segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

RECOLHIMENTO DO MAR NOTURNO


O véu é espesso e desmancha o mundo
Ausência que tudo cobre...
Já não escuto e nem vejo
o que antes era achado
Dirijo os meus olhos para este mar
que já não é mar, para este céu que já não é céu:
a noite me envolveu na penumbra da
ilusão que faz de tudo nada
Tenho às mãos o que deixou de ser segredo
Prazer imóvel que move
um oceano nos olhos

Ana Barros


sábado, 8 de dezembro de 2012

MEIO DIA

O lugar a voz e a imagem
aonde quer que eu fique
ou vá:
alfinetes na carne sem alma
O gelo secou a vergonha e a pele já sem assaltos
ao sol do meio dia acalma
Mas o olho cego exige
desmanche à dureza azul
Mas o que teve início não dorme
Mas o que alongou não encolhe
Pode uma sombra aqui e acolá
Pode um simples bater de olhos... de novo
os  ponteiros se juntam

Ana Barros

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

CIRCE


Talvez por uma questão de segurança, facilidade na aceitação das idéias, cumplicidade de afetos, ou por mera afirmação naquilo que acreditamos próprio dos    anos que temos,   ou  ainda por pura pretensão e desinteresse pelo que é diferente, nós, os     inquietos outonais temos a tendência a escolher como parceiros de amizade, ou de amor,  aquele cuja idade se aproxime da nossa.
É cômodo tagarelar na presença de alguém em quem podemos projetar a nossa sombra. Sombra que nos arremesse para um espelho espiritual. Outras vezes, o discurso performático de nervos, de verbo, de gestos e nuances, deixa-nos cegos ao mundo em redor e de olhos voltados para as próprias entranhas. O que aí conta é a exibição estouvada de nossas vaidades. Nesse tipo de conversação em que esquecemos da presença do outro, experimentamos um êxtase comparado ao sentido por evangélicos fanáticos no auge do devaneio religioso. Somos tão autossuficientes em nossos juízos de valor quanto um deus.  Que mundo haveria além da inquietante subjetividade que nos faz sentir acima dos demais? A objetividade, a atenção para o mundo circundante ficam para mais tarde quando o tempo cuida de acalmar a ansiedade, de fechar as asas cansadas. Em Seis propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino fala belamente dessa temporalidade invocando os mitos de Mercúrio, ou Hermes, deus alado da comunicação e do princípio de individuação, e Vulcano, ou Hefaísto, “deus que não vagueia no espaço mas que se entoca no fundo das crateras, fechado em sua forja onde fabrica interminavelmente objetos de perfeito lavor em todos os detalhes – joias e ornamentos para os deuses e as deusas, armas, escudos, redes e armadilhas”. Num momento somos ágeis, alados e o mundo a extensão ególatra de nossos voos. Noutro, possuídos pela consciência da morte e do gozo único sobre a terra, podemos forjar na toca em que caímos com o nosso peso temporal, os mais belos instantes de prazer do mundo translúcido.
Fôssemos menos nervosos prestaríamos a atenção nos adolescentes e, particularmente, em algumas mulheres que chegaram além dos sessenta e a nossa escolha preferencial por companhias sofreria um abalo vertiginoso. Descobriríamos espantados a quantidade de tempo em que estivemos ensimesmados, mesmo na aparente companhia de outros, enquanto outras pessoas, na ponta inicial os adolescentes, e as mulheres pós-sessenta no final da escala em que nos posicionamos ao meio, ou não desenvolveram ainda um olhar inteiro (moral), ou já o cegaram de vez. Somos pois o grau maior de uma tensão aniquiladora. Estamos agonicamente situados entre o caos do princípio e a possibilidade da ordem, que é o fim.
O problema dessa escolha arbitrária é a singularidade existencial das mulheres cuja realidade privativa e subterrânea tomou um rumo diferente daquele conquistado pelos homens, que é o espaço exterior, a vida objetiva. Déssemos trégua à ansiedade por seres semelhantes a nós mesmos e apurássemos os sentidos na direção desses dois grupos que tanta reprovação provoca nos espíritos sensatos e comedidos e a promessa da felicidade seria então uma efetividade em nossos dias mais lúcidos e produtivos e não um acaso do destino, fatalmente selado como ideal no fim da jornada.
