quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Capital


Não é à toa que meu padrinho Vitorino repete a frase que me deixa vermelho de vergonha cada vez que peço a bênção. Ele, sentado na cadeira de balanço, porta aberta de frente pra rua, de onde todos podem vê-lo tirar o chapéu num solene cumprimento, diz alto e grave “Deus te dê fortuna” e solta da varanda uma moeda que cai reto na minha mão humilhada. Com o passar do tempo percebo o sentido daquele gesto. Era a senha para que eu decifrasse a vida pindaíba que carregava desde já. “Deus te dê fortuna” era o desejo do homem rico e orgulhoso convencido sempre das dádivas do céu na vida daquele que ajoelha e pede. E eu, moleque que veste roupas de segunda mão e dorme em cama com mais dois, devo ser como meu padrinho, ter calças de linho branco com os bolsos estufados de notas. A sua máxima de “homem de bem” estava no tamanho dos bolsos da calça. Os seus, não podendo fugir à premissa, exibiam dois volumes quadrados de cédulas variadas. As menores separadas das maiores. Explicava: “a salvação da alma está na quantidade de esmolas”. As notas de valor significativo guardava no bolso mais fundo e vistoso. Não explicava o porquê, no entanto, todos sabiam que a intenção era provocar a ira dos invejosos. E um destes, só eu sabia, era o meu pai, que me esperava na esquina de volta da bênção do domingo e arrancava a moeda da minha mão com o mesmo impropério: “aquele muxiba só deu isso?”.  
Lá em casa falta tudo, principalmente dinheiro pra fugir das cobranças penduradas no prego de Seu Felizardo. “Ah se eu tivesse o mar!...”, suspiro olhando a capa do meu caderno com a ilustração do mar azul a se misturar com o céu azul de Gullar que, mais tarde, não me cansaria de analisar em sala de aula com os meus alunos verdes de metáforas. E por falar em metáfora, logo cedo descobri a diferença entre o “duro” que mora na cidade onde tem mar e o “duro” que vive longe dele, o mar, esse desconhecido dos que fazem da sala de estar o seu oceano pacífico. Sabia pelas fotografias maravilhosas do livro de História que ele, o “duro”, estava lá, a poucos metros das ondas que trazem de volta o sol nublado de tédio no correr dos dias cansados. De lá ele volta radiante, quase sempre bêbado, esquecido. Volta mais pindaíba ainda, porém de saco esvaziado.
 Mas foi num domingo mofado do Baú de Sílvio Santos que conheci Capital. Não sou o homem que meu padrinho Vitorino quis que eu fosse, mas tenho algumas notas de dez e de vinte no bolso e acabo de chegar à cidade onde mora a minha irmã há mais de vinte anos, o mesmo tempo que não nos vemos. O ônibus estaciona na Rodoviária depois de três dias de viagem e muito barro vermelho no meu bigode, que de preto ficou ruivo. Um sobrinho me espera com ar de quem está ali empurrado. O cumprimento é mudo e com a mão frouxa: “Já não pede a bênção...”, observo sem mágoa. Aliás, sinto alívio em não constrangê-lo na repetição do hábito há muito esquecido por minha irmã no sofá da sala, como veremos adiante. Meu sobrinho tem pressa em se livrar de mim. Com receio de que apronte alguma peça comigo considerei dar a ele as moedas que juntara de troco na viagem. Porém, em segundos, o rapaz havia me deixado para trás com a mala e o saco de comidas e correu cortando a fila que se formara mal o transporte parou no terminal. Subo no ônibus com dificuldade, sem ajuda. Alguns passageiros fazem palavra cruzada, outros cochilam nos assentos impregnados de marcas de fadiga. A maioria, em pé, colada um no outro, se balança indiferente aos movimentos bruscos do veículo.  Meu sobrinho tem mais sorte que eu. Alguém desce e ele, quase derrubando a senhora a seu lado, cai sentado na poltrona. Quanto a mim, vou em pé com a mala entre as pernas. O saco de comida atrapalha a passagem no corredor, é impossível ser diferente. O jeito é passar por cima dele, que já começa soltar cheiro. “Que fome!”, meu estômago reclama ao sentir o cheiro da jaca que  escapa do saco, lembra que não como há quase um dia. Não dou importância nem à fome tampouco aos resmungos dos incomodados com o barro vermelho que voa do meu bigode em direção a eles. Esqueço os passageiros por alguns instantes e passo a admirar a paisagem da grande Avenida. Pergunto ao meu sobrinho que planta é aquela, enorme, de galhos flexíveis parecendo uma cascata de cipós: “pindaíba”, ele diz de dentes serrados em completo desinteresse de continuar o papo. “Quer dizer então que pindaíba é uma árvore?” Sem resposta.  O silêncio dele dizia: “deixe de pagar mico, bocó!” Sem conter a ansiedade quase machuquei as mãos ao apertar o apoio de ferro no qual me segurava. Quero saber logo o que é pindaíba além de “duro”, além de “liso”, qual a relação entre as duas palavras e aquela árvore medonha.  Aproveito que o sinal ficou vermelho e deslizo o dedo sobre “pindaíba”. Está lá: “vem do Tupi pindá= anzol e yba=  vara. Era uma vara usada pelos índios como caniço. Quando não pescavam nada voltavam apenas com a vara na mão, ou seja, na pindaíba”. “kkkkk...”, não consegui segurar o riso diante da estranha definição. Envergonhado do “kkkkk” dentro do ônibus lotado de mal-humorados olho em todas as direções para ver se alguém compartilha a minha surpresa. Fico feliz em constatar que ninguém, nem mesmo o azedo do meu sobrinho, havia dado a menor importância ao “kkk”. Foi então que senti uma mão apertando o meu braço apoiado no encosto da poltrona do lado. Uma senhora visivelmente aborrecida me faz inclinar até ela e dá a ordem: “não faça isso! Em Capital não se liga celular dentro do ônibus”. Respeito a ordem e enfio o aparelho no bolso. Mas ali, na catatônica Avenida por onde o veículo passa arrastando passageiros sombrios com seus celulares desligados e escondidos, sou tomado por outra sombra, a que me deixa desapontado, o mesmo desapontamento que vou sentir uma hora mais tarde ao encontrar a minha irmã no sofá da sala. A sombra não vinha das copas majestosas, nem dos prédios de edifícios, mas dos contornos redondos de Capital, geometria que imediatamente associo à passagem bíblica do bezerro de ouro cercado por ovelhas tristes e de carne pindaíba apodrecida longe do mar, este, que se dedica a roer e esquecer o que rói. No instante em que o ônibus atravessa a Avenida que liga o Norte ao Sul da cidade vejo que as coisas mudam apenas de humor e geografia. Em todas, porém, o imperioso tédio que oscila da embriaguez à ressaca. Se tivesse mar corriam a ele e se afogavam na evasão salgada e momentânea. Porém sem mar, Capital é uma enorme bacia redonda na qual o mergulho não passa da sala.  
Meu sobrinho corre à frente. Ali mesmo na sala desce as calças e puxa o celular do fundo da cueca. Tranca-se no quarto. A minha irmã sorrir satisfeita para Sílvio Santos. Tem as pernas gordas sobre o sofá, uma bacia de pipocas de um lado e a garrafa de coca-cola do outro.  

