapo no mato, trazia o cururu e mãe cosia a boca dele depois de enfiar lá dentro a foto, cabelo, sangue, ou outro pertence dos amantes. O bicho era abandonado pra morrer longe... Dias depois, o resultado... A madame ganhava sempre da rapariga!...” lembra com a saudade de quem foi agraciado por esposas ricas e satisfeitas com o negócio: “recebemos muitos presentes pelo serviço “bem feito”. As sobras do dinheiro a boa senhora investiu na construção de imóveis para os “meninos”, como ainda os chama. Soube, porém, que os malandros haviam feito negócio com o pastor recém-chegado do Rio de Janeiro. Apressado em acolher suas “ovelhas” num grande templo o religioso demoliu as casinhas e ergueu ali a primeira igreja dos moradores que, até aquele momento, conheciam apenas os poderes da “velha catimbozeira”, como passou a ser chamada a mãe de santo pelos antigos clientes, agora fiéis ao pastor: “só ele tem poder pra afastar o demônio!” diz em voz alta irmã Rosinha ao passar em frente à casa de dona Alexandrina. Totonho e os irmãos voltaram a morar com a mãe e assumiram o posto de coletores das oferendas na igreja. A última vez que os vi estavam felizes por quebrar os santos e patuás do terreiro: “aquilo era coisa de satanás!” disse irmão Totonho com a Bíblia debaixo do braço. “Se vocês venderam as casas, quebraram as imagens, destruíram o terreiro... como vivem?” “Ora, Vicente!... se esqueceu dos dois sacos de farinha de seu pai?” “Kkkkk...” “Kkkkk...” Nossa gargalhada ecoou na igreja lavada com os incensos de dona Alexandrina...

Ana Barros

Natal, 23 de março de 2021.