Os impulsos ainda incondicionados do adolescente só diferem num aspecto da força “desorganizadora” da mulher pós-sessenta. Aquele é um desbravador, um deus rebelde e inconsequente que tudo pode, um sátiro dando cambalhotas num destino que se prenuncia. A mulher pós-sessenta, pela imposição cultural de sua época, obrigada a frear a fúria primordial na profissão ou no casamento, adormece os impulsos para mais tarde, livre das gravidezes e dos filhos já adultos, lançar o seu grito de liberdade. Distante da tagarelice maníaca dos adolescentes e cheia de desprezo pela velhice adere a uma fina ironia, algumas vezes torna-se até rabugenta e utiliza-se de um humor ácido e debochado para enfrentar resignada a vida insípida ao lado dos filhos indiferentes e do marido maquinalmente silencioso. É a anti-Medéia liberta das peias do pudor e das obrigações conjugais. Mataria os filhos não por ciúme do marido infiel mas pelo retorno à liberdade perdida. Emancipada das mamadeiras, das fraldas e de um sexo frio, essa aniquiladora de valores seria agora bacante não fossem os anos de exaustão física e mental consequentes de uma rotina diária de fadiga e repetição, o preconceito em torno da velhice, a moral social e familiar diante do comportamento dessa fêmea que se tornou mulher tardiamente.
Um tipo mulher síntese do sabor e da sutileza doce-amargo do que é humano, ela experimentou toda a sorte de derrotas, frustrações e êxtases místicos, intuitivos (menos sexuais), sem contudo manter grande intimidade com o espaço lá fora. É dentro da própria casa, em contato com os filhos e o marido, que adquire vícios, aprende a manipular os sentimentos e incorpora ao longo do tempo uma personagem em desacordo com a que vinha desempenhando como mãe e esposa. É no devaneio que essa deusa, cínica e erotizada, lúcida de sua derrota, dá um soco na pudicícia paralisante da família e, mesmo confinada entre quatro paredes, agride a vergonha daqueles que a queriam deserotizada por ser “uma senhora”.
É comovente a ânsia de viver dessa que sabe já ter consumado uma enorme quantidade de vida. Sobra-lhe pouco tempo... Descobre-se real, um em si capaz de amar e ouvir os apelos carnais do mundo. Perdeu a moral e o respeito que a alimentaram até então. Não tem mais drama interior.
Mas o físico dessa heroína da despedida não está em harmonia com o intelecto. Precisa agora de artifícios para sobreviver como bengala para as pernas reumáticas, óculos para a vista cansada, prioridade em filas de banco e supermercado, pois é idosa, etc., etc. No entanto, nuca esteve tão lúcida, apesar de ninguém na família dar atenção às suas conversas nem valorizar o seu saber. Ela lê desolada nos olhos de todos uma mistura de raiva e intolerância pela inutilidade a qual se transformou. Não vê saída senão resignar-se ou fingir.
Adolescentes e pós-sessenta são dois extremos de uma felicidade sem regras. Em ambos, a fruição natural desse estágio psicológico é sufocado primeiro pelos pais, aliados do Estado e das instituições em geral, detentores de poderes soberanos sobre a vida e a educação de homens e mulheres. No segundo momento, pelos filhos que, já adultos, profissionais e sem tempo para perder com conversas ociosas, fazem vista grossa à pessoa que ronda no entorno da casa como um espectro que todos esperam ansiosos a hora de sumir de vez.
Não fosse a invisibilidade em que é transformada, os filhos compreenderiam a dramaticidade e mesmo certa dose de humor denunciados nos gestos da mulher que são o resumo simbólico da saga familiar. Simbólico que é de todos e de cada um daqueles que são impotentes para desfazer a malha conflituosa cristalizada numa única pessoa, a mãe, que se joga involuntariamente sem mais nenhuma chance de interferência no mundo, com a sua ironia estéril, com o seu distanciamento teatral da mesmice cotidiana em que viveu até se dá conta de si mesma. Em seu devaneio somente ela no reduto doméstico consegue rir de si e dos outros numa aura de lucidez disfarçada na insensatez.


 Por que  perdermos tempo falando e ouvindo a voz lamurienta da moral quando deveríamos atentar para a grandeza dessa Circe contemporânea que, do alto de sua magia, transforma todos ao seu redor em porcos, ou para a irresponsabilidade juvenil? Não existe resposta, pois as viagens são empreendidas de forma nebulosa no labirinto que não permite ao viajante enxergar o ponto de chegada.

