quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Fake news existem desde sempre


“Aspiro à minha obra”. Quando se trata de Nietzsche,
esta máxima pode se referir tanto à obra escrita
quanto à sua vida-obra desse andarilho
subjugado pelo pensamento e pela liberdade interior."


Notícia falsa, calúnia, mentira, falácia... são várias as traduções de "fake news", termo contemporâneo usado para qualificar informações duvidosas. Podemos achar que a "fake" é novidade em nossa vida tomada pelas redes sociais. Mas não é. É novidade apenas o meio disseminador, o veículo: internet, Whatsapp e demais inovações tecnológicas das mídias. Desde o princípio da linguagem e dos sinais que mulheres e homens distorcem a comunicação, inventam e reinventam de acordo com os seus interesses e os interesses de seu grupo econômico, político ou religioso. Trago aqui um exemplo de "fake news" famoso e que ainda causa muita polêmica e indignação por ter sido cometido contra um dos maiores filósofos do século 19, Friedrich Nietzsche. Pois bem, a sua irmã, casada com um nazista e, consequentemente também seguidora de Hitler, adulterou a obra do escritor beneficiando assim a ideologia a qual seguia com o companheiro numa colônia construída pelos dois, no Paraguai, para cultivo de uma "raça pura". Odiado e difamado entre intelectuais, universidades e toda uma massa de pensadores, jornalistas, religiosos (muitos destes, até hoje), ignorantes que acreditaram nas falsas teorias de Nietzsche em favor do nazismo, o filósofo só foi biografado e reconhecido como ferrenho, duro defensor das liberdades do indivíduo muitos anos depois, já no avançado século 20. Como jornalista e defensora das liberdades individuais, nas quais não cabem o ódio e o preconceito, desejo fortemente que usemos essas mesmas ferramentas instantâneas da tecnologia da comunicação para desfazer as "fake news". Estas, que ameaçam nossa vida e a vida de milhões de pessoas que, por serem diferentes daquelas que pregam a hegemonia do "correto", da "ordem", da "família", do "bem", do "bonito", do "higiênico" e dos "valores da pátria", são hoje as responsáveis pela violência, pelo desprezo, pelo encarceramento e morte praticados pelos mesmos agentes que levaram milhões de judeus, ciganos, gays, mulheres e deficientes à execução. 

Ana Barros
Natal, 11 de outubro de 2018


quinta-feira, 2 de agosto de 2018

A Minha ilusão banguela

                       
Hans Baldung Grien, 1513
O exame estava marcado para as quatro da tarde. O homem magro e pálido, pouco acima de metro e setenta, se dirige à recepção sem cumprimentar ninguém. Senta-se na parte recuada da sala e abre um livro. Lê quase tocando as folhas com o grande nariz adunco. Tem as pernas inquietas. É nervoso. A acompanhante preenche a ficha: “Nome?” “Cícero das Neves!”, responde com autoridade de quem administra a existência ordinária de alguém importante. Era por esse alguém que havia jurado dedicação até que a morte os separasse. O professor Cícero se dizia tomado pelas causas nobres da ciência e estas, como é próprio da rotina sistemática de um acadêmico de seu porte intelectual, não permitem envolvimento com decisões domésticas nem regramento de filhos. Adélia ficou com esse encargo, chamado de refugo existencial pelo pensador ocupado com causas nobres. Certa vez, ao orgulhar-se do sucesso do marido para sua médica, ouviu desta: “que causas nobres são essas que enchem o tempo de seu esposo e esvaziam o seu?”. Adélia sabe exatamente que tem o domínio sobre a vida privada e desse domínio impõe a nobreza que eleva o outro lado, aquele das coisas pequenas que Cícero chama refugo. “A doutora não conhece o lado que eu mando, e que enche meu tempo”, respondeu a esposa que encontrou no casamento o triunfo moral e o conforto da matéria. Aliás, a mãe, quando conheceu o genro, já um acadêmico bem sucedido, fez esta observação pragmática para a filha: “você agarrou um bom partido, hein!”.

“Idade?” “Sessenta e cinco!”, respondeu a mulher do professor.

Aos quarenta, Cícero passou a disfarçar a idade no corte do cabelo conservando uma franja de fios ralos para dissimular a calvície. Mudou o corte das roupas até então costuradas por Adélia. Deu em andar com peças e acessórios adquiridos das mesmas grifes dos jovens alunos. Tal comportamento levou Camisa de Vento, punk e estudante de filosofia, fiel discípulo de Cícero por considerá-lo o mais anarquista dos pensadores contemporâneos, a discursar violentamente na aula em que o mestre aparece bem vestido e com os cabelos tingidos de louro: “o Senhor é a aberração do capitalismo!”, gritou cuspindo no chão. O incidente não perturbou a frieza do professor, tampouco alterou seu humor ao constatar a debandada da turma entre risos e pilhérias. Em vez de acabrunhá-lo, a crítica do aluno deixou-o ainda mais vaidoso. Quem entrasse em sua casa naqueles dias se deparava com um grande espelho pendurado em frente às estantes. Enquanto pesquisa, contempla a imagem não menos de dez vezes. Aqui acolá vai até à cozinha e diz para a esposa afogueada e com cheiro de cebola: “como rejuvenesci com esse corte!” Adélia conhecia as manias do marido e aprendeu não duvidar nem valorizar o que ele diz e, de uma discussão banal, se estender a brigas que só terminam quando os vizinhos correm à janela a xingar “pare com isso, professorzinho de merda!”, e ela, poupando-o de escândalos, fechar a porta e correr aos pés de Santa Rita de Cássia. Adélia sabe que Cícero foge do burburinho como fogem os ratos à menor suspeita de ataque. E foi para ele que reservou o melhor cômodo da casa, do qual se responsabilizou pela arrumação das centenas de livros e do silêncio absoluto conseguido ao isolar as paredes com espuma. Conhecer era o objetivo de Cícero. E este ele só conseguia desprezando o mundo das coisas vulgares, como eram as relações com a família e os vizinhos. Adélia apoiava o marido, porém não dava importância às especulações nascidas desse orgulhoso solitário. Nenhuma curiosidade a motivava entrar no ambiente abarrotado de papel que, só ele, desejoso de alturas, tinha o acesso. Orgulhava-se do saber do marido e isso era bom, tão bom quanto sentar no sofá depois de lavar a louça para ver a novela das nove.

