Finalmente
havia chegado a hora de martelar Verdade:
pá pá pá pá... Quebrei miudinho tudo. Nada poupei. Separei e colei os pedaços dos quais não podia
abrir mão por ser a minha Fênix e
joguei fora o que considerei imprestável, fosse porque havia apodrecido, fosse
pelo desespero ao qual sou empurrado quando entendo emendar o que não pede remendo.
Porém, ao dar meia volta em direção à rua fui tomado pela má fé dos frustrados
que, apesar de derrotas em série, apelam com certa dose de “enquanto há vida há esperança” e voltei
à lixeira pegando de volta o caco de Romântico.
Limpei o cacareco das escaras e deixei-o em cima da escrivaninha. Analisaria
mais tarde possíveis metamorfoses pelas quais o tempo o havia poupado da morte
e do lixo do qual fora resgatado ainda com vida. É certo que não mais a vida azul e rosa com a qual o mundo foi
vestido enquanto hetero e romântico. Vi maravilhado o arco-íris Senhor da multiplicidade de tons sobre aquele pequeno
fragmento retornado dos escombros. Ali havia um mundo de coisas e aproximações
possíveis, um mundo que celebrava qualquer ritual de promessa de felicidade.
Contente
da minha ação abri o caco de Romântico
e simpatizei de imediato com os
corações que entraram na correnteza das sete
cores. Apanhei cada um deles e vi que a ilusão responsável por criações felizes estava à beira da morte, fosse
por que usada demais, fosse por que tinha que dar o lugar à outra que acabava de nascer sob o signo
do arco que, na infância, meus irmãos
e eu tentamos ultrapassar. Minha tia dizia que quem passasse debaixo do
arco-íris se fosse homem virava mulher e, se fosse mulher, virava homem: “É impossível alguém passar o arco-íris”, disse
para nosso desencanto o professor de ciências aproveitando a deixa para saber
se algum de nós desejava ser outro. Ficamos
em silêncio e encolhidos. No entanto, ali, diante do pedacinho de Romântico resgatado, vi que o professor
não estava com a razão ao afirmar que nunca, por mais que corrêssemos, atravessaríamos
o arco-íris. Descobri que podíamos,
sim, ser outro ao banhar nas cores do
arco do céu. Só que, para isso, se
fazia necessário destruir Verdade. E
foi no ato de martelar o que desbotava de velho que conheci Antonieta, Zulmira,
D. Mercês, Help, Joaquim e Olímpia. Seis coroas
cujo destino era tão somente a travessia
do arco-íris.
I
Antonieta
passa de sessenta cinco. Divorciada e com uma boa renda, separa todo mês dois mil
reais para as despesas semanais no Violão
de Prata. Paga as entradas, bebidas e o aluguel do dançarino. Antonieta tem um
dançarino só seu. O dinheiro de
aposentada é para comer e dançar, “duas
prioridades de velha”, diz satisfeita. Antonieta não abre mão da
sexta-feira no clube, coladinha em seu rapaz
alugado. Porém, a alegria completa-se ali mesmo, no salão. Consome-se no
contato suado com o dançarino cheiroso
a Lancaster, perfume da juventude
boêmia de Antonieta mandado buscar na Argentina para aquelas noites de tango e
gafieira. O rapaz de quase trinta
anos, de seios e quadris de moça, tem invariavelmente as calças pretas e coladas
à pele. O volume eleva-se sob o zíper parecendo algo postiço colocado ali com o
propósito de atiçar a libido da velha dançarina. Mas isso faz parte do jogo e
Antonieta conhece bem o jogo. A noite chega ao fim. O dançarino se despede da senhora exausta
e plena. Ela chama o táxi.
II
Zulmira
não casou. Não por falta de noivos, mas por não encontrar nestes atrativos.