Ana Barros








segunda-feira, 8 de outubro de 2012

UM ARTISTA DA FOME


Um dos contos mais surpreendentes de Kafka, Um artista da fome, conta a exibição pública de um jejuador de circo, cujo espetáculo principal tem como atração a contemplação da multidão do homem faminto e esquálido dentro de uma jaula. No início, o jejum programado para durar 40 dias, por exigência do jejuador, se estende por tempo indefinido até consumar-se na morte do artista.  

Entremeado de imagens que nos levam tanto ao homem e à época que se despede (idealismo/romântico), quanto ao outro momento que se anuncia (moderno), Kafka introduz em sua prosa o abandono do indivíduo em função da supervaloração da multidão e do gosto massificado do espetáculo. Sedento por novidades, o público se cansa do ritual diante da jaula e parte para outras diversões. O empresário, que vê a cada dia a multidão debandando, dispensa o jejuador e este se oferece para trabalhar num grande circo com sua infinidade de homens , animais e aparelhos que sem cessar se substituem e se complementam uns aos outros... E, já tendo passado muitos e muitos anos jejuando sem ser visto por um público agora indiferente tanto à fome quanto à causa real de seu enfraquecimento, talvez sua esquelética magreza proviesse de seu descontentamento consigo mesmo, o homem estava completamente coberto pelas palhas que forravam a jaula, tendo um inspetor passado por lá e perguntando por que deixavam a jaula desocupada, quando deveria ser ocupada por algum animal, foi aí que se deram conta de que o jejuador arquejava.  

Aqui talvez o instante supremo do conto quando o inspetor mantém o único diálogo da história com o jejuador. Este aproxima os lábios com dificuldade do ouvido do outro e responde por que continua a jejuar: – Porque – disse o artista da fome levantando um pouco a cabeça e falando na própria orelha do inspetor para que suas palavras não se perdessem, com lábios alargados como se fosse dar um beijo -, porque não pude encontrar comida que me agradasse. Se a tivesse encontrado, podes acreditar, não teria feito nenhuma promessa e me teria fartado como tu e como todos. Morre logo depois. Os empregados limpam a jaula e jogam fora o corpo magro misturado às palhas. Em seu lugar puseram uma pantera jovem, cuja energia e alegria de viver atraíram a multidão, que voltou correndo a comprimir-se contra a jaula.

Há nessa metáfora, até certo ponto cômica, a angústia do homem moderno em descobrir-se dividido entre a negação de uma existência que, na sua cada vez mais avançada civilização tecnológica, despreza o indivíduo em função da massificação de consumo e diluição do que até então parecia eterno, como bem deixa antever no texto a mudança constante dos empregados do circo e a insistência em continuar na mesma condição de jejuador, ou seja, na esperança mítica de que a existência tenha compaixão do infeliz caído no mundo e ofereça o paraíso reconquistado dos filhos de Caim.  Mas a natureza indiferente e a vontade de potência, mais animal que humana, forçam o homem lúcido a enfrentar a vida, mesmo com toda a estupidez das multidões, com o vigor e a esperteza de uma jovem pantera.

A sensibilidade do artista da fome, que o desarma e enfraquece diante da corrente existencial dos fatos, aniquila qualquer movimento em direção ao salto sobre a desordem. Jejuar pode ser ainda o ato mais provocante da vontade de nada, pois o mundo com suas pessoas e vulnerabilidades não promove o alimento necessário para um ser cujo corpo deprime das inquietações do mundo.

Kafka nos mostra com seu herói fracassado a outra face moral da vida. A pantera cheia de energia é a superação sutilmente revelada como símbolo transfigurador e a justificação da existência com o que há de enérgico e vibrante. Para aquele que sobrevive do olho e da compaixão do outro em sua inutilidade humana, restam a indiferença e a morte. Ou o eterno jejum metafísico.

Ana Barros

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A MORTE FELIZ


Para quem leu O estrangeiro, Camus pode parecer um escritor estranho com seu personagem avesso às convenções e ao comum da cultura humana. Mata por motivo fútil, não sofre à morte da mãe e não ama Maria, apesar da sensualidade e de tudo girar em torno das sensações do corpo. Na frieza e no absurdo da história nos identificamos e somos levados a fazer uma leitura transfigurada do pequeno romance. Camus, em sua estranheza, nos força a agir na lucidez, mesmo quando a consciência fica clara na solidão mais atroz, aquela que antecede a morte.