Era naquele lugar cheio de livros novos e velhos que Cícero passava o tempo quando não dava aulas. Ao se impressionar com uma teoria e dela especular um conceito que superasse o de seu autor, não largava o estudo enquanto não tivesse a certeza de um raciocínio inteiramente seu. Apesar de reconhecidas pela academia, as teorias de Cícero jamais saíram das paredes universitárias. Entre os alunos não passava do primeiro ano. Passados os dois semestres, agora familiarizados com a comunidade acadêmica, optavam por professores menos herméticas e adeptos das redes sociais. Cícero era inimigo das novas tecnologias, o que levou Camisa de Vento pela segunda vez atirar farpas ao ouvir do professor que “os homens do verdadeiro saber preferem o papel”.Verdadeiro saber é o caralho!”, rebateu o aluno anarquista abaixando as calças.

Portas e janelas fechadas. Cortinas descidas. Som desligado. Crianças caladas. Terminada a averiguação do lar a mãe pega os filhos e se fecham no quartinho dos fundos. Ali assistem TV até o momento em que o professor grita da porta: “o lanche!” Todos, menos os calouros, conhecem e comentam o comportamento do professor de História da Filosofia. E, sabendo da antipatia dos veteranos, Cícero aproveita o intervalo de um ano para viajar a congressos na companhia das novatas deslumbradas com o mestre. Não raro alguém pergunta a Adélia por que não é vista nos eventos com o marido. Prontamente ela recorre a casa como motivo para não se ausentar. O domínio da vida privada havia se tornado tão exclusivo dela que Cícero só foi saber que os filhos frequentavam a Igreja Universal quando viu o caçula submetido à sessão de espancamentos numa das reportagens em que analisava seitas religiosas. Na matéria, o pastor expulsa o demônio do corpo do filho do cientista ateu. “Malditos alienados... A culpa é sua!”, diz à mulher e ali mesmo esquece o assunto. Sua vida tinha objetivo maior que o de convencer o filho da não existência de demônio. Além do mais, terminava a sua tese de doutor. Faltando uma semana para submeter o trabalho à banca mandou encadernar o volume de 600 folhas. Ao voltar com a papelada debaixo do braço olhou Adélia com um largo sorriso de incontida vaidade e disse tomado de soberba: “terminei! São 600 páginas de conhecimento autêntico!” “Posso dar uma olhadinha? Queria...” Adélia não terminou a frase. “Você? (kkkk...) Não entende uma vírgula!”, disse comprimindo o livro ao peito numa atitude infantil de quem protege o brinquedo da cobiça da coleguinha. Adélia ficou paralisada. Não que fosse novidade o desprezo dele pelas suas opiniões, mas por sentir naquele exato momento algo diferente das outras vezes em que foi insultada por não acompanhar o raciocínio complexo do pensador. Sente ferroadas no corpo. Arrasta-se até o sofá e cai semiconsciente. Volta a si quando Cícero bate a porta, já um hábito quando foge de alguma encrenca doméstica. Por alguns instantes pensou ser um pesadelo. Contudo, ainda era dia. Passa as mãos nos olhos molhados e grita da janela pela qual ainda o vê agarrado aos papeis em direção à rua: “filho da puta... Enfie seus papeis no cu!”. É a primeira vez que sente a dor vazia do abandono. Não consegue organizar os pensamentos que anarquizam o cérebro até então cheio, ordenado na vontade do outro. O coração bate descompassado, a garganta se fecha na angústia suicida. Mas não vai se matar, acredita no inferno e em almas penadas. A partir dali as noites chegaram pavorosas: há sempre alguém a rir da burrice dela. Ora é Cícero, ora o seu professor que, lá atrás na escolinha, por mais que repetisse que “nóis quer” é errado, Adélia repetia “nóis quer”. Esperava que, ao casar com o professor, deixaria de dizer “nóis quer”. Porém ela continuou com a sua gramática particular e o professor fingiu que era surdo. Não só as noites, os dias também ficaram insuportáveis. O tédio ocupou o lugar da satisfação de dona de casa, único prazer até ali conhecido. Adélia não entende a agonia que faz de repente a vida grande demais, absurda e à beira do desespero. A escuridão na qual se debate, no entanto, dá a ela o clarão real do qual viu a mãe saltar. “Vou embora!”, pensa sem entender que a mãe, diferente dela, fugira com outro homem e, graças a essa decisão, aprendeu que a vida chega para uns por linhas quase apagadas. Mas Adélia não era mulher de voltar ao passado e de lá sair com um presente ativado. A experiência exigia elaboração mental complexa, condição nula para quem se deixou apagar feito fósforo riscado. Não sentia admiração pela trajetória da mãe. E logo esqueceu a mãe. Foi a partir daí que, tomada do ressentimento nascido no pântano da rejeição, passou a observar Cícero nos mínimos movimentos. Queria a confirmação de que ele era o homem com quem dividiu a cama por tanto tempo. A cama, mobiliário sagrado, acolhida permitida por Deus para dois corpos erotizados, transforma-se em símbolo da depravação fora do casamento e do enfado ao longo deste.

Dois meses depois de conhecer o namorado a mocinha leva o estudante de filosofia para morar no pequeno apartamento de três cômodos. Paga as despesas com o salário de balconista. O orgulho em dividir a existência com um homem culto e de futuro garantido fez com que ignorasse que em todos habita um eu em pano de fundo. No entanto, esse eu do amado era escancarado, exigiu dela exclusividade e obediência. O que veio depois já se sabe: casamento, filhos e demissão do emprego de balconista. “Tenho filho pra criar e marido pra pensar”, repete o refrão ao balançar o menino no berço. Adélia não consegue parar de pensar no Cícero humano que acaba de conhecer, o Cícero anterior ao doutor Cícero que jamais existiu a não ser na imaginação da moça romântica. O ódio que se instalou a partir daí não permite que faça um julgamento dos valores do homem de ciência. Faz, sim, a análise devastadora de mulher enganada cuja vingança é tomar de volta as qualidades criadas de suas próprias necessidades. É tomada por essa nova percepção do marido que ela vê escandalizada cada detalhe do corpo surpreendentemente feminino de Cícero. “Será fresco...?”, pergunta ao emaranhado de suposições trazidas pelo eu do marido até então escondido dela.