Ana Barros                                            
Natal, 29 de novembro de 2016.


quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Baracho: o mártir



Há imagem cuja força psicológica sobre o imaginário de um povo provoca algo tão longe da razão quanto o instante do êxtase que acende. Este, por vezes, tendo como pano de fundo a repressão sexual, ou o espasmo místico. Exemplo maior de liberação das pulsões na moral pagã vem da Grécia Antiga. Entregues à (in)sensatez divina, as bacantes sobem as montanhas e, longe de pecado e culpa, entregam-se às licenciosidades da vida, ao transe coletivo proporcionado por libações ao deus da embriaguês na terra: Baco. É na entrega mítica que o querer profundo sem possibilidades reais de acontecer no mundo dos homens irrompe na ação cega de censura e condenação. A lucidez se apagada, surge o desconhecido, o estranho, entrega ora ao aniquilamento, ora ao instinto de conservação. Aqui me detenho no famoso fenômeno místico acontecido em Natal na década de 1960 para ilustrar o poder que tem um ato, banal e insignificante para alguns mas, para outros, ligados mais aos instintos que à razão, essencial no instante de nascer o mártir. Assim foi com o assassinato de Baracho (João Rodrigues Baracho), conhecido e temido entre os bairros de Natal, Quintas, Alecrim e Carrasco, comunidades onde praticava assaltos, assassinatos e dava morada a várias amantes. Infeliz, não teve a sorte de ser socorrido por uma delas quando a moral o condenou. Com predileção por matar taxistas da noite, Baracho foi preso várias vezes e executado após uma fuga, isso em 1962. A execução teve todos os requintes da crônica policial capaz de permanecer meses na boca de curiosos frívolos, sedentos de vingança escrita com sangue bandido. Porém, um detalhe. Pequeno e desprezível detalhe para quem endurece os sentidos na hora de julgar o outro, mas que é o essencial àqueles que são levados pela exaltação mítico-mística diante da imagem trágica que provoca compaixão, adoração, redenção. Ferido de morte pela polícia, Baracho esconde-se na casa de uma vizinha que, além de informar o paradeiro do vizinho caçado, nega-lhe o copo d’água que Baracho suplica na agonia da morte. Ele morre, para os que respeitam com o carrasco o último pedido do condenado, não só dos ferimentos provocados pelos tiros, mas também de sede diante da impiedade do igual, diante da indiferença pelo igual, ou seja, da negação de outro.  Entretanto, é naquele instante nulo de dor de alguém que não enxerga o outro como si mesmo que a comoção coletiva ajoelha-se e eleva Baracho de bandido odiado e temido à condição de mártir. A prova desse instante continua vivificada anualmente no Cemitério do Alecrim, onde Baracho foi sepultado. No Dia de finados o túmulo mais visitado, seja pela curiosidade, seja pela veneração, é o do homem que morreu suplicando um copo d’água. Instante em que as ações do indivíduo, julgadas más, são aniquiladas diante do sublime poder da imagem que transmuta o que é humano em divino. Para quem enxerga fanatismo e alienação nas pessoas que agiriam com amor em vez de ódio diante de um assassino que deveria ter matado a sede antes de morrer, único e último gesto, naquele momento, da bondade que não abandona o instinto de rebanho, lembramos Dostoiévski, autor de obras como Crime e castigo, A casa dos mortos e Os irmãos Karamázov, cuja sensibilidade de artista faz dele grande conhecedor e acolhedor da fraqueza humana. Outro russo, cujos personagens, quase todos homens e mulheres à margem do aceitável, é Gorki. Ao lermos “Os mais brilhantes contos” desse psicólogo da redenção não deixamos de amar o bêbado, o mendigo, o vagabundo, o doente pobre, a prostituta, o presidiário, o assassino. O dois escritores, através de seus protagonistas, ao contrário da mulher que entrega à polícia o vizinho de má fama e nega-lhe o copo d’água na hora da morte, dariam a água na boca do moribundo, tratariam suas feridas e o deixariam em paz.

Ana Barros
Natal, 19 de maio de 2015 (concluído em 09/11/2016)
Túmulo de Baracho - Cemitério do Alecrim - foto do portalbo.com

