quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Capital


Não é à toa que meu padrinho Vitorino repete a frase que me deixa vermelho de vergonha cada vez que peço a bênção. Ele, sentado na cadeira de balanço, porta aberta de frente pra rua, de onde todos podem vê-lo tirar o chapéu num solene cumprimento, diz alto e grave “Deus te dê fortuna” e solta da varanda uma moeda que cai reto na minha mão humilhada. Com o passar do tempo percebo o sentido daquele gesto. Era a senha para que eu decifrasse a vida pindaíba que carregava desde já. “Deus te dê fortuna” era o desejo do homem rico e orgulhoso convencido sempre das dádivas do céu na vida daquele que ajoelha e pede. E eu, moleque que veste roupas de segunda mão e dorme em cama com mais dois, devo ser como meu padrinho, ter calças de linho branco com os bolsos estufados de notas. A sua máxima de “homem de bem” estava no tamanho dos bolsos da calça. Os seus, não podendo fugir à premissa, exibiam dois volumes quadrados de cédulas variadas. As menores separadas das maiores. Explicava: “a salvação da alma está na quantidade de esmolas”. As notas de valor significativo guardava no bolso mais fundo e vistoso. Não explicava o porquê, no entanto, todos sabiam que a intenção era provocar a ira dos invejosos. E um destes, só eu sabia, era o meu pai, que me esperava na esquina de volta da bênção do domingo e arrancava a moeda da minha mão com o mesmo impropério: “aquele muxiba só deu isso?”.  
Lá em casa falta tudo, principalmente dinheiro pra fugir das cobranças penduradas no prego de Seu Felizardo. “Ah se eu tivesse o mar!...”, suspiro olhando a capa do meu caderno com a ilustração do mar azul a se misturar com o céu azul de Gullar que, mais tarde, não me cansaria de analisar em sala de aula com os meus alunos verdes de metáforas. E por falar em metáfora, logo cedo descobri a diferença entre o “duro” que mora na cidade onde tem mar e o “duro” que vive longe dele, o mar, esse desconhecido dos que fazem da sala de estar o seu oceano pacífico. Sabia pelas fotografias maravilhosas do livro de História que ele, o “duro”, estava lá, a poucos metros das ondas que trazem de volta o sol nublado de tédio no correr dos dias cansados. De lá ele volta radiante, quase sempre bêbado, esquecido. Volta mais pindaíba ainda, porém de saco esvaziado.
 Mas foi num domingo mofado do Baú de Sílvio Santos que conheci Capital. Não sou o homem que meu padrinho Vitorino quis que eu fosse, mas tenho algumas notas de dez e de vinte no bolso e acabo de chegar à cidade onde mora a minha irmã há mais de vinte anos, o mesmo tempo que não nos vemos. O ônibus estaciona na Rodoviária depois de três dias de viagem e muito barro vermelho no meu bigode, que de preto ficou ruivo. Um sobrinho me espera com ar de quem está ali empurrado. O cumprimento é mudo e com a mão frouxa: “Já não pede a bênção...”, observo sem mágoa. Aliás, sinto alívio em não constrangê-lo na repetição do hábito há muito esquecido por minha irmã no sofá da sala, como veremos adiante. Meu sobrinho tem pressa em se livrar de mim. Com receio de que apronte alguma peça comigo considerei dar a ele as moedas que juntara de troco na viagem. Porém, em segundos, o rapaz havia me deixado para trás com a mala e o saco de comidas e correu cortando a fila que se formara mal o transporte parou no terminal. Subo no ônibus com dificuldade, sem ajuda. Alguns passageiros fazem palavra cruzada, outros cochilam nos assentos impregnados de marcas de fadiga. A maioria, em pé, colada um no outro, se balança indiferente aos movimentos bruscos do veículo.  Meu sobrinho tem mais sorte que eu. Alguém desce e ele, quase derrubando a senhora a seu lado, cai sentado na poltrona. Quanto a mim, vou em pé com a mala entre as pernas. O saco de comida atrapalha a passagem no corredor, é impossível ser diferente. O jeito é passar por cima dele, que já começa soltar cheiro. “Que fome!”, meu estômago reclama ao sentir o cheiro da jaca que  escapa do saco, lembra que não como há quase um dia. Não dou importância nem à fome tampouco aos resmungos dos incomodados com o barro vermelho que voa do meu bigode em direção a eles. Esqueço os passageiros por alguns instantes e passo a admirar a paisagem da grande Avenida. Pergunto ao meu sobrinho que planta é aquela, enorme, de galhos flexíveis parecendo uma cascata de cipós: “pindaíba”, ele diz de dentes serrados em completo desinteresse de continuar o papo. “Quer dizer então que pindaíba é uma árvore?” Sem resposta.  O silêncio dele dizia: “deixe de pagar mico, bocó!” Sem conter a ansiedade quase machuquei as mãos ao apertar o apoio de ferro no qual me segurava. Quero saber logo o que é pindaíba além de “duro”, além de “liso”, qual a relação entre as duas palavras e aquela árvore medonha.  Aproveito que o sinal ficou vermelho e deslizo o dedo sobre “pindaíba”. Está lá: “vem do Tupi pindá= anzol e yba=  vara. Era uma vara usada pelos índios como caniço. Quando não pescavam nada voltavam apenas com a vara na mão, ou seja, na pindaíba”. “kkkkk...”, não consegui segurar o riso diante da estranha definição. Envergonhado do “kkkkk” dentro do ônibus lotado de mal-humorados olho em todas as direções para ver se alguém compartilha a minha surpresa. Fico feliz em constatar que ninguém, nem mesmo o azedo do meu sobrinho, havia dado a menor importância ao “kkk”. Foi então que senti uma mão apertando o meu braço apoiado no encosto da poltrona do lado. Uma senhora visivelmente aborrecida me faz inclinar até ela e dá a ordem: “não faça isso! Em Capital não se liga celular dentro do ônibus”. Respeito a ordem e enfio o aparelho no bolso. Mas ali, na catatônica Avenida por onde o veículo passa arrastando passageiros sombrios com seus celulares desligados e escondidos, sou tomado por outra sombra, a que me deixa desapontado, o mesmo desapontamento que vou sentir uma hora mais tarde ao encontrar a minha irmã no sofá da sala. A sombra não vinha das copas majestosas, nem dos prédios de edifícios, mas dos contornos redondos de Capital, geometria que imediatamente associo à passagem bíblica do bezerro de ouro cercado por ovelhas tristes e de carne pindaíba apodrecida longe do mar, este, que se dedica a roer e esquecer o que rói. No instante em que o ônibus atravessa a Avenida que liga o Norte ao Sul da cidade vejo que as coisas mudam apenas de humor e geografia. Em todas, porém, o imperioso tédio que oscila da embriaguez à ressaca. Se tivesse mar corriam a ele e se afogavam na evasão salgada e momentânea. Porém sem mar, Capital é uma enorme bacia redonda na qual o mergulho não passa da sala.  
Meu sobrinho corre à frente. Ali mesmo na sala desce as calças e puxa o celular do fundo da cueca. Tranca-se no quarto. A minha irmã sorrir satisfeita para Sílvio Santos. Tem as pernas gordas sobre o sofá, uma bacia de pipocas de um lado e a garrafa de coca-cola do outro.  

Ana Barros                                            
Natal, 29 de novembro de 2016.