“Sr. Cícero, por gentileza, tire a roupa... óculos, relógio... Vista esta bata com a fenda para trás. Usa dentadura? Tire-a!”

Cícero não se preocupou em saber se amava Adélia. Ela estava ao alcance das mãos, isso era o suficiente. Além de não ter tempo para digressões sentimentais era bom ser cuidado por uma mulher dócil. Porém, apesar da ausência de revolta, estava próximo o fim da história a dois do casal que, desde o início, se manteve divorciado. Adélia sentiu esse fim como algo perturbador que resolve um dia assumir o comando dos nervos. Não era aquele fim pelo qual os corpos e os bens são divididos com grande cólera porque a paixão e o ódio subverteram a ordem. Mas o fim através do qual se enxerga de vez o outro e a ilusão dá lugar à dança dos espectros cujo espasmo adentra noite e dia na ânsia de revelar a verdade. Chegou enfim o momento do choque do ressentimento contra o ídolo de papel. Adélia logo abandona a formalidade da mulher digna com a qual desempenhou o papel de esposa. Recorre agora à ironia quando se dirige ao marido: “doutor Cícero, sua ração está na mesa!” “Doutor Cícero, suas putas no telefone!” “Doutor Cícero, já lavei seus molambos...”.

“Sr. Cícero, tirou a dentadura?”, pergunta a atendente ao encaminhar o paciente à sala do exame.

Adélia, que alternava os olhos entre o piso branco e o marido, ao ouvir a atendente levantou-se num pulo e correu em direção aos dois. Teve que se segurar na poltrona para não desmaiar ao vê-lo dobrado com uma mão prendendo a fenda traseira da bata e a outra tapando o buraco em que se transformara a boca. Olhou-o como se nunca o tivesse visto. Não era o cientista vaidoso quem estava à sua frente, mas um velho banguela, nu e cego dentro de uma bata ridícula. Sente a cabeça rodar e sai para tomar ar. Ao retornar não consegue controlar o desespero e grita engasgada de nojo: “o doutor não tem os dentes!”. Ninguém ouviu nada na sala em que todos deslizam os dedos na tela do celular ou ouvem música de fones nos ouvidos. Depois de se acalmar com um copo d’água trazido pela atendente e ver que ninguém dava atenção ao seu drama, Adélia tira o terço da bolsa e reza pra lá e pra cá no corredor.

Quando soube do câncer Cícero tentou se matar arranhando os pulsos com uma lâmina de barbear. “O doutor está proibido de se matar!”, disse Adélia vestida de nova autoridade. Dali em diante fez questão de cuidar dele. “Ninguém cuida do meu marido como eu”, teria dito à cunhada antes de despedi-la na porta. Era um poder não sobre o intelectual, mas sobre um moribundo sem mais o valor moral que valesse a simpatia da esposa. Era outro agora o poder que ela desempenhava sobre o homem derrotado não pelo câncer, mas pela boca banguela. Cícero se tornara igual a todos os homens que caem doentes nas mãos de esposas velhas, sabedoras da intimidade revelada por completo na rotina de um hospital. São esposas velhas que cuidam de seus homens com a ira velada de mártir.  Esquecem a dor do Cristo no manejo da mão pesada sobre o corpo impotente que de algoz passou a vitima. Adélia, no acerto de contas de dois derrotados, ela, por se descobrir num deserto sem futuro, ele, empurrado que foi para fora do presente, se demora no ardil dos suplícios. Estes, tolos e amargos chás de cascas de pau, papas sem açúcar empurradas goela abaixo, supositórios enfiados sem nenhuma delicadeza, banhos frios com mãos sem pudor que limpam o cu do doente sem lembrar jamais que um dia desejou aquelas partes do macho liquidado. Zomba, junto às amigas do Terço das Mulheres, da trouxa morta caída entre dois ovos imprestáveis. Afora as pequenas vinganças de Adélia no manuseio da higiene e alimentação de Cícero, este ainda amarga a solidão do quarto não mais de um cientista rodeado de livros e da aura de gênio, mas o quarto esterilizado de um doente terminal. Assim que adoeceu, a família encarregou-se de dar fim à tranqueira do doutor. E foi assim que o acervo de mais de três mil títulos foi retirado da casa e queimado no quintal pelo pastor acompanhado dos dois filhos do casal. A justificativa apresentada pelos três religiosos foi a de que os livros representavam o diabo e por isso tinham que ser destruídos. “O diabo que habita esta casa tem um nome: doutor Cícero!”, sentenciou o pastor, o mesmo que havia exorcizado o caçula na TV, ao riscar o fósforo sobre a montanha de papel encharcado de gasolina. Adélia acompanhou o desfecho com uma fagulha de gozo: “há muito eu devia ter feito o mesmo!”, disse aos botões.


Ana Barros
Natal, 20 de julho de 1997.
(concluído em 02 de agosto de 2018)

           


sexta-feira, 22 de junho de 2018

Meia noite









Instante após instante
É cerração
Que fazer na ausência da surpresa que hidrata a sede de pequenas ilusões
A ilusão morreu da velhice que nutre o gosto
Coube a mim
(vazia)
Decidir o que comer fora do silêncio instalado no palco luz e movimento
Há uma cota de evasão no tempo que joga dado
E todos os jogos foram jogados de forma a evitar noite fria
Eu vi o jogo jogado
Ali diante de meus olhos claros
Não mais fogo fátuo Não mais cristal trincado
Todos estão trincados
E inteiros
É meia noite
Luz minguada do mundo

Ana Barros
Natal, 20 de junho de 2018.



segunda-feira, 18 de junho de 2018

Preto


Finalmente havia chegado a hora de martelar Verdade: pá pá pá pá... Quebrei miudinho tudo. Nada poupei.  Separei e colei os pedaços dos quais não podia abrir mão por ser a minha Fênix e joguei fora o que considerei imprestável, fosse porque havia apodrecido, fosse pelo desespero ao qual sou empurrado quando entendo emendar o que não pede remendo. Porém, ao dar meia volta em direção à rua fui tomado pela má fé dos frustrados que, apesar de derrotas em série, apelam com certa dose de “enquanto há vida há esperança” e voltei à lixeira pegando de volta o caco de Romântico. Limpei o cacareco das escaras e deixei-o em cima da escrivaninha. Analisaria mais tarde possíveis metamorfoses pelas quais o tempo o havia poupado da morte e do lixo do qual fora resgatado ainda com vida. É certo que não mais a vida azul e rosa com a qual o mundo foi vestido enquanto hetero e romântico. Vi maravilhado o arco-íris Senhor da multiplicidade de tons sobre aquele pequeno fragmento retornado dos escombros. Ali havia um mundo de coisas e aproximações possíveis, um mundo que celebrava qualquer ritual de promessa de felicidade.