sábado, 8 de outubro de 2016

Réveillon



De novo era Ano. Eu acabava de fazer setenta e cinco anos e descobria, ali, no Réveillon de oitenta e dois, que havia esquecido a sociedade. Não que eu tivesse de esconder algum complexo de baixa estima, padecesse da rejeição dos meus camaradas ou tivesse enlouquecido da indiferença do mundo: nada disso era conveniente ao homem que jamais tivera fé e convicções em relação a qualquer coisa ou sentimento. Ateu, assim fui mesmo quando acreditei. Pois bem, naquele Réveillon eu estava lúcido e vazio. Vazio das confusões mentais com as quais estendi a minha loucura no mundo como extensão de mim. Aliás, uma extensão deveras inútil uma vez que sempre estive sozinho quando pensei ser com um, dois, três... A minha mulher, que não conhece vazios, diz que sou um egoísta, um misantropo. “Nem uma coisa nem outra”, respondo desinteressado em levar adiante assunto até pouco tempo motivo de discussões azedas das quais eu saí sempre derrotado e com a sensação de ter engolido uma pedra. Apesar de termos uma pequena diferença na idade compreendi que até ela, companheira de 40 anos, jamais havia sido outros senão ela mesma. “Ser outro é tarefa maldita que exige encher e esvaziar o estômago o tempo todo”, dizia ela simulando vômito. Tive que passar muitos Réveillons para chegar a esse entendimento: por que não sabia desde sempre a verdade sobre o peso de imaginar-me múltiplo? Quis lançar a culpa sobre minha insensatez: não fui eu quem arranjou os encontros, conversas, intrigas e rompimentos? Não fui eu quem inventou estratégias para forjar uma relação de amor? Sim, fui eu! E não podia ser diferente se o ímã desprotegido que chama à pele as migalhas da afeição, agora gasto, despenca e cai do corpo fechado. Pois bem, em vez do tédio no qual mergulhei em todos os festejos do Ano Novo, aquele de oitenta e dois foi incrivelmente diferente e feliz. Diferente pela sensação que ali nascia sob a qual eu enterrava de vez os mortos que haviam me obrigado à gula e à frivolidade em todos os Réveillons até ali. Feliz, pela alegria até então desconhecida de ser irônico em vez de amargar o tédio. Aprendi ali a gozar com a ironia que aniquila qualquer vestígio de seriedade que imaginei haver entre mim e os outros na entrada de Ano Novo. A prova da felicidade estava ali à minha frente: ao redor da mesa. Todos de branco, risonhos e aparentando jovialidade como se a festa de final e início de calendário fosse naquele dia exclusivo a primeira de nossas vidas cansadas. Quantas vezes ainda iríamos repetir a data que, em vez de alongar a existência, encolhia mais e mais os nossos dias de futuro consumado? Os mesmos pedidos, os três pulinhos na onda do mar, as oferendas a Iemanjá, a lentilha, a romã, os abraços doídos entre músculos fracos e velhos... Era ao tempo que rendíamos graças desde a primeira confraternização. O tempo, agora zerado da ilusão de que o novo nasce uma vez mais entre o anoitecer e o amanhecer de um único dia. Estourei o champanhe... Enchi-me da felicidade de todos repetindo os gritos e urras. A minha alegria era tão falsa quanto o brilho colorido dos fogos de artifício queimados a alguns metros da praia. E foi naquele Réveillon que enterrei de vez a fé sem fé que me levara a exaurir qualquer possibilidade de começo ou de fim. Naquele encerramento de mais um calendário eu compreendi que no lugar da necessidade de limite e ilusão de começo tínhamos a vastidão aberta do meio dia que não conhece vigília nem sono. Lembrei com gratidão as palavras do poeta Pópó, a quem jamais dei ouvido, a quem nunca tive o atrevimento de convidar para o Réveillon. Ele, invariavelmente bêbado no último dia do ano, diz para a plateia de amigos no bar A derrota: “pode o padre repetir em todas as Missas do Galo que o novo ano começa. Pode a ciência inventar fórmulas e oferecer eternidade aos homens, mas enquanto houver dia e noite eu estarei bêbado e sem tédio.” O tédio, que não suportou a ação continuada das horas debaixo do esplendor de fogo àquela hora do dia primeiro, deslizou sonolento entre os convidados crentes de começo.  

