domingo, 15 de abril de 2018

A porta

A palavra porta é metáfora recorrente em textos nos quais o autor quer falar de algo sem expressar esse algo de forma clara, na lata. O assunto é abordado com imagens desprezando-se a lógica dos argumentos racionais. Faz-se opção pelos sentidos, estes que embaralham e confundem, às vezes desregram, mas são claros e compreendidos pelo leitor de símbolos. Há na literatura estrangeira dois contos que leio e releio por dar à porta a importância poética necessária à minha busca insistente por saídas cuja entrada se mostre acessível não ao meu intelecto, mas à minha imaginação, que não deixa de também ser intelecto. A primeira porta que me causa curiosidade é a de Kafka na pequena história Diante da lei, parábola que consta em O processo. Porta impossível de ser adentrada nos pesadelos kafkianos. A segunda é o conto A ilha desconhecida, de Saramago, ao qual o autor dá à porta o sentido de espaço conquistado pela liberdade que ignora limites entre insano e sensatez.  Os dois autores, em poucas palavras, tencionam a existência com elevado grau de negação ou de vontade de poder, observando-se as peculiaridades existenciais e de época de cada um. Os dois textos têm perspectivas excludentes de estar no mundo: o primeiro de ausência de pacto com o absurdo e o segundo, de afirmação desse mesmo absurdo. No entanto, ambos esgotam as possibilidades de ascese do indivíduo, ora por meio da percepção consciente e humilhada da impotência humana diante do desconhecido (Lei, natureza, Deus), ora através da entrega consciente e apaixonada a esse mesmo desconhecido, porém íntimo do andarilho que busca ilhas desconhecidas.

O conto Diante da lei não enche uma página. Nele, o homem se aproxima da porta da Lei e pede ao guarda para entrar. Em resposta, o guarda fala da impossibilidade de tal ação e acrescenta em tom ameaçador que o visitante não se atreva insistir, pois, além dele, há outros agentes tão ou mais fortes vigiando as demais portas. Humilhado e na esperança do vigia ceder ao pedido, o homem espera, literalmente, deitado no vão da porta. E ali passa dias, meses, anos sem que a porta se abra à sua vontade. Enfim o homem envelhece, adoece e, antes de morrer, pergunta ao guarda “Se todos aspiram a Lei como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?”. O guarda responde: ”Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”.

Uma primeira observação do leitor atento mais à vida ordinária do dia a dia das repartições do que às questões de ordem do ser, a burocracia insensata seria a causa do suplício e da morte do homem comum que procura a Lei. Porém Kafka jamais dá uma única chave para se ter acesso ao seu pensamento, este, rico de metáforas e metamorfoses para atingir o absurdo da condição humana da qual o escritor padece física e moralmente. Aqui nasce outra observação, menos ambientada no cotidiano de homens comuns, que encontra no sofrimento, na dor, na humilhação e impotência diante da vida, ou do absoluto, a negação existencial: agir é sofrer, é inútil diante da certeza da morte. O protagonista de Diante da lei é a negação da ação, do conflito com o obstáculo, do murro na porta fechada, ou do soco na cara do vigia já que a porta era para ser adentrada por ele, homem não adequado à quimera existencial. O homem de Kafka é medroso, covarde diante de ameaças e impedimentos obscuros. Não ousa, não desespera, não rompe. Morre vítima da inação e inutilidade da esperança (ele espera a vida toda). Recolhe-se ao abrigo do nada sem antes travar a luta com o desconhecido. Não conseguimos ter outro sentimento senão compaixão por esse herói fora do tempo.

O homem de A ilha desconhecida, conto pequenino de Saramago, é o paradoxo do herói kafkiano. Ele não se sujeita a negativas, nem a portas fechadas à frente das quais alegam haver vigias cada um mais forte e assustador que o primeiro. O homem de Saramago quer um barco e vai até o palácio pedi-lo ao rei. Ele, diferente do homem de Kafka, quer conhecer o desconhecido, mesmo todos afirmando não haver mais ilhas a serem descobertas. Há a tentação aqui também de se observar a complexidade da pequena história apenas pelo viés da burocracia levada ao ridículo por Saramago, autor de esquerda e crítico do Estado burocrático. E como toda estratégia organizacional das instituições para afastar o povo dos espaços públicos e da intimidade com os poderosos, o palácio tem muitas portas, mas apenas duas funcionam com maior fluxo, a das petições e a dos obséquios, esta, a que o rei passa seu tempo de tirano recebendo “presentes”. A outra, dos pedidos, é o lugar em que se concentram os súditos que buscam satisfazer todos os tipos de necessidade. Então é nela que o homem se aboleta e passa três dias para tentar levar com ele o barco que irá descobrir a ilha desconhecida em alto mar. O rei, sempre muito ocupado com os obséquios, nunca recebe peticionários, a estes, manda o primeiro secretário, que manda o segundo secretário, que manda o ajudante... até chegar à mulher da limpeza, a qual, não tendo ninguém em quem mandar, entreabria a porta das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres? E o homem, altivo e destemido, “quero falar com o rei”. A mulher da limpeza diz ser impossível. Pois bem, o homem se deita no batente da porta e manda um recado pelos puxa-sacos do monarca: “só saio daqui quando o rei vier falar comigo”. E vendo que o sujeito não desiste e que os outros pedintes começam a tumultuar a frente do palácio, pois havia apenas uma vaga na porta das petições e esta há três dias era ocupada pelo homem, o rei é aconselhado a ir pessoalmente saber que pedido era aquele que só se resolvia com a sua presença. “Dá-me um barco”, disse o homem diante do mau humor do rei ao abrir a porta e ficar frente a frente com um súdito ousado e atrevido que quis abrir a porta e falar pessoalmente com o rei. Apesar de todos os argumentos contrários à concessão do barco a alguém que nunca comandou um, sequer conhece uma tripulação e ignora a inexistência de ilhas desconhecidas, uma vez que todas estão cartografadas, porém ele sabe que há uma fora do mapa, o homem não desiste e o rei, para livrar-se do incômodo e correr ao posto dos obséquios, manda o subordinado entregar-lhe o barco.

Além do querer do homem à porta das petições, Saramago cria uma terceira porta, também de grande importância simbólica, a porta das decisões, por onde a mulher da limpeza resolve abandonar o castelo depois de anos servindo o rei para seguir o homem no barco à deriva. Ele quer conhecer a ilha desconhecida. Ela quer permanecer na limpeza, contanto que seja agora limpeza de barco, e, em alto mar, imagem que dá a ambos o caráter ancestral do animal em busca de sua casa, esta, que pode ser um barco no qual se descobre a ilha desconhecida de uma mulher e de um homem que não se tornaram indiferentes à terra por esta já não mais oferecer lugares desconhecidos. Ao juntar os dois, homem e mulher, na aventura quixotesca, Saramago foge da não revolta e inadequação de Kafka e oferece à vida vigor, saúde, lirismo, amor e luta incessante contra o caos, ou melhor, contra a porta fechada.

Ana Barros
Natal, 27 de março de 2018.





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