Contente da minha ação abri o caco de Romântico e simpatizei de imediato com os corações que entraram na correnteza das sete cores. Apanhei cada um deles e vi que a ilusão responsável por criações felizes estava à beira da morte, fosse por que usada demais, fosse por que tinha que dar o lugar à outra que acabava de nascer sob o signo do arco que, na infância, meus irmãos e eu tentamos ultrapassar. Minha tia dizia que quem passasse debaixo do arco-íris se fosse homem virava mulher e, se fosse mulher, virava homem: “É impossível alguém passar o arco-íris”, disse para nosso desencanto o professor de ciências aproveitando a deixa para saber se algum de nós desejava ser outro. Ficamos em silêncio e encolhidos. No entanto, ali, diante do pedacinho de Romântico resgatado, vi que o professor não estava com a razão ao afirmar que nunca, por mais que corrêssemos, atravessaríamos o arco-íris. Descobri que podíamos, sim, ser outro ao banhar nas cores do arco do céu. Só que, para isso, se fazia necessário destruir Verdade. E foi no ato de martelar o que desbotava de velho que conheci Antonieta, Zulmira, D. Mercês, Help, Joaquim e Olímpia. Seis coroas cujo destino era tão somente a travessia do arco-íris.
I
Antonieta passa de sessenta cinco. Divorciada e com uma boa renda, separa todo mês dois mil reais para as despesas semanais no Violão de Prata. Paga as entradas, bebidas e o aluguel do dançarino. Antonieta tem um dançarino só seu. O dinheiro de aposentada é para comer e dançar, “duas prioridades de velha”, diz satisfeita. Antonieta não abre mão da sexta-feira no clube, coladinha em seu rapaz alugado. Porém, a alegria completa-se ali mesmo, no salão. Consome-se no contato suado com o dançarino cheiroso a Lancaster, perfume da juventude boêmia de Antonieta mandado buscar na Argentina para aquelas noites de tango e gafieira. O rapaz de quase trinta anos, de seios e quadris de moça, tem invariavelmente as calças pretas e coladas à pele. O volume eleva-se sob o zíper parecendo algo postiço colocado ali com o propósito de atiçar a libido da velha dançarina. Mas isso faz parte do jogo e Antonieta conhece bem o jogo. A noite chega ao fim. O dançarino se despede da senhora exausta e plena. Ela chama o táxi.
II
Zulmira não casou. Não por falta de noivos, mas por não encontrar nestes atrativos. Todos tinham algum defeito – usava prótese ou faltava um dente, não tomava banho, fedia a queijo velho, tinha só uma muda de roupas, pobretão, andava a pé, etc., etc. –, logo a moça cuidava de dar o fora no infeliz. Fez isso durante a longa existência dos pais, que desejavam ver a filha casada. Mas agora, com a morte dos dois e livre para escolher não casar, ela chegara aos setenta completamente esquecida dos inúmeros pretendentes que ensaiaram colocar uma aliança em seu dedo. Mesmo decidida a não alimentar ilusões matrimoniais, Zulmira não abre mão de pedir uma ajudinha a Santo Antônio quando chega o dia da entidade. É sempre a primeira a subir no ônibus lotado de solteironas tagarelas misturadas a romeiros taciturnos rumo à festa do santo casamenteiro na cidade cearense de Barbalha. O único objetivo de todos na viagem é tocar o pau do santo, tora de madeira gigante trazida da mata por homens robustos para o deleite da multidão. Dizem que, além de curar as enfermidades dos pagadores de promessa – velhos, velhas e crianças vestidos de batina marrom com um cordão amarrado à cintura –, Santo Antônio também faz aparecer marido para as solteiras. A algazarra entre casamenteiras deixa os devotos corados de vergonha. Eles ocupam um lado do carro, elas o outro.  Não se tem notícia de que alguma entre elas vá à festa agradecer o marido arranjado. Gargalhadas estridentes, piadas picantes, muito fumo, um gole aqui outro acolá de cachaça, um beliscão na bunda de Nazaré, solteirona que viaja de jaqueta e bermudão jeans e que devolve o atrevimento da companheira de viagem, vale lembrar que ambas se conheceram dentro do ônibus, com outro beliscão, dessa vez na boceta de Zulmira, o que a faz gargalhar ainda mais alto. Zulmira é a mais velha e a que mais viajou na estrada que leva ao santo e às brincadeiras que se repetem todos os anos com uma das novatas do passeio. Graças àquelas viagens ela voltava saciada e feliz. Traz algumas lascas nas unhas e a certeza de que Santo Antônio, mais uma vez, lhe deu uma mãozinha. O ônibus para na porta de Zulmira. Nazaré desce com a mala das duas.
III
Mas nem só de dança, aluguel de dançarino e turismo profano vivem aquelas que resolveram entrar no moinho hedonista cujas novidades brotam como as miniaturas de corujas que entopem a estante de D. Mercês. Já são mais de quinhentas de todos os tipos e lugar. Sessentona e viúva sem filhos, ela mora no pequeno apartamento de um quarto. Resolveu que era tempo de aposentar vassouras e excessos, menos da coleção de corujas e do prazer de jogar. Os dias haviam encolhido e a intenção era estendê-los o máximo até onde o carteado fosse quem desse as cartas. D. Mercês é a quarta de um grupo de amigas, todas com idade aproximada e cheias da vontade de entrar noite adentro de sexta-feira. Pela aproximação do apartamento da casa noturna, vão todas de carona com D. Mercês. Na volta, aproveitam para tomar alguns drinques na varanda da amiga e ali mesmo dormirem sobre colchões macios cuidadosamente acomodados para o momento.
O lugar é o de sempre: Cassino Copas e Paus. Elas vestem roupas da moda, usam joias e perfumes caros. O uísque e o cigarro ficam por conta do garçom Libório, que faz algum tempo serve as clientes com as marcas exigidas pelo bom gosto das quatro mulheres. Em meio à fumaça, cheiro de bebidas e suor perfumado de homens e mulheres bem cuidados, gritinhos agudos, mão peluda tocando mão peluda, mão gordinha e lisa tocando mão gordinha e lisa, cabeleira farta e oxigenada jogada rente o rosto que estica as narinas para sentir o cheiro de cabelo limpo, as pernas torneadas de D. Mercês, que aproveita a dádiva da natureza para exibi-las fora da saia curta, causando frisson nas amigas... Elas aproveitam os minutos do prazer que tem hora para acabar e começar outra vez na próxima semana. E assim o dia amanhece. Pela porta agora aberta saem homens e mulheres com o cigarro aceso. Eles, amarrotados, felizes e acompanhados de outros. Elas, retocadas, embriagadas, alegres e acompanhadas de outras.
IV
