quarta-feira, 28 de março de 2012

Entrega

Que venha a dor mais cruel
E sufoque peito e vísceras
Mate-me se for possível
Pois estarei mais feliz
Que faça arder a úlcera
E retese em mim os nervos
Refúgio já
Não procuro
Bebo os soluços mais longos
É deles que cuspo mel

Ana Barros

terça-feira, 20 de março de 2012

Quarta-feira de cinzas

Quarta-feira de cinzas é um longo, belo e difícil poema de T.S. Eliot publicado em 1930. Por coincidência comecei a ler o texto na semana que antecedeu o carnaval e senti de imediato a necessidade de escrever algo a respeito para publicar na quarta-feira de cinzas. Porém foram tantas, mas tantas, as releituras, que só agora pude concluir uma leitura.

O poema se divide em seis partes com perfeita coesão entre elas, apesar de, numa leitura apressada, acharmos que o poeta se perde em fragmentos e palavras sem sentido. No entanto, depois de algumas idas e vindas encontramos um poema de grandeza semelhante à angústia existencial de Kafka e à necessidade de ascese intelectual de Schopenhauer. O tempo e a repetição das realidades que morrem e retornam num espaço e num tempo para cada ato é o que norteia todo o texto com suas idas e vindas sobre o mesmo tema: nascimento e morte, cujo processo de individuação carrega de angústia o poema, chegando ao ponto de elevação da memória a um status maior que o corpo (ossos, vísceras, olhos e as partes indigestas rejeitadas pelos leopardos).

Uma leitura apressada e parcial pode considerar quarta-feira de cinzas um texto religioso e pessimista. No entanto, nada mais falso. Eliot usa e abusa de símbolos cristãos para afirmar e justificar a sua visão moderna e real de mundo, um mundo sem mais quaisquer vestígios de ilusão e romantismo que retirem do homem a sua condição de ser finito com todo a tensão e drama que essa consciência acarreta. A ênfase que ele dá à simbologia católica é a mesma que um poeta ateu usa em expressões mundanas, às vezes nem tão sutis, para revelar a mesma imagem. É na exaltação de uma dúvida sobre o existente e o não materializado que podemos enxergar uma profunda falta de fé. É a ausência de confiança, a angústia e o desamparo que marcam os poetas modernos. Porque ultrapassaram os limites do desconhecido é que os define como poetas do existente, talvez niilistas, mas com um pé adiante na busca da autonomia com a morte de Deus.

Quarta-feira de cinzas começa já com uma negação: “porque não mais espero retornar/porque não espero/porque não espero retornar.” Não retornar das cinzas de suas ações significa permanecer na quietude e no silêncio mental, no desmanchar-se para ser apenas uma memória no meio da vida ordinária que não para de repetir-se no seu eterno fluxo de vida e morte. Agudo conhecedor das entranhas existenciais e experimentando em si a tentativa de superação dos instintos mais originais da vida, o eu - lírico toma como representação do seu sentimento de fuga a velha águia, ("por que abriria a velha águia suas asas?". Observa-se neste verso a sugestão de maturidade e auto-exclusão, de adesão à tragédia existencial. A velha águia repousa prenhe de sabedoria não se importando de fechar as asas depois de altos voos no “esvaído poder do reino trivial”. Há aqui uma desistência de conhecer a verdade, pois descobre que o instante efêmero é que é o poder e dele nada fica e nada retorna à realidade uma vez perdida: “Porque sei que o tempo é sempre o tempo/E que o espaço é sempre o espaço apenas/E que o real somente o é dentro de um tempo/E apenas para o espaço que o contem.” A realidade aqui assume uma tragicidade quase insuportável, pois cada realidade acontece dentro de um tempo e de um espaço ao mesmo tempo infinitos, porque repetidos, e exclusivos para cada ato que afirma. É apenas um instante, tudo de novo volta a ser espaço e tempo vazios que de novo vão ser preenchidos por momentos. Apesar da niilidade de tudo, o eu - lírico se alegra da dinâmica da qual ele não espera nenhuma resposta, nenhum retorno, pois sabedor do instante que passa ele afirma suas ações no mundo, ações as quais ele tem o prazer de rejubilar através da memória de seus feitos: “Porque estas asas de voar já se esqueceram/E no ar apenas são andrajos que se arqueiam/No ar agora cabalmente exíguo e seco.” O corpo ágil, ativo e cheio de impulsos viris, agora é repouso, aniquilamento da ação que ora representam os andrajos no ar exíguo e seco de realidades. “Ensinai-nos a estar postos em sossego.” Há ainda desejo, mas apenas na memória que presenciou a devastação de todas as ações do instante. Agora o eu - lírico pede o ensinamento do sossego e do menosprezo diante do esvaimento de tudo: “Rogai por nós pecadores agora e na hora de nossa morte”...

