quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A MORTE FELIZ


Para quem leu O estrangeiro, Camus pode parecer um escritor estranho com seu personagem avesso às convenções e ao comum da cultura humana. Mata por motivo fútil, não sofre à morte da mãe e não ama Maria, apesar da sensualidade e de tudo girar em torno das sensações do corpo. Na frieza e no absurdo da história nos identificamos e somos levados a fazer uma leitura transfigurada do pequeno romance. Camus, em sua estranheza, nos força a agir na lucidez, mesmo quando a consciência fica clara na solidão mais atroz, aquela que antecede a morte.

A morte feliz, romance póstumo, talvez um esboço de O estrangeiro, uma vez que os originais são anteriores à publicação deste, entre 1936 e1938, tem o personagem central com o mesmo nome, Mersault, e trata do mesmo tema, a revolta do homem diante do absurdo existencial, do qual não tem saída a não ser por meio do suicídio (O mito de sísifo, do mesmo autor), ou aniquilando a revolta no fogo da paixão clarividente da existência. “A conquista da autenticidade por um movimento na solidão e na natureza” justifica A morte feliz.

Ao contrário de Fausto (Goethe), protótipo do homem moderno, ativo e hedonista, o herói ocioso de Camus defende a inação sem contudo abandonar a entrega erótico-sensual de seus dias à natureza luminosa do sol, do mar e dos corpos femininos sem jamais se entediar nem sair à cata de paraísos artificiais. As mulheres, a amizade com elas, o sexo, o sol e o mar, símbolos da sensualidade, são presença marcante nos textos de Camus, sem com isso haver qualquer entrega nas relações cotidianas e comuns dos casais. Tanto em O estrangeiro quanto na Morte feliz, Camus procura despersonalizar o máximo para poder mergulhar na pureza e concretude da natureza e aí, na solidão e comunhão de iguais, ser feliz. “Até aqui, vivera. Agora, podia-se falar de sua vida. Desse grande e devastador arrebatamento que o levara para a frente, da poesia fugaz e criadora da vida, nada mais restava agora senão a verdade sem rugas que é o contrário da poesia.”

Grande leitor de Kafka e Dostoievski, Camus aborda o niilismo de seu personagem por um viés completamente amoral, humano em todos os sentidos, fugindo assim da perturbação judaico-cristã que tanto atormentou os dois escritores e tantos outros artistas que jamais conseguiram libertar a imaginação dos fantasmas religiosos. Camus rompe radicalmente com a metafísica, seja ela oriunda de religiões, da ciência ou mesmo da filosofia. O homem de Camus deixa o romantismo e a tragédia de lado para se assumir com toda a carga que o mundo comporta. Revolta-se, perde-se, agoniza em meio ao absurdo que é saber-se mortal e que nada tem sentido no universo. Mas esse mesmo homem, alerta e lúcido de toda a sua tragédia, se faz soberano de si mesmo e justifica-se no tempo finito como um Dom Quixote pleno de suas faculdades mentais, não devorando noite adentro romances de cavalaria, porém, virando as páginas destes num desprezo claro de quem alcançou a verdade. “Não se nasce forte, fraco ou com força de vontade. As pessoas tornam-se fortes, tornam-se lúcidas. O destino não está no homem, e sim à sua volta”, pensa Mersault perto de morrer.

ASSASSINATO JUSTIFICADO

Ao ler A morte feliz, possuídos da moral que nos impede de matar o outro, tendemos a ficar chocados com a frieza com que Camus leva seu herói assassinar um homem para poder ganhar a sua liberdade, pois que o outro tinha o que ele precisava, dinheiro. Patrice Mersault é um funcionário medíocre que trabalha oito horas diárias e não consegue tempo livre nem dinheiro para viver com prazer. Conhece o ex-amante de Marthe, sua atual namorada, Roland Zagreus, deficiente de cadeira de rodas, rico, culto e educado, que passa a gostar de Patrice e com este mantém diálogos reflexivos que estimulam Mersaut a matá-lo e roubar a fortuna guardada pelo inválido.

As semelhanças com Crime e castigo são bastante visíveis no sentido niilista dos personagens principais em matar por considerar o outro desnecessário ao mundo, a velha de Crime e castigo por ser desprezível em sua usura e o outro, Zagreus, por ser metade homem, não tem as pernas, e não dispor do tempo e do dinheiro com a liberdade plena de existir, desejada por Mersaut, jovem, atlético, viril e consciente das limitações existenciais para as quais toda a moral perdera o sentido.

Longe das angústias e da culpa que atormentam o antes racional e autossuficiente Raskólnikov, Patrice é lúcido e “inocente” de qualquer traço de arrependimento. Mesmo quando ensaia uma confissão ao amigo Bernard, “Não porque o segredo lhe pesasse. Não havia segredo nisso. Se até então se calara, era na medida em que, em certos meios, guardam-se os pensamentos, por saber que se chocariam com os preconceitos e a estupidez”.