A mala de Help, D. Socorro para o antigo chefe, está sempre pronta. O único filho é médico e passa mais tempo no hospital do que na vida aqui fora. Solteira e já passado há muito dos cinquenta, Help cansou de exigir a companhia do filho nos eventos que gostaria de ir depois da morte da tia velha de quem cuidou por longos e solitários vinte anos. Da última vez que pediu para ir com ela ao show de Zezo, o rapaz aconselhou: “chame uma amiga, mamis”. “Ou melhor, convide o bofe que fica do seu lado na igreja. Ele é uma gracinha, e tem grana!”, completou piscando o olho e saiu porta afora sem esperar a resposta da mãe, que não vai à missa desde a morte do pai há quarenta anos e tampouco conhece outro bofe além de Jiló dos teclados, de quem é fã e segue no Instagram. “Se não é o da missa é você, meu Jiló!...”, grita Help e corre ao celular como se tivesse descoberto algo de grande importância. “Alô! é da produção de Jiló?” “É sim!”, diz a voz do lado de lá. “Onde é o show dele neste final de semana?” “Em Maceió, minha Senhora!” “Por favor, me passe a agenda completa de Jiló.” E assim Help passou a acompanhar seu ídolo em todos os recantos do Brasil. Depois de Maceió ela seguiu para Fortaleza, de lá para Brasília, de onde voou para Rio Branco, Manaus, Recife, Aracaju, Belém...
V
Joaquim pinta os cabelos e o bigode de acaju. Leu na revista do salão que frequenta quinzenalmente que a tonalidade deixa o coroa sexy e novo. “Ar-ra-zou!”, exclamaram as cabeleireiras quando viram o resultado final. Faz algum tempo que Joaquim diz ter cinquenta. Mas todos juram que o coroa se aproxima dos setenta. “É só observar o couro do pescoço e dos cotovelos, é de setenta!”, garante Lídia depois de ver o desejo de namorar Joaquim ir de água abaixo. Ela soube pelas amigas que o pretendente não troca a bicicleta por mulher nenhuma. Já foi casado algumas vezes, tem alguns filhos que havia tanto tempo que não os vê que chegou a esquecer de nome e idade deles. Não se demora em remorsos nem conselhos sobre velhice, doença e solidão: tem remédio para tudo isso. Já faz três anos que pedala no grupo Tarados de bike. São quatro companheiros com ele. Nada de mulher. Nada de paradas em lugares festivos e barulhentos. Em noites de lua cheia tocam flauta ao redor da fogueira.
Joaquim pedala atrás. Tem paixão pelas florzinhas roxas, aquelas parecidas com vulvas negras, e colhe-as o quanto cabem os bolsos da calça. À noite, distante dos demais, ele infla o colchão e se deita de frente para a coleção de xibius murchos e secos. Não discrimina nenhum. Ama a todos. Já contou cem, todos diferentes um do outro e com nome de acordo com a anatomia que ele carrega no portfólio organizado exclusivamente com textos e imagens do órgão feminino. Antes de adormecer Joaquim acaricia e beija cada um. Sonha que as criaturas de carne roxa criaram pernas e o prendem no chão com a bunda para cima. Mas o dia já amanheceu e Joaquim se espreguiça molemente sobre as florzinhas espalhadas, massacradas e agora sem as pernas. Passa a arrumá-las na latinha em que guarda o segredo. Sente falta de uma, a mais depravada da coleção. Depois de vasculhar o entorno sem sucesso, já em cima da bike para a longa pedalada de 100 km, ele sente algo bolinando no suor que desce rego abaixo. Passa a mão carinhosamente no finalzinho da coluna e lá está a florzinha apegada.
VI
A casa de Olímpia é pequena e lavada em cal. Tem a frente voltada para o nascente com portas e janelas azuis eternamente fechadas. Um quintal e sete gatas. Todas com nome de poeta: Adélia, Hilda, Florbela, Cecília, Carolina, Safo e Zila. Também já passou dos sessenta, porém todos juram que tem 80. Gorda e de mal com espelhos e academias ela fuma um pacote de Trevo no correr do dia e bebe generosas doses de conhaque comprado ali mesmo no bar da esquina, cujo dono, Celeste, tem o hábito de, aqui acolá, quando toma umas e outras e perde a timidez, mandar à senhora misteriosa espetinhos de coração acompanhados de algumas nove horas. Olímpia é indiferente não só a Celeste, a quem nunca deu um bom dia, pois quando necessita de conhaque, fumo ou água pede pelo celular, mas a muitas coisas que resolvera matar de deslembrança. E uma delas eram os vizinhos, que odiava. Vivia de escrever, regar as flores e cuidar das bichanas. Se alguém próximo perguntasse por que não tinha um amor, de pronto respondia que havia demitido o vagabundo. O vagabundo era o amor. E completava a justificativa sem mágoa nem autocomiseração: “não há nada de amor em minha vida senão adeus”. Há muito foi se deixando ficar só com os livros, os rascunhos amarelados, a velha Olivetti, substituída pelo computador que ganhara da escola em que foi professora por trinta anos, uma vitrola e dezenas de discos de jazz. Preferindo miados e ronronar, Olímpia descobriu seu jeito de ser entre os demais jeitos de ser encontrados por mim no cacareco de Romântico. E no seu jeito de ser ela deu uma atenção especial às flores que recebe todas as manhãs de sábado. Flores que, pela simplicidade, supõe roubadas da pracinha por alguém sensível à natureza, assim como ela é com os girassóis que semeou no canto do muro. Jamais procurou saber de quem era aquele gesto de amor ou de admiração. A ela não interessam os sentimentos nem a dedicação de quem lhe manda flores. Mesmo assim não deixa de gostar do anonimato daquele estranho encantador: “É poeta...”, pensa sem imaginar e apanha do chão as ramas orvalhadas de nove horas deixadas antes das sete. Depois de contemplar o presente por alguns segundos, ela arruma o buquê no vaso de vidro branco. Demora ainda um pouco na contemplação do colorido diverso das florzinhas e diz olhando Cecília, que brinca com uma florzinha destacada do galho: “longe de mim cultivar nove horas!”. Vai até os vinis e escolhe Billie Holiday. Enche o copo de conhaque e ouve enquanto acaricia Safo.
VII
Passava das duas da madrugada quando terminei a análise do caco de Romântico. Estava tão concentrado e curioso para ver até onde iam os seis passageiros que encontrei naquele fragmento que tive um sobressalto ao perceber o caos em que havia mergulhado a casa e os sentidos. Luzes muitas e de todas as variantes, gargalhadas, gritos, palavrões, tiros, reza, vômito, ladrões, carros, bosta, gigolôs, paredões, putas, drogas, trepadas, choro... O que fazer com o universo que dava cria no meu quarto? Depois de quase cegar sob o efeito intenso da luminosidade que atravessava os frascos de perfume da penteadeira, formando miríades de cor, pensei na caixa preta que havia comprado para proteger os filmes preto e branco da luz. “Pronto, encontrei o lugar!”, disse empurrando cada coisa para o fundo da caixa. E livre da desordem agora presa na escuridão, me lembrei de que ainda não havia tomado o xarope.  O sono chegou poucos minutos depois de engolir o líquido preto, um sono vazio e sem cor.

