A
palavra porta é metáfora recorrente
em textos nos quais o autor quer falar de algo sem expressar esse algo de forma clara, na lata. O assunto
é abordado com imagens desprezando-se a lógica dos argumentos racionais. Faz-se
opção pelos sentidos, estes que embaralham e confundem, às vezes desregram, mas
são claros e compreendidos pelo leitor de símbolos. Há na literatura estrangeira dois contos que leio e releio por dar
à porta a importância poética
necessária à minha busca insistente por saídas
cuja entrada se mostre acessível não
ao meu intelecto, mas à minha imaginação, que não deixa de também ser intelecto.
A primeira porta que me causa curiosidade
é a de Kafka na pequena história Diante
da lei, parábola que consta em O
processo. Porta impossível de ser adentrada nos pesadelos kafkianos. A segunda
é o conto A ilha desconhecida, de
Saramago, ao qual o autor dá à porta o sentido de espaço conquistado pela
liberdade que ignora limites entre insano e sensatez. Os dois autores, em poucas palavras, tencionam
a existência com elevado grau de negação ou de vontade de poder, observando-se
as peculiaridades existenciais e de época de cada um. Os dois textos têm
perspectivas excludentes de estar no mundo: o primeiro de ausência de pacto com
o absurdo e o segundo, de afirmação desse mesmo absurdo. No entanto, ambos
esgotam as possibilidades de ascese do indivíduo, ora por meio da percepção
consciente e humilhada da impotência humana diante do desconhecido (Lei,
natureza, Deus), ora através da entrega consciente e apaixonada a esse mesmo desconhecido, porém íntimo do andarilho
que busca ilhas desconhecidas.
O
conto Diante da lei não enche uma
página. Nele, o homem se aproxima da porta da Lei e pede ao guarda para entrar.
Em resposta, o guarda fala da impossibilidade de tal ação e acrescenta em tom
ameaçador que o visitante não se atreva insistir, pois, além dele, há outros agentes
tão ou mais fortes vigiando as demais portas. Humilhado e na esperança do vigia
ceder ao pedido, o homem espera, literalmente, deitado no vão da porta. E ali
passa dias, meses, anos sem que a porta se abra à sua vontade. Enfim o homem
envelhece, adoece e, antes de morrer, pergunta ao guarda “Se todos aspiram a Lei como é que, durante todos esses anos, ninguém
mais, senão eu, pediu para entrar?”. O guarda responde: ”Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar,
porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”.
Uma
primeira observação do leitor atento mais à vida ordinária do dia a dia das
repartições do que às questões de ordem do ser, a burocracia insensata seria a
causa do suplício e da morte do homem comum que procura a Lei. Porém Kafka
jamais dá uma única chave para se ter acesso ao seu pensamento, este, rico de
metáforas e metamorfoses para atingir o absurdo da condição humana da qual o
escritor padece física e moralmente. Aqui nasce outra observação, menos
ambientada no cotidiano de homens comuns, que encontra no sofrimento, na dor, na
humilhação e impotência diante da vida, ou do absoluto, a negação existencial:
agir é sofrer, é inútil diante da certeza da morte. O protagonista de Diante da lei é a negação da ação, do
conflito com o obstáculo, do murro na porta fechada, ou do soco na cara do
vigia já que a porta era para ser adentrada por ele, homem não adequado à
quimera existencial. O homem de Kafka é medroso, covarde diante de ameaças e
impedimentos obscuros. Não ousa, não desespera, não rompe. Morre vítima da
inação e inutilidade da esperança (ele espera a vida toda). Recolhe-se ao
abrigo do nada sem antes travar a luta com o desconhecido. Não conseguimos ter
outro sentimento senão compaixão por esse herói fora do tempo.
O
homem de A ilha desconhecida, conto pequenino
de Saramago, é o paradoxo do herói kafkiano. Ele não se sujeita a negativas,
nem a portas fechadas à frente das quais alegam haver vigias cada um mais forte
e assustador que o primeiro. O homem de Saramago quer um barco e vai até o
palácio pedi-lo ao rei. Ele, diferente do homem de Kafka, quer conhecer o desconhecido, mesmo todos afirmando não haver mais ilhas a serem descobertas. Há a
tentação aqui também de se observar a complexidade da pequena história apenas
pelo viés da burocracia levada ao ridículo por Saramago, autor de esquerda e
crítico do Estado burocrático. E como toda estratégia organizacional das
instituições para afastar o povo dos espaços públicos e da intimidade com os
poderosos, o palácio tem muitas portas, mas apenas duas funcionam com maior
fluxo, a das petições e a dos obséquios, esta, a que o rei passa seu tempo de
tirano recebendo “presentes”. A outra, dos pedidos, é o lugar em que se
concentram os súditos que buscam satisfazer todos os tipos de necessidade.
Então é nela que o homem se aboleta e passa três dias para tentar levar com ele
o barco que irá descobrir a ilha desconhecida em alto mar. O rei, sempre muito
ocupado com os obséquios, nunca recebe peticionários, a estes, manda o primeiro
secretário, que manda o segundo secretário, que manda o ajudante... até
chegar à
mulher da limpeza, a qual, não tendo ninguém em quem mandar, entreabria a porta
das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres? E o homem, altivo e destemido, “quero falar com
o rei”. A mulher da limpeza diz ser impossível. Pois bem, o homem se deita no
batente da porta e manda um recado pelos puxa-sacos do monarca: “só saio daqui
quando o rei vier falar comigo”. E vendo que o sujeito não desiste e que os
outros pedintes começam a tumultuar a frente do palácio, pois havia apenas uma
vaga na porta das petições e esta há três dias era ocupada pelo homem, o rei é
aconselhado a ir pessoalmente saber que pedido era aquele que só se resolvia
com a sua presença. “Dá-me um barco”, disse o homem diante do mau humor do rei
ao abrir a porta e ficar frente a frente com um súdito ousado e atrevido que quis
abrir a porta e falar pessoalmente com o rei. Apesar de todos os argumentos
contrários à concessão do barco a alguém que nunca comandou um, sequer conhece
uma tripulação e ignora a inexistência de ilhas desconhecidas, uma vez que
todas estão cartografadas, porém ele sabe que há uma fora do mapa, o homem não
desiste e o rei, para livrar-se do incômodo e correr ao posto dos obséquios,
manda o subordinado entregar-lhe o barco.
Além do querer
do homem à porta das petições, Saramago cria uma terceira porta, também de
grande importância simbólica, a porta das decisões,
por onde a mulher da limpeza resolve abandonar o castelo depois de anos
servindo o rei para seguir o homem no barco à deriva. Ele quer conhecer a ilha
desconhecida. Ela quer permanecer na limpeza, contanto que seja agora limpeza
de barco, e, em alto mar, imagem que dá a ambos o caráter ancestral do animal
em busca de sua casa, esta, que pode
ser um barco no qual se descobre a ilha
desconhecida de uma mulher e de um homem que não se tornaram indiferentes à
terra por esta já não mais oferecer lugares desconhecidos. Ao juntar os dois,
homem e mulher, na aventura quixotesca, Saramago foge da não revolta e
inadequação de Kafka e oferece à vida vigor, saúde, lirismo, amor e luta incessante
contra o caos, ou melhor, contra a porta
fechada.
Ana Barros
Natal, 27 de março de 2018.
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