Na parte II o poema enfatiza a desmaterialização. Numa espécie de sonho o eu - lírico vê três leopardos que descansam saciados “de meus braços meu coração meu fígado e do que havia na esfera do meu crânio.” O poeta aqui eleva ao máximo a dependência do homem da vontade bruta. Graças a ela, a quem chamamos natureza, o homem em fulgor resplandece. E o que agiu, o que amou, o que pulsou (braços, fígado, coração e memória) foi apenas por meio dos impulsos e não em função da razão e de uma realidade estável. Ficou de tudo apenas a memória, animada pelas lembranças do homem lúcido e sem mais vontade no reino trivial. “E eu que estou aqui/ dissimulado”... A memória invisível do poeta é o único registro de seus feitos, os quais ele oferece ao esquecimento. Mas o seu amor, ele consagra “Aos herdeiros do deserto e aos frutos ressequidos/Isto é o que preserva minhas vísceras a fonte de meus olhos e as partes indigestas que os leopardos rejeitaram.” Há uma duplicidade de sentimentos nesta parte. Num momento, mostra o poder ativo do homem no mundo simbolizado pelos braços, o coração, o fígado e o cérebro, escolhidos como alimento pelos leopardos (a vida selvagem). A vida oscila entre ação e nulidade. A ação de responsabilidade dos órgãos pulsantes, ágeis e metabólicos, quando no fim de sua existência tem como triunfo (?) o esquecimento de seus feitos. “E eu que estou aqui dissimulado/Meus feitos ofereço ao esquecimento.” No outro, revela o amor “aos herdeiros do deserto e aos frutos ressequidos.” Com o instante, ou seja, com a realidade em seu tempo e espaço finitos, resta o aniquilamento de tudo que agiu no instante presente. O espaço agora vazio das ações dos homens, as quais passaram a resíduos metafísicos, será novamente preenchido pela mecânica das ações no tempo e no espaço. É esta imagem a que os leopardos (a vida) rejeitam por representar a contínua e fragmentada individuação. Na rejeição dos leopardos pelas partes “indigestas,” visceralmente ligadas à existência, há o desejo de completa destruição do homem: “Minhas vísceras a fonte de meus olhos e as partes indigestas”, realimentam a vida, fazem rebrotar na terra gasta o que a própria vida excluiu. Aqui podemos perceber um quê de romantismo platônico, pois o que parece superior, as idéias, a memória, a razão, a vida se apropria com gozo e júbilo. Já os impulsos, os olhos que tudo veem, as vísceras, são partes indesejadas (corpo, desejo), abandonadas ao fluxo existencial (nascimento e morte). Sente-se neste ponto do poema uma inquietante angústia diante da individuação num tempo e num espaço que não guardam nada, que tudo transforma em cinzas. “Eis a terra que dividireis conforme a sorte.” Quanta solidão e afirmação na dor de ser esquecido e de também esquecer: “Esquecendo uns aos outros e a nós próprios.”

A III parte nos faz lembrar A Divina Comédia, de Dante, com as três passagens, sendo a última etapa, como em Dante, a proximidade do paraíso quando o eu - lírico chega bem perto da porta celestial e implora a sua entrada: “Senhor, eu não sou digno/mas dizei somente uma palavra.” Há também nos últimos versos da III parte a impossibilidade de céu, de certeza, de segurança, porém, a força para existir além da esperança e do desespero: “Frêmito, música de flauta, pausas e passos/Do espírito a subir pela terceira escada/esmorecendo, esmorecendo; esforço/para além da esperança e do desespero.” Continuando com a necessidade de transfiguração, na IV parte do poema encontramos um alento nessa entrega ao tempo e ao espaço devoradores, quando o poeta trata a afirmação como objetivo maior do homem. É da afirmação de “quem pois revigorou as fontes e as nascentes tornou puras tornou fresca a rocha seca e solidez deu às areias.” Mais adiante a ênfase outra vez ao movimento entre nascimento e morte. “Eis os anos que permeiam, arrebatando/Flautas e violinos, restituindo/Aquela que no tempo flui entre o sono e a vigília, /oculta.” Aqui fica claro o eterno retorno da natureza que vigia oculta e que retorna e sucumbe para novamente retornar e sucumbir. Mas é graças aos “herdeiros” do amor e aos “frutos ressequidos” revigorados e afirmativos, que a vida é vida mais uma vez. “Até que o vento, sacudindo o teixo, acorde um coro de murmúrios/e depois disto nosso exílio.”