Ana Barros
Natal, 15 de maio de 2018.




VIDA

barulho, a agitação febril, a exterioridade e a multidão, ameaçam a interioridade do homem; falta-lhe o silêncio com a sua genuína palavra interior, falta-lhe ordem; falta-lhe oração, falta-lhe a paz, falta-lhe ele mesmo.
o é a carência do convívio social que impele o homem ao refúgio, mas a sua exuberância. A excitação, o barulho, a agitação febril, a exterioridade e a multidão, ameaçam a interioridade do homem; falta-lhe o silêncio com a sua genuína palavra interior, falta-lhe ordem; falta-lhe oração, falta-lhe a paz, falta-lhe ele mesmo.


domingo, 15 de abril de 2018

A porta

A palavra porta é metáfora recorrente em textos nos quais o autor quer falar de algo sem expressar esse algo de forma clara, na lata. O assunto é abordado com imagens desprezando-se a lógica dos argumentos racionais. Faz-se opção pelos sentidos, estes que embaralham e confundem, às vezes desregram, mas são claros e compreendidos pelo leitor de símbolos. Há na literatura estrangeira dois contos que leio e releio por dar à porta a importância poética necessária à minha busca insistente por saídas cuja entrada se mostre acessível não ao meu intelecto, mas à minha imaginação, que não deixa de também ser intelecto. A primeira porta que me causa curiosidade é a de Kafka na pequena história Diante da lei, parábola que consta em O processo. Porta impossível de ser adentrada nos pesadelos kafkianos. A segunda é o conto A ilha desconhecida, de Saramago, ao qual o autor dá à porta o sentido de espaço conquistado pela liberdade que ignora limites entre insano e sensatez.  Os dois autores, em poucas palavras, tencionam a existência com elevado grau de negação ou de vontade de poder, observando-se as peculiaridades existenciais e de época de cada um. Os dois textos têm perspectivas excludentes de estar no mundo: o primeiro de ausência de pacto com o absurdo e o segundo, de afirmação desse mesmo absurdo. No entanto, ambos esgotam as possibilidades de ascese do indivíduo, ora por meio da percepção consciente e humilhada da impotência humana diante do desconhecido (Lei, natureza, Deus), ora através da entrega consciente e apaixonada a esse mesmo desconhecido, porém íntimo do andarilho que busca ilhas desconhecidas.

O conto Diante da lei não enche uma página. Nele, o homem se aproxima da porta da Lei e pede ao guarda para entrar. Em resposta, o guarda fala da impossibilidade de tal ação e acrescenta em tom ameaçador que o visitante não se atreva insistir, pois, além dele, há outros agentes tão ou mais fortes vigiando as demais portas. Humilhado e na esperança do vigia ceder ao pedido, o homem espera, literalmente, deitado no vão da porta. E ali passa dias, meses, anos sem que a porta se abra à sua vontade. Enfim o homem envelhece, adoece e, antes de morrer, pergunta ao guarda “Se todos aspiram a Lei como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?”. O guarda responde: ”Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”.

Uma primeira observação do leitor atento mais à vida ordinária do dia a dia das repartições do que às questões de ordem do ser, a burocracia insensata seria a causa do suplício e da morte do homem comum que procura a Lei. Porém Kafka jamais dá uma única chave para se ter acesso ao seu pensamento, este, rico de metáforas e metamorfoses para atingir o absurdo da condição humana da qual o escritor padece física e moralmente. Aqui nasce outra observação, menos ambientada no cotidiano de homens comuns, que encontra no sofrimento, na dor, na humilhação e impotência diante da vida, ou do absoluto, a negação existencial: agir é sofrer, é inútil diante da certeza da morte. O protagonista de Diante da lei é a negação da ação, do conflito com o obstáculo, do murro na porta fechada, ou do soco na cara do vigia já que a porta era para ser adentrada por ele, homem não adequado à quimera existencial. O homem de Kafka é medroso, covarde diante de ameaças e impedimentos obscuros. Não ousa, não desespera, não rompe. Morre vítima da inação e inutilidade da esperança (ele espera a vida toda). Recolhe-se ao abrigo do nada sem antes travar a luta com o desconhecido. Não conseguimos ter outro sentimento senão compaixão por esse herói fora do tempo.