Camus trata a lucidez com tanta veemência que, para nos convencer do real poder humano em sua finita existência, utiliza-se do assassinato como símbolo para nos fazer refletir sobre a inutilidade da moral quando tudo é permitido entre os homens, até mesmo matar o outro. Se Ivan Karamazov duvida: “Se Deus não existe, tudo é possível”, Mersault não expressa nenhuma dúvida, sabe que é mortal e também o que quer do único mundo que conhece. E o que ele quer do mundo é real, táctil, natureza e não ideia.

Patrice Mersault poderia ser um boêmio, ou o dândi tão cobiçado por poetas da França do século dezenove, mas ele é lúcido demais para ser um decadente. Enquanto o herói russo encontra redenção no sofrimento e na expiação da culpa, Mersault considera todos os atos humanos inocentes, uma vez que não há nada além do corpo que quer e da lucidez que se entrega. “Se sou feliz, é graças à minha má consciência. Senti necessidade de partir e de conquistar esta solidão na qual pude confrontar dentro de mim tudo o que havia para ser confrontado, o que era sol e o que eram lágrima... Sim, sou humanamente feliz.” Aqui a ênfase nitzscheana do amor fati, da conquista da autenticidade de um homem-deus. A morte vai encontrá-lo com o mesmo olhar e com o mesmo desejo. “E, pedra entre pedras, ele retornou, na alegria de seu coração, à verdade dos mundos imóveis.”

Ana Barros

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O grito

Quem usa o transporte coletivo nas capitais nordestinas está familiarizado com jovens que todos os dias entram nos ônibus para divulgar o programa de recuperação de dependentes químicos ao qual fazem parte. São rapazes entre 18 e 24 anos que fazem o intercâmbio com outros internos que vão para o Estado de onde vieram. Mochila do lado, camiseta com o nome de Jesus, eles discursam com voz alta e cadenciada.

O que mais chama a atenção nesses rapazes, aliás, nunca se vê uma mulher entre eles, é a articulação emocional e carregada de realismo no depoimento de suas misérias. Fico atenta à conversa alta e enfadonha, pois nenhum passageiro gosta de ser incomodado nessas viagens entediantes do dia a dia das capitais. Mas, prestando bem a atenção naquele grito, rape cru, sem acompanhamento, pode-se extrair uma experiência de vida e consequentemente a morte de valores. Aqueles jovens desceram ao inferno e, no limite da destruição, entregaram-se nas mãos do doutrinamento católico, espírita ou protestante, que promete resgatá-los uma vez que o Estado brasileiro não dispõe de programas sérios de enfrentamento da questão, deixando quem precisa de ajuda correr de um lado para outro em pontos de ônibus em busca de socorro.

Quase todos dizem já está fora das drogas e do crime há algum tempo. Casaram, tiveram filhos. Uma família resgatada graças ao recolhimento em casas de apoio, cuja terapia é a via crucis da expiação pública. Além do desafio em se jogar no mundo hostil com as suas dores e as dores daqueles que os amam, vendem kits com canetas, bolsinhas para celular e outras miudezas a preço simbólico para ajudar na manutenção da instituição.

Diante da indiferença social, são apaixonados como um mártir. Acreditam e querem convencer aqueles que os desprezaram que são capazes de reverter a história, de ser um igual. Sabe-se porém o quanto é difícil acontecer essa empatia uma vez que a própria sociedade esconde neuroticamente as particularidades de quem diz que é diferente daquilo que pauta a cartilha moral. Para aqueles vindos das classes populares: o subúrbio, o gueto, a rua, a penitenciária e o manicômio. Àqueles de alto poder aquisitivo: o acobertamento em condomínios fechados, em clínicas particulares de recuperação, em longas viagens ao exterior, jamais a exposição pública dentro de um ônibus como terapia.

A última vez que vi e ouvi um desses rapazes falando o seu rape, comparei a cena com a mesma situação se fosse um jovem de classe social elevada. Para este a confidência com o psicólogo numa sala privada, longe de ouvidos e olhos curiosos. Para aquele, o eleito entre os milhares que sequer chegarão ao estágio do ônibus, a publicidade, a verbalização sem paredes nem psicólogo atento a cada detalhe. Para um, o escondido, o privado, a confiança e socialização. Para o outro, o escárnio e indiferença da maioria dos passageiros que chegam a ameaçar com denúncias à polícia numa demonstração de ódio pela pessoa que se revela como é diante do mundo na esperança de ser aceito e integrado. No entanto, observando a fundo o discurso repetido a cada subida no ônibus, encontramos naquele fluxo ritmado uma riqueza simbólica e uma profunda vontade de viver. E não há terapia mais humana, mais sensível, mais quente do que se expor perante o outro e vomitar o dejeto reprimido.

Ana Barros