A morte feliz, romance póstumo, talvez um esboço de O estrangeiro, uma vez que os originais são anteriores à publicação deste, entre 1936 e1938, tem o personagem central com o mesmo nome, Mersault, e trata do mesmo tema, a revolta do homem diante do absurdo existencial, do qual não tem saída a não ser por meio do suicídio (O mito de sísifo, do mesmo autor), ou aniquilando a revolta no fogo da paixão clarividente da existência. “A conquista da autenticidade por um movimento na solidão e na natureza” justifica A morte feliz.

Ao contrário de Fausto (Goethe), protótipo do homem moderno, ativo e hedonista, o herói ocioso de Camus defende a inação sem contudo abandonar a entrega erótico-sensual de seus dias à natureza luminosa do sol, do mar e dos corpos femininos sem jamais se entediar nem sair à cata de paraísos artificiais. As mulheres, a amizade com elas, o sexo, o sol e o mar, símbolos da sensualidade, são presença marcante nos textos de Camus, sem com isso haver qualquer entrega nas relações cotidianas e comuns dos casais. Tanto em O estrangeiro quanto na Morte feliz, Camus procura despersonalizar o máximo para poder mergulhar na pureza e concretude da natureza e aí, na solidão e comunhão de iguais, ser feliz. “Até aqui, vivera. Agora, podia-se falar de sua vida. Desse grande e devastador arrebatamento que o levara para a frente, da poesia fugaz e criadora da vida, nada mais restava agora senão a verdade sem rugas que é o contrário da poesia.”

Grande leitor de Kafka e Dostoievski, Camus aborda o niilismo de seu personagem por um viés completamente amoral, humano em todos os sentidos, fugindo assim da perturbação judaico-cristã que tanto atormentou os dois escritores e tantos outros artistas que jamais conseguiram libertar a imaginação dos fantasmas religiosos. Camus rompe radicalmente com a metafísica, seja ela oriunda de religiões, da ciência ou mesmo da filosofia. O homem de Camus deixa o romantismo e a tragédia de lado para se assumir com toda a carga que o mundo comporta. Revolta-se, perde-se, agoniza em meio ao absurdo que é saber-se mortal e que nada tem sentido no universo. Mas esse mesmo homem, alerta e lúcido de toda a sua tragédia, se faz soberano de si mesmo e justifica-se no tempo finito como um Dom Quixote pleno de suas faculdades mentais, não devorando noite adentro romances de cavalaria, porém, virando as páginas destes num desprezo claro de quem alcançou a verdade. “Não se nasce forte, fraco ou com força de vontade. As pessoas tornam-se fortes, tornam-se lúcidas. O destino não está no homem, e sim à sua volta”, pensa Mersault perto de morrer.

ASSASSINATO JUSTIFICADO

Ao ler A morte feliz, possuídos da moral que nos impede de matar o outro, tendemos a ficar chocados com a frieza com que Camus leva seu herói assassinar um homem para poder ganhar a sua liberdade, pois que o outro tinha o que ele precisava, dinheiro. Patrice Mersault é um funcionário medíocre que trabalha oito horas diárias e não consegue tempo livre nem dinheiro para viver com prazer. Conhece o ex-amante de Marthe, sua atual namorada, Roland Zagreus, deficiente de cadeira de rodas, rico, culto e educado, que passa a gostar de Patrice e com este mantém diálogos reflexivos que estimulam Mersaut a matá-lo e roubar a fortuna guardada pelo inválido.

As semelhanças com Crime e castigo são bastante visíveis no sentido niilista dos personagens principais em matar por considerar o outro desnecessário ao mundo, a velha de Crime e castigo por ser desprezível em sua usura e o outro, Zagreus, por ser metade homem, não tem as pernas, e não dispor do tempo e do dinheiro com a liberdade plena de existir, desejada por Mersaut, jovem, atlético, viril e consciente das limitações existenciais para as quais toda a moral perdera o sentido.

Longe das angústias e da culpa que atormentam o antes racional e autossuficiente Raskólnikov, Patrice é lúcido e “inocente” de qualquer traço de arrependimento. Mesmo quando ensaia uma confissão ao amigo Bernard, “Não porque o segredo lhe pesasse. Não havia segredo nisso. Se até então se calara, era na medida em que, em certos meios, guardam-se os pensamentos, por saber que se chocariam com os preconceitos e a estupidez”.