O homem de A ilha desconhecida, conto pequenino de Saramago, é o paradoxo do herói kafkiano. Ele não se sujeita a negativas, nem a portas fechadas à frente das quais alegam haver vigias cada um mais forte e assustador que o primeiro. O homem de Saramago quer um barco e vai até o palácio pedi-lo ao rei. Ele, diferente do homem de Kafka, quer conhecer o desconhecido, mesmo todos afirmando não haver mais ilhas a serem descobertas. Há a tentação aqui também de se observar a complexidade da pequena história apenas pelo viés da burocracia levada ao ridículo por Saramago, autor de esquerda e crítico do Estado burocrático. E como toda estratégia organizacional das instituições para afastar o povo dos espaços públicos e da intimidade com os poderosos, o palácio tem muitas portas, mas apenas duas funcionam com maior fluxo, a das petições e a dos obséquios, esta, a que o rei passa seu tempo de tirano recebendo “presentes”. A outra, dos pedidos, é o lugar em que se concentram os súditos que buscam satisfazer todos os tipos de necessidade. Então é nela que o homem se aboleta e passa três dias para tentar levar com ele o barco que irá descobrir a ilha desconhecida em alto mar. O rei, sempre muito ocupado com os obséquios, nunca recebe peticionários, a estes, manda o primeiro secretário, que manda o segundo secretário, que manda o ajudante... até chegar à mulher da limpeza, a qual, não tendo ninguém em quem mandar, entreabria a porta das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres? E o homem, altivo e destemido, “quero falar com o rei”. A mulher da limpeza diz ser impossível. Pois bem, o homem se deita no batente da porta e manda um recado pelos puxa-sacos do monarca: “só saio daqui quando o rei vier falar comigo”. E vendo que o sujeito não desiste e que os outros pedintes começam a tumultuar a frente do palácio, pois havia apenas uma vaga na porta das petições e esta há três dias era ocupada pelo homem, o rei é aconselhado a ir pessoalmente saber que pedido era aquele que só se resolvia com a sua presença. “Dá-me um barco”, disse o homem diante do mau humor do rei ao abrir a porta e ficar frente a frente com um súdito ousado e atrevido que quis abrir a porta e falar pessoalmente com o rei. Apesar de todos os argumentos contrários à concessão do barco a alguém que nunca comandou um, sequer conhece uma tripulação e ignora a inexistência de ilhas desconhecidas, uma vez que todas estão cartografadas, porém ele sabe que há uma fora do mapa, o homem não desiste e o rei, para livrar-se do incômodo e correr ao posto dos obséquios, manda o subordinado entregar-lhe o barco.

Além do querer do homem à porta das petições, Saramago cria uma terceira porta, também de grande importância simbólica, a porta das decisões, por onde a mulher da limpeza resolve abandonar o castelo depois de anos servindo o rei para seguir o homem no barco à deriva. Ele quer conhecer a ilha desconhecida. Ela quer permanecer na limpeza, contanto que seja agora limpeza de barco, e, em alto mar, imagem que dá a ambos o caráter ancestral do animal em busca de sua casa, esta, que pode ser um barco no qual se descobre a ilha desconhecida de uma mulher e de um homem que não se tornaram indiferentes à terra por esta já não mais oferecer lugares desconhecidos. Ao juntar os dois, homem e mulher, na aventura quixotesca, Saramago foge da não revolta e inadequação de Kafka e oferece à vida vigor, saúde, lirismo, amor e luta incessante contra o caos, ou melhor, contra a porta fechada.

Ana Barros
Natal, 27 de março de 2018.





terça-feira, 27 de março de 2018

Um pretérito perfeito


Acabou... Quem já não experimentou a sensação de liberdade, de finalmente... ao dizer esta simples palavra? Quantas vezes dizemos acabou! e que sonoridade terrível contém esse pretérito perfeito ao estancarmos suas sílabas com espaços miúdos, nervosos, inflexíveis. Entretanto, a paixão arde apenas para satisfazer este instante que todos nós sabemos, nunca deixa de ser surpresa.
A-ca-bou! é diferente de acabou... O primeiro é dilacerante, passional, morte. Dói dizer, fere quem ouve. Mas é uma necessidade de tudo aquilo que se inicia.  Pois não representamos o mesmo ato em cenários diferentes dezenas, centenas de vezes? É necessário! Nossa condição instintiva e móvel exige a repetição daquilo que nos inquieta (bem ou mal), até a consumação, seja pelo esgotamento natural do sentimento, seja pela quebra brusca e violenta da ação. Mesmo que nos interstícios de nossos atos abusemos do imperativo acabou pensando anular o sentimento causado pela experiência, não adianta, pois só o tempo dará cabo das ramificações da ilusão.
Os amantes, somente os amantes, conhecem esta sutileza dos sentidos. Nunca se cansam de repetir acabou! para logo em seguida recomeçar tudo de novo como se fosse a primeira vez.
Há sem dúvida os senhores de si que quando dizem "acabou!" acabou mesmo. São de comportamento inflexível, duros, tirânicos. Chegam ao paroxismo da virilidade, orgulham-se de ser imunes à vulnerabilidade das paixões. Prudentes, desfazem-se com rapidez e sem grandes traumas dos incômodos da sedução que, para os apaixonados, são a própria existência.
São esses práticos de espírito sempre equilibrado para quem a dúvida não conta na escalada do tempo. Têm solução para tudo que ameace a sua segurança. E se acabou, para eles não há ressurreição, Fênix. Para estes fortes, a experiência passou por longe não chegando sequer a causar um arranhão capaz de fazê-los esquecer por um segundo as convicções nem sempre sensatas.
Mas para aquele cuja vontade varia de acordo com o termômetro interno da necessidade, a verdade só chega depois de múltiplas viagens pelo território nebuloso da incerteza até um dia, cansado da batalha, esgotado da experiência, mas já endurecido pela repetição do ato que se tornou pensamento e não mais vontade, dizer, sem rancor e cheio de uma calma indiferença, acabou.