Todos tinham algum defeito – usava prótese ou faltava um dente, não tomava
banho, fedia a queijo velho, tinha só uma muda de roupas, pobretão, andava a pé,
etc., etc. –, logo a moça cuidava de dar
o fora no infeliz. Fez isso durante a longa existência dos pais, que
desejavam ver a filha casada. Mas agora, com a morte dos dois e livre para
escolher não casar, ela chegara aos setenta completamente esquecida dos
inúmeros pretendentes que ensaiaram colocar uma aliança em seu dedo. Mesmo decidida
a não alimentar ilusões matrimoniais, Zulmira não abre mão de pedir uma
ajudinha a Santo Antônio quando chega o dia da entidade. É sempre a primeira a
subir no ônibus lotado de solteironas tagarelas misturadas a romeiros taciturnos
rumo à festa do santo casamenteiro na cidade cearense de Barbalha. O único
objetivo de todos na viagem é tocar o pau
do santo, tora de madeira gigante trazida da mata por homens robustos para o
deleite da multidão. Dizem que, além de curar as enfermidades dos pagadores de
promessa – velhos, velhas e crianças vestidos de batina marrom com um cordão amarrado
à cintura –, Santo Antônio também faz aparecer marido para as solteiras. A
algazarra entre casamenteiras deixa os devotos corados de vergonha. Eles ocupam
um lado do carro, elas o outro. Não se
tem notícia de que alguma entre elas vá à festa agradecer o marido arranjado. Gargalhadas
estridentes, piadas picantes, muito fumo, um gole aqui outro acolá de cachaça,
um beliscão na bunda de Nazaré, solteirona que viaja de jaqueta e bermudão jeans
e que devolve o atrevimento da companheira de viagem, vale lembrar que ambas se
conheceram dentro do ônibus, com outro beliscão, dessa vez na boceta de Zulmira, o que a faz gargalhar
ainda mais alto. Zulmira é a mais velha e a que mais viajou na estrada que leva
ao santo e às brincadeiras que se repetem todos os anos com uma das novatas do
passeio. Graças àquelas viagens ela voltava saciada e feliz. Traz algumas lascas
nas unhas e a certeza de que Santo Antônio, mais uma vez, lhe deu uma mãozinha.
O ônibus para na porta de Zulmira. Nazaré desce com a mala das duas.
III
Mas
nem só de dança, aluguel de dançarino e turismo profano vivem aquelas que
resolveram entrar no moinho hedonista cujas novidades brotam como as miniaturas
de corujas que entopem a estante de D. Mercês. Já são mais de quinhentas de
todos os tipos e lugar. Sessentona e viúva sem filhos, ela mora no pequeno apartamento
de um quarto. Resolveu que era tempo de aposentar vassouras e excessos, menos da
coleção de corujas e do prazer de jogar. Os dias haviam encolhido e a intenção
era estendê-los o máximo até onde o carteado fosse quem desse as cartas. D.
Mercês é a quarta de um grupo de amigas, todas com idade aproximada e cheias da
vontade de entrar noite adentro de sexta-feira. Pela aproximação do apartamento
da casa noturna, vão todas de carona com D. Mercês. Na volta, aproveitam para
tomar alguns drinques na varanda da amiga e ali mesmo dormirem sobre colchões
macios cuidadosamente acomodados para o momento.
O
lugar é o de sempre: Cassino Copas e Paus.
Elas vestem roupas da moda, usam joias e perfumes caros. O uísque e o cigarro
ficam por conta do garçom Libório, que faz algum tempo serve as clientes com as
marcas exigidas pelo bom gosto das quatro mulheres. Em meio à fumaça, cheiro de
bebidas e suor perfumado de homens e mulheres bem cuidados, gritinhos agudos, mão peluda tocando mão peluda, mão
gordinha e lisa tocando mão gordinha e lisa, cabeleira farta e oxigenada jogada
rente o rosto que estica as narinas para sentir o cheiro de cabelo limpo, as
pernas torneadas de D. Mercês, que aproveita a dádiva da natureza para exibi-las
fora da saia curta, causando frisson nas amigas... Elas aproveitam os minutos
do prazer que tem hora para acabar e começar outra vez na próxima semana. E assim
o dia amanhece. Pela porta agora aberta saem homens e mulheres com o cigarro
aceso. Eles, amarrotados, felizes e acompanhados de outros. Elas, retocadas,
embriagadas, alegres e acompanhadas de outras.