Camus trata a lucidez com tanta veemência que, para nos convencer do real poder humano em sua finita existência, utiliza-se do assassinato como símbolo para nos fazer refletir sobre a inutilidade da moral quando tudo é permitido entre os homens, até mesmo matar o outro. Se Ivan Karamazov duvida: “Se Deus não existe, tudo é possível”, Mersault não expressa nenhuma dúvida, sabe que é mortal e também o que quer do único mundo que conhece. E o que ele quer do mundo é real, táctil, natureza e não ideia.

Patrice Mersault poderia ser um boêmio, ou o dândi tão cobiçado por poetas da França do século dezenove, mas ele é lúcido demais para ser um decadente. Enquanto o herói russo encontra redenção no sofrimento e na expiação da culpa, Mersault considera todos os atos humanos inocentes, uma vez que não há nada além do corpo que quer e da lucidez que se entrega. “Se sou feliz, é graças à minha má consciência. Senti necessidade de partir e de conquistar esta solidão na qual pude confrontar dentro de mim tudo o que havia para ser confrontado, o que era sol e o que eram lágrima... Sim, sou humanamente feliz.” Aqui a ênfase nitzscheana do amor fati, da conquista da autenticidade de um homem-deus. A morte vai encontrá-lo com o mesmo olhar e com o mesmo desejo. “E, pedra entre pedras, ele retornou, na alegria de seu coração, à verdade dos mundos imóveis.”

Ana Barros

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O grito

Quem usa o transporte coletivo nas capitais nordestinas está familiarizado com jovens que todos os dias entram nos ônibus para divulgar o programa de recuperação de dependentes químicos ao qual fazem parte. São rapazes entre 18 e 24 anos que fazem o intercâmbio com outros internos que vão para o Estado de onde vieram. Mochila do lado, camiseta com o nome de Jesus, eles discursam com voz alta e cadenciada.

O que mais chama a atenção nesses rapazes, aliás, nunca se vê uma mulher entre eles, é a articulação emocional e carregada de realismo no depoimento de suas misérias. Fico atenta à conversa alta e enfadonha, pois nenhum passageiro gosta de ser incomodado nessas viagens entediantes do dia a dia das capitais. Mas, prestando bem a atenção naquele grito, rape cru, sem acompanhamento, pode-se extrair uma experiência de vida e consequentemente a morte de valores. Aqueles jovens desceram ao inferno e, no limite da destruição, entregaram-se nas mãos do doutrinamento católico, espírita ou protestante, que promete resgatá-los uma vez que o Estado brasileiro não dispõe de programas sérios de enfrentamento da questão, deixando quem precisa de ajuda correr de um lado para outro em pontos de ônibus em busca de socorro.

Quase todos dizem já está fora das drogas e do crime há algum tempo. Casaram, tiveram filhos. Uma família resgatada graças ao recolhimento em casas de apoio, cuja terapia é a via crucis da expiação pública. Além do desafio em se jogar no mundo hostil com as suas dores e as dores daqueles que os amam, vendem kits com canetas, bolsinhas para celular e outras miudezas a preço simbólico para ajudar na manutenção da instituição.

Diante da indiferença social, são apaixonados como um mártir. Acreditam e querem convencer aqueles que os desprezaram que são capazes de reverter a história, de ser um igual. Sabe-se porém o quanto é difícil acontecer essa empatia uma vez que a própria sociedade esconde neuroticamente as particularidades de quem diz que é diferente daquilo que pauta a cartilha moral. Para aqueles vindos das classes populares: o subúrbio, o gueto, a rua, a penitenciária e o manicômio. Àqueles de alto poder aquisitivo: o acobertamento em condomínios fechados, em clínicas particulares de recuperação, em longas viagens ao exterior, jamais a exposição pública dentro de um ônibus como terapia.

A última vez que vi e ouvi um desses rapazes falando o seu rape, comparei a cena com a mesma situação se fosse um jovem de classe social elevada. Para este a confidência com o psicólogo numa sala privada, longe de ouvidos e olhos curiosos. Para aquele, o eleito entre os milhares que sequer chegarão ao estágio do ônibus, a publicidade, a verbalização sem paredes nem psicólogo atento a cada detalhe. Para um, o escondido, o privado, a confiança e socialização. Para o outro, o escárnio e indiferença da maioria dos passageiros que chegam a ameaçar com denúncias à polícia numa demonstração de ódio pela pessoa que se revela como é diante do mundo na esperança de ser aceito e integrado. No entanto, observando a fundo o discurso repetido a cada subida no ônibus, encontramos naquele fluxo ritmado uma riqueza simbólica e uma profunda vontade de viver. E não há terapia mais humana, mais sensível, mais quente do que se expor perante o outro e vomitar o dejeto reprimido.