Ana Barros 

Natal, 01/07/2000

quarta-feira, 21 de março de 2018

Cigarra


Havia se passado tanto tempo que eu disse
“morreu no labirinto”
O verme – que retorna e rói minha certeza
Eu, que carreguei o animal ladeira acima
Que corri ladeira abaixo
Que vomitei as vísceras
Enfiei-me no chão com as cigarras
Eu, que limpei ao vento alto
Que larguei a pele morta
Que bebi na luz a gota de horror
Dormi abraçada a sonho bom
Mas a noite alheia à carniça e Náusea
Entornou mais uma vez
No oco do pau a cigarra canta

Ana Barros
Natal, 11/03/2018.

quinta-feira, 8 de março de 2018

Retrato pintado

Sou ainda da geração de filhos e netos dos retratos de família emoldurados na parede. Molduras redondas de gesso e coloridas de acordo com o gosto do cliente. Lembro sempre das marrons e verde-oliva. Onde estariam aqueles vestidos lindos e ternos de gala? Jamais vi um dos meus familiares com outra roupa senão aquelas comuns do dia a dia na lida do roçado, ou com aquela única da missa de domingo. Mas todos nas foto-pinturas trajam roupas de festa. As mulheres, sóbrias, de vestidos de cor neutra e sem estampa, ostentam joias no pescoço e orelhas. No cabelo, um broche segura os cachos em cascata. Os homens, além de bigodes e costeletas pretas, cabelo emplastrado com alguma brilhantina, trajavam paletó, camisa branca e gravata, pintados pelo foto-pintor. 
A edição de novembro de 2017 da revista ZUPI traz uma bela reportagem sobre "A memória pintada no retrato". Foi através dela que fiquei sabendo que os foto-pintores da época, de posse de seus equipamentos, batiam a porta do cliente e perguntavam se tinha alguma fotografia que gostaria de pintar. Sim, havia. Mas a pessoa na foto estava velha... Isso não era problema, a nova foto sairia com a idade desejada do cliente. Aí estava o charme da foto pintada, tão atual quanto as produzidas com os recursos digitais de hoje. Durante o processo, o foto-pintor diminuía a idade de acordo com o solicitado. E é devido a esses artifícios que eu achava estranho meu avô de cabelos e bigodes pretos, fisionomia de quarentão na foto pintada, quando já se avizinhava dos 70 na foto preto e branco que servira de modelo.
Hoje encontrei o poster pintado e a foto original de minha avó paterna, Francisca Barros. Na primeira ela aparenta ter 30 anos. Mas olhando a segunda, a que foi modelo, daria uns 50 anos a minha vó. Gosto das duas imagens. Alegra-me saber que somos vaidosos desde sempre. Damos muita importância à nossa imagem, seja nas paredes internas da casa, seja na tela do computador. E se possível, sem rugas nem "bigode chinês". O que, vale observar, desaparecem na foto pintada de Francisca Barros. Resultado que alguns artistas tratam de hiper-real.

Ana Barros
Natal, 07 de março de 2018.



Hoje ganhei xananas


Corro na pracinha. Dia sim, dia não encontro os amigos ao longo do passeio de dois mil metros quadrados. Amigos, todos, conquistados e deixados ali mesmo, perto das árvores, como eu também sou deixada. Seu Lamuel é um deles, já é bem idoso, mas faz suas caminhadas e é o responsável solitário pelo plantio de muitas árvores, frutíferas e não, do espaço. Há dois meses aluguei dele a casa na qual moro atualmente e encontrei um pedaço de chão à minha espera, cheio de matinhos e graminhas cultivados por ele. Pois não é que Seu Lamuel ama e protege o mato! Mas não me espantei: eu também gosto de mato. Me mudei e passei a contemplar as daninhas da janela da cozinha com o mesmo respeito que se deve ter por qualquer vegetação nativa. Em pouco tempo aquele espaço sem cimento passou a ser habitat das lagartixas gordas que passeiam por todos os cômodos da casa sem me incomodar, nem sujar. E o meu senhor dono da casa captando que somos semelhantes, perguntou-me alguns dias atrás: "você gosta de xananas?" "Sim!", respondi interessada. "Pois vou deixar umas pra você plantar no jardim." Até então não sabia que alguém plantava muda de Xanana, a flor oficial de Natal que nessa época de chuvas cobre canteiros e beiras de calçadas de lençóis da florzinha albina. Seu Lamuel planta, e acha elas lindas e quer dividir o seu prazer estético com a nova inquilina. E hoje, Dia internacional da mulher, ao abrir os portões dei de frente com o ramalhete de xananas que o senhor atento à flor, para a qual poucos se dão o trabalho de olhar antes de meter a enxada em suas raízes, havia enfiado pelas grades. Jamais recebi presente tão encantador, e de um senhor cujo interesse é tão somente partilhar comigo a graça de ser belo e comum como é a flor de Xanana.

Ana Barros
Natal, 08/03/2018.



domingo, 4 de março de 2018

Profana


a tarde caiu quente
(e sem alma)
abismo frio que esconde
um sol sem filtros a olhar
longe do altar de aliança e juras
o rito que diz à carne:
profana porque é drama

Ana Barros
04/03/2018


Escultura Sagrado/profano
Vitor Escaleira


quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

A lamparina de papai


Depois de dividir os pertences de nosso pai deixamos de lado a luz cega perdida no vazio ocupado por fantasmas que vicejam na escuridão dos mortos. Nenhum dos filhos teve interesse na lamparina velha, negra e com cheiro de sujo. Objeto que, mesmo desprezado pela insignificância estética e monetária, firmava ali presença do defunto apesar de fazer um ano já morto. Jogar fora aquele ser porque não apresentava valor aparente não queria dizer que tivesse perdido as qualidades que seu dono tão bem empregara. Não foi ele que todos os dias deu à luz uma atmosfera plena de religiosidade do corpo e do pensamento que morre antes da noite parir monstros? Nós, seus filhos, não tínhamos qualidades para avaliar cheiro sujo de coisa morta tão somente por exalar o outro que morria junto... Quantas vezes ao longo de décadas a lamparina fora única luz a vazar o nada nas paredes caiadas de sombras e seus espectros à espera do sol de outro dia? A lamparina continuou esquecida embaixo da pia junto aos resíduos que seriam jogados fora, entregue ao tempo que resolve acender – e apagar. Um ano e volto a encontrar a lamparina de papai ainda a guardar o pavio do qual subiram ao céu vazio espirais de corpo e alma.





Ana Barros
Natal, 26 de janeiro de 2015 (concluída em 28/02/2018).