Ana Barros
Natal, Jan/2016

domingo, 4 de setembro de 2016

A luz da lamparina

 Quatro contos

   I – Angelina
 II – O casamento de Rosa
III – O senhor da luz
IV – A morte do contador de histórias


I – Angelina

Angelina acabou de fazer 15 anos. Contava duas menstruações quando o primeiro namorado começou frequentar a casa. Nos primeiros dias ele chegou cedo e, mal o pai da moça pigarreou ao fechar portas e janelas, bateu em retirada. Angelina, que já conhecia os princípios do homem educado nos ensinamentos de Frei Damião de Bozzano, antes que ele gritasse “pra dentro!”, pedia a bênção trêmula de medo e corria a se fechar no quarto mal iluminado com os reflexos da lamparina acesa apenas quando tudo virava breu. “Quanto desperdício!”, bramia o pai apagando a lamparina se passasse um segundo da hora determinada. Porém, com o passar do tempo, o namoro criou sarro e o pai disse à moça: “a partir de hoje vou estabelecer horário de alisar banco aqui em casa. Diga aquele fofa bosta que enquanto a lamparina tiver gás ele pode ficar com você entre mim e sua mãe. Acabou o gás, arribe”. E assim foram seis meses com as horas, antes entregues aos cochilos ao pé do rádio e às orações a Nossa Senhora, consumadas na vigilância dos namorados. Certa vez, cansados das tarefas do dia e da obrigação moral em vigiar a filha, os pais de Angelina adormeceram no banco e só retornaram do longo cochilo quando já fazia cinco minutos que o gás havia acabado e a escuridão era absoluta no ambiente no qual os jovens permaneciam sentados entre os donos da casa. De um salto, e já com o palito de fósforo aceso, o pai puxou o rapaz pelo braço e o empurrou porta afora. O gás havia queimado até a última gota e o jeito foi usar a caixa de fósforos riscando um a um os palitos para chegar até o quarto da filha onde parou à porta e aproximou a chama quase esvaída do rosto de Angelina na suspeita de confirmar algum vestígio de pouca vergonha. Constatou, portanto, que os cabelos da moça estavam rigorosamente presos à nuca, detalhe que o fez pensar satisfeito: “ela é mesmo uma santa!”.  Porém a mãe, como toda mãe que vê e adivinha no escuro, viu que a blusa da menina tinha três botões fora da casa.
                                                           