A V e penúltima parte do poema reforça a ideia metafísica de que há o “Verbo” nas entranhas do mundo. “Inexpressa a palavra ainda perdura, o inaudito Verbo/o Verbo sem palavra.” Temos aqui a angústia por não se atingir o Ser que tudo manipula, que mata e faz renascer indefinidamente, queiramos ou não. O real é o Verbo e o Verbo está oculto e é silêncio. “E contra o Verbo o mundo inquieto ainda arremete/rodopiando em torno do silente Verbo.” Se o Verbo é silêncio e está oculto, somente aquele que conhece esse Nada real não evita a sua face e o afirma e se une a Ele em êxtase, esquecimento e júbilo. Porém, sem esperança nessa possibilidade, o poeta pergunta: “Rezará a irmã velada por aqueles/que nas trevas caminham, que escolhem e /depois te desafiam,/Dilacerados entre estação e estação, entre/tempo e tempo, entre”... Um doloroso pedido para “aqueles que escolhem e desafiam.” Ou seja, o homem age mesmo sabendo de sua finitude. Age e desafia o tempo e o espaço como se fossem eternos e neles tentam edificar uma realidade sustentável, a qual, paradoxalmente, só se efetiva num tempo e num espaço determinados. E é no acender e apagar das ações que acontece o retorno, aqui descrito com uma bela imagem bíblica: “O deserto no jardim o jardim no deserto/da secura, cuspindo a murcha semente da maçã.” Uma referência ao mito da individuação (paraíso, Eva, maçã). “Cuspindo a murcha semente da maçã/Ó meu povo.” Repetição da individuação ao máximo do tolerável. Mas a vida quer, independentemente da vontade do homem desperto e em vigília; quer e, além de querer, faz tudo retornar: “O deserto no jardim o jardim no deserto.”

Chegamos ao fim do poema afirmando o Tempo fragmentado em tempos e espaços que brincam de matar e ressuscitar; que tudo transforma em cinzas e destas faz rebrotar a vida, a vida que desespera o poeta, lúcido de sua tragédia e que pede para não mais retornar desejando no “crepúsculo encruzilhado de sonhos entre o/nascimento e a/morte.” Por último, o pedido que resume a intenção ascética permeada do começo ao fim do poema: “Ensinai-nos o desvelo e o menosprezo/Ensinai-nos a estar postos em sossego.”

Ana Barros

terça-feira, 13 de março de 2012

Leveza

Deixei que a superfície erguesse
o que havia escondido na desfaçatez do riso
Fui frívola desde que vi a morte
Fui frívola em todas as horas de pesar quando
em vez de matar
gargalhei com desprezo e
pisei no pudor dos semblantes infelizes
A dor?
Excessiva e generosa rasgou
a sensual leveza dos meu olhos

Ana Barros

quarta-feira, 7 de março de 2012

Margarida

Eu queria ser um homem
Ter a violência descarada de um homem
Possuir o devaneio dos extremos e
andar pelas ruas sem rumo e sentar sensual
no primeiro bar que encontrasse
Eu queria ser um homem
Montar numa motocicleta e acelerar numa reta onde
o fim sem fim me arrancasse
Hoje eu queria a gabolice de um homem
Dizer que fiz e fingir que senti e
entre goles de Gin cuspir longe...
(um homem cospe longe)
Mas eu não sou um homem
Nem corro como corre um homem
Nem vomito nas calçadas nem grito palavrões nem dou soco na cara
(perfil de um homem)
Ah se eu fosse um homem...
Seria bruxa e demônio
Exibiria o meu ventre inchado a Fausto
E o mataria como quem mata um inseto
Mas bem vê
sou Margarida

Ana Barros