Ana Barros

segunda-feira, 30 de julho de 2012

O fim e o princípio


Quando conheci o Juazeiro do Padre Cícero (CE), em agosto de 2011, fiquei surpresa com a presença de um pau-de-arara vindo de São Luiz (MA). Era o único do gênero no meio de dezenas de ônibus e vans provenientes de todos os cantos e recantos do Nordeste. À noite, fotografei o veículo com os romeiros dormindo em redes armadas sob a lona. Pela manhã, logo cedo, procurei o pau-de-arara para finalizar o registro, no entanto, frustrei-me ao ser informada pelos vizinhos do rancho onde pernoitei que os maranhenses haviam partido na madrugada, driblando assim a Polícia Rodoviária, uma vez que não é mais permitido esse tipo de transporte na BR.

Esta passagem veio à memória ao voltar a Jaçanã (RN) e encontrar uma realidade bem diferente daquela década de 1970, anos da grande seca, quando o pau-de-arara era o transporte sinistro que levava embora homens jovens e produtivos como bóias-frias das lavouras e indústrias do Sul maravilha. Para trás deixavam mulher e filhos famintos. Algum tempo depois todos estariam juntos num barraco da periferia da grande São Paulo ou de outra região em expansão como Brasília, Minas e Goiás. De lá para cá pouco sabemos do que sobrou da vida desses retirantes, quem são e o que fazem hoje e que cultura herdaram os filhos e netos da geração do êxodo.

Mas isso é assunto para outro momento com mais detalhe histórico-sociológico.  O que interessa aqui, portanto, é a percepção da ocupação do espaço deixado pelo pau-de-arara com a ausência de seus passageiros tristes – imortalizados por Luiz Gonzaga na Triste Partida, poema de Patativa do Assaré – e conseqüente modernização das estradas e do transporte urbano.

Jaçanã é apenas um exemplo micro da transformação que vem ocorrendo no interior do Nordeste no intervalo entre o pau-de-arara e o avião. Com quase dez mil habitantes, a cidade cresce em ritmo acelerado e mostra-se com um forte potencial turístico junto às cidades vizinhas que formam a Borborema potiguar, cuja ascensão econômica e cultural vem se dando pela abertura de universidades e conseqüentes instituições de apoio, pesquisa e contratação de mão-de-obra especializada.

Quem observa cidades do perfil de Jaçanã com saudosismo de uma época pacata, sem a correria do mundo expandido, vai encontrar apenas a decadência corrompendo todo o tecido social. Vai dar ênfase à crescente onda de crimes, assaltos, prostituição, tráfico e consumo de drogas. Enfim, lamentará que o interior se nivelou em desgraça aos grandes centros. Convenhamos uma visão real e pessimista. Porém, há outro olhar, real também, mas afirmativo, que pode ser direcionado à outra margem. E é essa margem que comecei a analisar em minhas caminhadas e passeios de bicicleta pelos arredores de Jaçanã.

Vi no começo e no fim do dia ônibus, vans, motos e bicicletas transportando crianças de casa para a escola e da escola para casa. Já é parte da paisagem das cidades brasileiras o ônibus amarelo modelo americano com o nome na lateral ESCOLAR. São comuns também os benefícios do governo federal às famílias pobres, bem como a extensão dos Institutos Federais de Ensino- IFs. Iniciativa criticada por parte da mídia e por alguns que ainda mantêm a cabeça na casa grande e as decisões entre a senzala e o pau-de-arara.

Basta contemplar a cena matinal quando dezenas de crianças e jovens, em vez de irem para a roça com os pais vão à escola, para descobrir que algo positivo se constrói na educação da cidade. Nenhuma saudade de uma época em que a ênfase era dada à agricultura familiar, não esta que se pratica hoje com uma política de crédito, tecnologia e fixação do homem à terra. Mas àquela na qual os pais aumentavam a prole para o trabalho braçal e dali ninguém mais saía. Vidas limitadas entre o roçado e o fogão; o estômago e o cemitério.