IV
A
mala de Help, D. Socorro para o antigo chefe, está sempre pronta. O único filho
é médico e passa mais tempo no hospital do que na vida aqui fora. Solteira e já
passado há muito dos cinquenta, Help cansou de exigir a companhia do filho nos
eventos que gostaria de ir depois da morte da tia velha de quem cuidou por
longos e solitários vinte anos. Da última vez que pediu para ir com ela ao show
de Zezo, o rapaz aconselhou: “chame uma
amiga, mamis”. “Ou melhor, convide o bofe que fica do seu
lado na igreja. Ele é uma gracinha, e tem grana!”, completou piscando o
olho e saiu porta afora sem esperar a resposta da mãe, que não vai à missa
desde a morte do pai há quarenta anos e tampouco conhece outro bofe além de Jiló dos teclados, de quem é fã e segue no Instagram. “Se não é o da missa é você, meu Jiló!...”,
grita Help e corre ao celular como se tivesse descoberto algo de grande
importância. “Alô! é da produção de Jiló?”
“É sim!”, diz a voz do lado de lá. “Onde
é o show dele neste final de semana?” “Em
Maceió, minha Senhora!” “Por favor, me passe a agenda completa de Jiló.” E
assim Help passou a acompanhar seu ídolo em todos os recantos do Brasil. Depois
de Maceió ela seguiu para Fortaleza, de lá para Brasília, de onde voou para Rio
Branco, Manaus, Recife, Aracaju, Belém...
V
Joaquim
pinta os cabelos e o bigode de acaju. Leu na revista do salão que frequenta
quinzenalmente que a tonalidade deixa o
coroa sexy e novo. “Ar-ra-zou!”,
exclamaram as cabeleireiras quando viram o resultado final. Faz algum tempo que
Joaquim diz ter cinquenta. Mas todos juram que o coroa se aproxima dos setenta. “É
só observar o couro do pescoço e dos cotovelos, é de setenta!”, garante
Lídia depois de ver o desejo de namorar Joaquim ir de água abaixo. Ela soube
pelas amigas que o pretendente não troca a bicicleta por mulher nenhuma. Já foi
casado algumas vezes, tem alguns filhos que havia tanto tempo que não os vê que
chegou a esquecer de nome e idade deles. Não se demora em remorsos nem
conselhos sobre velhice, doença e solidão: tem remédio para tudo isso. Já faz
três anos que pedala no grupo Tarados de
bike. São quatro companheiros com ele. Nada de mulher. Nada de paradas em
lugares festivos e barulhentos. Em noites de lua cheia tocam flauta ao redor da
fogueira.
Joaquim
pedala atrás. Tem paixão pelas florzinhas roxas, aquelas parecidas com vulvas
negras, e colhe-as o quanto cabem os bolsos da calça. À noite, distante dos demais,
ele infla o colchão e se deita de frente para a coleção de xibius murchos e secos. Não discrimina nenhum. Ama a todos. Já contou
cem, todos diferentes um do outro e com nome de acordo com a anatomia que ele
carrega no portfólio organizado exclusivamente com textos e imagens do órgão
feminino. Antes de adormecer Joaquim acaricia e beija cada um. Sonha que as criaturas
de carne roxa criaram pernas e o prendem no chão com a bunda para cima. Mas o
dia já amanheceu e Joaquim se espreguiça molemente sobre as florzinhas
espalhadas, massacradas e agora sem as pernas. Passa a arrumá-las na latinha em
que guarda o segredo. Sente falta de uma, a mais depravada da coleção. Depois de vasculhar o entorno sem sucesso, já
em cima da bike para a longa pedalada de 100 km, ele sente algo bolinando no
suor que desce rego abaixo. Passa a
mão carinhosamente no finalzinho da coluna e lá está a florzinha apegada.
