domingo, 29 de setembro de 2013

VELÓRIO DE ANJO




Há dias minhas lembranças, que são por demais lá do cafundó, me fazem sentir vontade de escrever sobre um assunto muito comum na minha infância de zona rural: o velório de anjo. Anjo porque criança morta é símbolo da mais profunda piedade e elevação às alturas, sentimento comparado à pureza de um anjo. E como foram muitos os meninos e meninas de morte prematura àquela época de poucos recursos sanitários e consequente higiene precária! Nos inúmeros velórios que fui na companhia de Tutu e de meus irmãos ouvi as mulheres dizerem em voz baixa que a criança havia morrido de “mal do sétimo dia”. Vim saber mais tarde que aquele diagnóstico popular era a simples e terrível denominação do tétano, doença naquele tempo de falta da luz elétrica e de informação, tão assustadora que, para pronunciá-la, dava-se três tapinhas na boca seguidas da expressão “Ave Maria. Ave Maria. Ave Maria”.

Por esse tempo conheci uma senhora, já velhinha de mais de 80 anos, sem filhos nem companheiro, cuja falta de cuidados com os recém-nascidos levou a enterrar oito anjinhos. Quando jovem, além de passar os dias trabalhando em lavouras de senhores proprietários de terra, ela ainda dava escapulidas com os companheiros de labuta, o que a fez parir constantemente sem condições materiais para cuidar dos filhos. Diziam as conhecidas à boca miúda, que a amiga deixava o recém-nascido na rede o dia inteiro enquanto trabalhava ou ia às brincadeiras com os camaradas da roça. Ninguém para dar uma olhadinha, uma mamadeira ou um chá ao pequeno. Em poucos dias, no máximo sete, quando a mãe retornava da roça ou do rala-bucho, o bebê havia virado anjo. E lá corriam as carpideiras a lamentar o pequenino, ora dentro de um caixãozinho de madeira ordinária, ora sobre um lençol estirado no chão batido com círios ao redor.

Apesar da tristeza que me fazia perder o sono depois dos velórios aos quais sempre fazíamos questão de ir, pois era um motivo para sairmos à noite, não deixei de admirar, e até hoje tentar reproduzir em meus trabalhos manuais, a renda de papel seda branco que as mulheres faziam para cobrir o caixão dos anjos. Depois de vestirem o pequeno defunto com uma túnica branca de algodão, enfeitavam-no com jasmins, também brancos, e por cima, em vez de véu, uma manta de renda belíssima de papel.

Ana Barros


Ana Barros

terça-feira, 24 de setembro de 2013

FUMAR JÁ FOI UM... CHARME



Lauro apagou o cigarro antes de entrarmos no bar onde ele, com a atenção e o cuidado de todas as pessoas bem informadas, leu o aviso pendurado na parede ao lado, o qual dizia ser proibido fumar naquele lugar. Logo abaixo, o número da Lei em negrito. Gostei da atitude de Lauro não por eu ser uma adepta dos bons costumes nem tampouco me considerar uma pessoa politicamente correta. Gostei porque trouxe à lembrança a fragilidade dos costumes aos quais nos agarramos como a moral mais exata e permanente quando, observemos, não passam de quimeras, cinzas jogadas no tempo. Uma dessas quimeras é justamente a atual proibição do fumo em lugares coletivos e fechados e o patrulhamento dos adeptos da boa saúde. Senão, vejamos a história dos hábitos de nossos antepassados de cinquenta, cem anos atrás e vamos constatar, com certa melancolia, a nulidade no presente de quase toda a moral instituída por eles como verdade. E, se continuássemos vivos além de cem anos, haveríamos de presenciar a derrota de todas as nossas convenções.

Olhei Lauro esmagar o toco do cigarro sob o sapato e vi outra cena de tempos muito para trás quando, ainda menina de sete, oito anos, acompanhava meu avô Chico Pereira na "degustação" de um longo e grosso cigarro brejeiro, ou "pé-de-burro", como era vulgarmente chamado entre os camponeses. Longe de imaginar que um dia aquela permissividade seria punida com o rigor da Lei, meu avô, como todos os adultos que não só fumavam na presença e com as crianças, mas as levavam com eles para ajudar no trabalho do campo, outra prática hoje substituída por auxílios de governo, picava o fumo de rolo numa tábua, fazia o cigarro seguido por seus trabalhadores e por mim, que observava como os homens enrolavam o papel seda, ou mesmo o papel de embrulhar o pão. Esse ritual acontecia sempre depois do almoço, entre a sesta e o retorno ao roçado, com os homens portando o resto do cigarro molhado de saliva escura atrás da orelha para fumar em algum instante qualquer, amparado no cabo da enxada.

Jamais fumei um cigarro até o fim. O estômago começa a embrulhar, a cabeça roda e não paro de cuspir o resto do dia. Insisti várias vezes no vício que meu avô, minha mãe, irmãos e tios desenvolveram largamente e sem impedimentos de ninguém, hábito que mais tarde, junto ao uso do álcool por alguns, traria sequelas e morte. Insisti, mas o organismo sempre rejeitou o que noutros era prazer. E foi graças à fraqueza da minha fisiologia para os transportes motivados por algumas drogas lícitas como o tabaco e o álcool, que não me tornei usuária, nem dessas substâncias nem de outras que, por ser matuta e vir parar na capital já formada na cultura do medo, passaram invisíveis por mim, não só pelo medo incutido como pedagogia mas, principalmente, pelo físico propenso a adoecer.

O que observo aqui é a importância das coisas em que nos cercamos num momento como prazerosas para logo adiante deixarmos de lado como nocivas, pecaminosas, feias e não mais necessárias. Aqui o costume passa a ser crime, ou não, dependendo da sociedade do momento. O que é comum proíbe-se e vira Lei, ou esgota-se no hábito e vira consumo, ou corrompe-se a Lei nos usos à margem do poder. Ou ainda criam-se leis para justificar os usos. Quanto a meu avô, sem conhecimento de nenhuma norma proibitiva, deixou de fumar o seu "pé-de-burro" uns dez anos antes de morrer, aos 70.

Ana Barros

terça-feira, 17 de setembro de 2013

SOLO DE OUTONO



Esquadrinhava os cômodos que abandonei na confusão de rendas amarelas e perfumes fora de validade, quando senti grande alívio em trincar o espelho que ainda ontem avaliava o meu corpo parnasiano. Percorri sem pressa o caminho que leva à praia sentindo os seixos machucarem a carne amaciada com beijos falsos e cremes de Paris. Pensei: “Thais no deserto do arrependimento?” Não... não peço como pede a mulher desvairada de liberdade consumada a um monge miserável e louco e culpado e de sexo encolhido na frustração do desejo – que me livrasse do inferno da culpa. Até porque as faces excitadas onde o religioso poderia cuspir a sua saliva impura – murcharam. Embora eu traga entre as pernas um rio seco sem mais vazantes nem cardumes a intumescer o ventre, exulto à alegria de pisar o solo rugoso tão velho quanto o tempo, tão diluído quando à luz. Exulto à alegria da natureza vazia que cria o novo e repele o que exaure sem um deus para espiar corpos deformados. Os pensamentos voam ao vento ancião e impotente da noite que foi facho e agora sombra. Caminho e toco as ondas mortas e jogo fora os panos castos que insistem esconder o que antes despia. E longe da superfície me entrego ao fantasma do nada que me empurra correnteza abaixo sem se preocupar com o dia que nasce e que de novo é novo nos ponteiros do relógio.

Ana Barros