Na efervescência multicultural contemporânea enxerga-se o aceleramento da desconstrução da metafísica da sobrevivência, da mística quase beata da simplicidade misturada ao messianismo, humildade, lassidão e barriga cheia. O documentário O fim e o princípio (2005), de Eduardo Coutinho, é uma riqueza de detalhes dessa vida desenhada pela enxada cortando a terra fertilizada com as sementes da miséria. Eduardo aprofunda a história até o fecho com a velhice de mulheres e homens consumidos por uma existência plana. O cenário é de decomposição. As fachadas, as paredes, os móveis, os corpos, a história de cada um, são corroídos, imprestáveis num tempo que os acomodou na indiferença dos dias sem ação.

Mas nem tudo está perdido no documentário de Eduardo Coutinho. O próprio nome é um alento: O fim e o princípio. E o princípio, no filme, é a simbologia do real que acontece nas cidades do interior nordestino. É a jovem professora, os agentes de saúde, os estudantes, meninos e meninas que substituíram a lida na lavoura pelo saber, que rompem o marasmo, a nulidade dos velhos impotentes em suas cadeiras de balanço, ou sentados perto do fogão de lenha (cenas do filme) com seus cachimbos acessos na chama da lamparina de querosene esperando o filho que partiu há trinta anos, ou o benefício da previdência no final do mês para comprar fumo e cachaça na cidade.

Quanto ao pau-de-arara, é lamentável que ainda sobreviva no estado do Maranhão num momento em que viver bem pode significar rompimento com a ignorância que perpetua a miséria material e intelectual de um povo que se descobre capaz de agir além das fronteiras do fogão e da casa grande, além de nomes ilustres da política paternalista e oligárquica que teimam em não deixar o borralho da cultura.

Ana Barros

sábado, 21 de julho de 2012

O enforcado


E eu a saltar fora do laço antes do aperto fatal ri da malandragem diante da morte e mais uma vez dava uma chance à mentira que equilibra para mais adiante balançar a corda e de novo jogar à terra o fardo humilhado. O fardo fez um nó nas costas e o pescoço grosso solta o enforcado que, feito um cão velho e pulguento, ergue-se das cinzas já nem um pouco desprezíveis, sacode o pelo e deixa cair os carrapatos. Até gostaria de novo pranto... Força um choro, esfrega os olhos, geme... Mas é tarde e as costas doem no lugar das crateras calcinadas lembrando que devo levantar, pois um resfriado me levaria ao buraco raso. Ergo-me e vou tomar o meu copo de café com leite. O jornal velho e amarelo de antes de... Oh, perdi os óculos e os jornais esquentam o forro do meu quarto. Os jornais, o café com leite quente, a pinga depois de todos e nada mais me tira a atenção a não ser de novo a lembrança de que não lembro mais. Por que não sentar-me à mesa do Café e lamentar com algum daqueles homens matinais que sentam ali todos os dias com o mesmo bocejo e o cheiro de suor da noite? Dizer que o sol abriu meu crânio e queimou o labirinto. Mas esqueci quando vi os dois camaradas de frente um para o outro calados olhando para nada. E eu tenho nada nos miolos. Entornei o copo de pinga e senti as lágrimas quentes e chorei porque queimava dentro e eu estava vivo e sentia o que além de mim é vento

Ana Barros

quinta-feira, 21 de junho de 2012

*Malassada ou quiche?



                                         Para Marilu Albano

Abro esta comunidade com um tema pra lá do cafundó: malassada. Quem nasceu na roça experimentou esse prato feito por mães habilidosas que, com uns três ovos, farinha de mandioca, um pouco de sal e banha de porco, faziam enormes fritadas que saciavam a fome de uma penca de filhos. Mas a palavra malassada, que pode lembrar ovos e galinha caipira ciscando no terreiro, cacarejando, dando ao galo e cagando na cozinha – minha avó chamava merda de galinha chinica (?) – também serve para atualizar conceitos e paladar.

Malassada veio à mesa quando Ziza e eu tomávamos café na Poty Livros enquanto esperávamos o começo de Machuca, filme chileno, do programa Café com cinema. Ziza pediu um petisco redondo cheio de queijo derretido com manjericão. Provei um pouco e exclamei imediatamente como se acabasse de comer a minha madeleine: “malassada!” E um fluxo de memórias veio lá do cafundó alegrar a reunião com as amigas e chamar a nossa atenção para o presente, tempo absoluto sobre quem nada mais deve ao passado nem tão pouco ao futuro. Seria o nosso caso!... Deixemos isso de lado.