VI
A
casa de Olímpia é pequena e lavada em cal. Tem a frente voltada para o nascente
com portas e janelas azuis eternamente fechadas. Um quintal e sete gatas. Todas
com nome de poeta: Adélia, Hilda, Florbela, Cecília, Carolina, Safo e Zila. Também já passou dos sessenta, porém todos
juram que tem 80. Gorda e de mal com espelhos e academias ela fuma um pacote de
Trevo no correr do dia e bebe generosas
doses de conhaque comprado ali mesmo no bar da esquina, cujo dono, Celeste, tem o hábito de, aqui acolá, quando
toma umas e outras e perde a timidez, mandar à senhora misteriosa espetinhos de coração acompanhados de algumas nove horas. Olímpia é indiferente não só
a Celeste, a quem nunca deu um bom dia, pois quando necessita de conhaque, fumo
ou água pede pelo celular, mas a muitas coisas que resolvera matar de deslembrança.
E uma delas eram os vizinhos, que odiava. Vivia de escrever, regar as flores e
cuidar das bichanas. Se alguém próximo perguntasse por que não tinha um amor,
de pronto respondia que havia demitido o vagabundo.
O vagabundo era o amor. E completava
a justificativa sem mágoa nem autocomiseração: “não há nada de amor em minha vida senão adeus”. Há muito foi se deixando ficar só com os livros, os rascunhos
amarelados, a velha Olivetti, substituída pelo computador que ganhara da escola
em que foi professora por trinta anos, uma vitrola e dezenas de discos de jazz.
Preferindo miados e ronronar, Olímpia descobriu seu jeito de ser entre os demais
jeitos de ser encontrados por mim no cacareco de Romântico. E no seu jeito de ser ela deu uma atenção especial às
flores que recebe todas as manhãs de sábado. Flores que, pela simplicidade, supõe
roubadas da pracinha por alguém sensível à natureza, assim como ela é com os
girassóis que semeou no canto do muro. Jamais procurou saber de quem era aquele
gesto de amor ou de admiração. A ela não interessam os sentimentos nem a
dedicação de quem lhe manda flores. Mesmo assim não deixa de gostar do
anonimato daquele estranho encantador:
“É poeta...”, pensa sem imaginar e apanha do chão as ramas orvalhadas de
nove horas deixadas antes das sete.
Depois de contemplar o presente por alguns segundos, ela arruma
o buquê no vaso de vidro branco. Demora ainda um pouco na contemplação do
colorido diverso das florzinhas e diz olhando Cecília, que brinca com uma florzinha destacada do galho: “longe de mim cultivar nove horas!”. Vai até os vinis e escolhe
Billie Holiday. Enche o copo de conhaque e ouve enquanto acaricia Safo.
VII
Passava
das duas da madrugada quando terminei a análise do caco de Romântico. Estava tão concentrado e curioso para ver até onde iam
os seis passageiros que encontrei naquele fragmento que tive um sobressalto ao
perceber o caos em que havia mergulhado a casa e os sentidos. Luzes muitas e de
todas as variantes, gargalhadas, gritos, palavrões, tiros, reza, vômito, ladrões,
carros, bosta, gigolôs, paredões, putas,
drogas, trepadas, choro... O que fazer com o universo que dava cria no meu
quarto? Depois de quase cegar sob o efeito intenso da luminosidade que
atravessava os frascos de perfume da penteadeira, formando miríades de cor,
pensei na caixa preta que havia comprado
para proteger os filmes preto e branco da luz. “Pronto, encontrei o lugar!”, disse empurrando cada coisa para o fundo da caixa. E livre da
desordem agora presa na escuridão, me lembrei de que ainda não havia tomado o xarope. O sono chegou poucos minutos depois de engolir
o líquido preto, um sono vazio e sem cor.
Ana
Barros
Natal,
15 de maio de 2018.
VIDA
barulho, a agitação febril, a exterioridade e a multidão, ameaçam a
interioridade do homem; falta-lhe o silêncio com a sua genuína palavra
interior, falta-lhe ordem; falta-lhe oração, falta-lhe a paz, falta-lhe ele
mesmo.
o é a carência do convívio social que impele o homem ao refúgio, mas a
sua exuberância. A excitação, o barulho, a agitação febril, a exterioridade e a
multidão, ameaçam a interioridade do homem; falta-lhe o silêncio com a sua
genuína palavra interior, falta-lhe ordem; falta-lhe oração, falta-lhe a paz,
falta-lhe ele mesmo.
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