O melhor mesmo do Café com cinema é a reunião com as amigas antes e depois da sessão que acontece uma vez no mês. Somos cinco (Ziza, Graça, Marilu, Rosa e eu) que, após uma pausa para casar e criar os filhos, menos Graça, e de afundar toda uma velharia lá no cafundó, retornamos às coisas do mundo aqui de fora. E haja conversa, capuccino, torta de limão, de nozes e outras delícias vindas lá de trás requentadas com nomes chiques.  Já pensou no cardápio está escrito malassada? Eu adoraria... mas lá estava grafado o elegante termo francês quiche. Pra falar a verdade, nem de longe se compara à grande e fofa fritada de minha mãe, que partida em generosas fatias dava pra alimentar seis bocas. O quiche, do tamanho de um pires, apenas fazia parte de um conjunto de acontecimentos felizes.

Malassada é só um entre muitos achados que vamos descobrindo a cada edição do Café com cinema. Tanto as conversas mais o lanche antes e depois da sessão, quanto os temas abordados pelos filmes, sempre dramas políticos e psicológicos, provocam uma renascença de sentimentos, experiências e usos que pensávamos fazer parte de um passado já inofensivo. E não é que de repente nos redescobrimos atuais, como se o tempo houvesse nos acompanhado, corrido não à nossa frente, nos derrubando no pântano da solidão, mas ao nosso lado, cúmplice e companheiro!  É um estágio que passa pela adaptação, claro, dos jargões contemporâneos. E um deles é o que mais me agrada e convida à ação: coletivo. Confesso que foi meu filho, de 25 anos, quem me educou no conceito, apesar de na década de 1990 já conhecer os trabalhos do grupo Oxente, que era um coletivo. Mas à época eu estava mais para o duplo sensual homem/ mulher...

Tomando café e comendo broas com nomes requentados; assistindo filmes contextualizados em 1960, 1970, 1980... Reacendendo as atitudes libertárias de moças independentes e autônomas, nos demos conta do quanto tínhamos de presente. E de malassada a quiche foi um salto qualitativo. Deixávamos lá no cafundó todo um ritual de palavras, de valores e gestos e de novo experimentávamos talvez os mesmos elementos, só que com uma carga de lucidez no foco onde o emocionalismo nublara toda uma etapa também feita de presente.

É no reconhecimento e aceitação de que não comemos mais malassada e sim quiche que a lucidez nos faz atuais. Não com a consciência de um jovem contemporâneo, pois aí estaríamos negando toda uma multiplicidade de experiências, porém capazes de compreender a diferença entre o que já não tem força, que esgotou nos usos e o que é potência porque é presente e se impõe. Graças aos coletivos contemporâneos, que podem começar nas redes sociais, exemplo do Café com cinema, retornamos ao cafundó apenas para olhar o passado e aí desprezá-lo uma vez que o presente nos oferece mais uma vez a realidade vestida com outros nomes do mesmo.

Ana Barros

*Crônica publicada no grupo lá do cafundó na minha página do facebook: anamariabarros8@gmail.com


sábado, 16 de junho de 2012

Eu quis

É noite e o
Relógio lembra minuto a minuto que
Em seus ponteiros me forjei
Eu digo Sim
Ao querer que não é querer
Eu quis
É noite e o
Meu olho roxo fixa o vazio reto...
Para trás a nulidade dos dias e das noites
O fluxo do amor anarquizado
Para trás e para frente vaga
Espaço vago

Ana Barros

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Corrupta


Há inquietação (de novo)
E a mentira corrompe o ser sem guarda
e grávido de incerteza e dúvida
a dominar a explorar a roubar  
o que escondeu no abismo onde afogou e
pariu sem olhar os lados e nem atrás
Há inquietação (de novo)
E o gelo cristalizado – lastro azul da paixão –
de novo sangue de novo quer de novo escorre a
muralha sem prumo
Há inquietação (de novo)
E a insensatez manda “aqueça” e mais uma vez
“desça” 

Ana Barros

terça-feira, 15 de maio de 2012

Amor fati


Ela criou calos – a alma
Aqui... passa bem os olhos... Sente a depressão rasgada
Não lembro qual foi o tempo em que afaguei sem tombar
em algo feio feito um calo
Tentei até suavizar usando os óleos
que encontrei na catedral:
mas a carne santa não tem calos...
Como cauterizar o que insiste em ser duro?
E a pele estirou
à seiva de pedra

Ana Barros