                                                                   * * *

II – O casamento de Rosa


Na folhinha faltava uma semana para o casamento. As galinhas estavam presas, a cachaça a caminho do brejo de Areia, o bolo decorado com os noivos de porcelana esperado como a peça mais importante depois do vestido. Este, trazido do Juazeiro do Padre Cícero por um caixeiro viajante e escondido de todos para não dar azar, fora comprado com a venda de dois garrotes. O pai de Rosa engordou os bichos na mira de dar à filha o melhor e mais bonito traje da região. Aliás, todos sabiam da virtude da moça e da fortuna da família. O casamento da única filha não podia ser motivo de falatório da cabrueira vulgar. E foi no domingo anterior à data da cerimônia, momento no qual os homens distintos se sentam à sala para receber cumprimentos e visitas ilustres, que o vestido de Rosa foi entregue nas mãos do senhor da casa com o cuidado que se dá a mercadorias como ouro e joias preciosas, uma vez que vestido de noiva também é símbolo de poder e influência na província. Apenas Rosa e a mãe viram a encomenda embrulhada no papel branco e arrumada na caixa retangular enlaçada com fita de cetim também branca. Não menos de 10 vezes naquele dia ela abriu o baú para ver o traje de renda imaculado. Por esta felicidade é que nenhum detalhe podia ser desprezado pela moça, cuja educação tinha por base casar virgem e com rapaz de boa família, máxima repetida pelo pai tão zeloso da honra quanto negligente com o salto dado pela menina em direção à mulher em que se tornara. O esquecimento da passagem da infância à vida adulta deixara Rosa completamente sem noção de como seria sair da igreja e ir direto para a cama fazer o que era pecado e condenação caso não recebesse as bênçãos do padre. E foi no ritual preparado para uma virgem inocente que ela, acostumada a dormir com a lamparina acesa, hábito que facilitava o pai observar pelo buraco da fechadura se a moça escapava à noite, se viu em completa escuridão com o noivo ofegante de desejo a tirar-lhe o vestido, a combinação, a anágua... sem que ela movesse um dedo para frear a alegria do rapaz. Aquela noite seria relatada mais tarde às amigas como a mais quente e feliz da vida da mulher cujo pai exaltou a pureza por ter crescido longe da maldade do mundo. Mas Rosa, que quase não falava, não tinha necessidade do mundo ao qual o pai se referia para aprender as coisas. Vivera até ali longe da maldade humana, porém perto dos animais, com os quais experimentou o que os pais jamais saberiam, não porque ignorassem ou não fizessem também, mas por que a filha tinha que zelar pelo bom nome, regra básica para arranjar casamento. Mas Rosa, mais íntima dos instintos que da racionalidade prática e interesseira dos de dentro de casa, nunca prestou atenção ao real sentido das palavras “moça de família”, “zelo”, “virtude”, “bons modos” e “bom casamento” que ele, o pai – esposo digno, empreendedor, austero e temente a Deus –, repetia mal a filha sentava à mesa para tomar o café da manhã. E foi observando o hábito metódico e rotineiro do pai que aprendeu também a repetir as palavras. Dizia sempre “sim, senhor!”, “não, senhor!”, “entendi!”, depois dos sermões matinais sem se dar ao trabalho das contestações próprias de filhas que duvidam da retidão e das certezas dos pais. Em vez do conflito de opiniões, e Rosa não sabia o que era conflito nem opinião sobre o que quer que fosse, desenvolveu uma maneira de driblar a presença ostensiva do pai. Enquanto todos ainda dormiam, ela se dirigia ao curral onde parava diante da cena que a iniciou nos prazeres do sexo. Viu muitas vezes o touro subir na vaca sem que esta nada fizesse para desvencilhar-se das patas do animal. Das longas observações aprendeu o que era não ter “bons modos” nem “temor a Deus”, palavras exaustivamente repetidas em seu dia a dia por aqueles que tinham o poder de decidir o que era “bom” e “certo” para uma “moça de família”.

A noiva estava luminosa quanto o sol das oito, àquela hora, filtrado sobre o altar pelas brechas do telhado. O pensamento parava ora no curral, ora no quarto com o homem com quem se casava. Seguiu os pormenores do ritual com o silêncio e a obediência de filha que não dá desgosto. Finalmente disseram sim um ao outro, trocaram as alianças e desde então ela passou a se chamar dona Rosa S., esposa de J.S. Com a permissão do padre e da proteção da Virgem emoldurada na parede acima do espelho da cama, o noivo olhou a imagem, persignou-se, beijou a medalhinha de São José, santo protetor dos maridos, que a mãe havia pendurado em seu pescoço, e apagou a lamparina com um sopro. De seu lado a noiva, que sempre disse “sim, senhor!”, “não, senhor!” e “entendi!”, sem se dar o trabalho de aprender algo ensinado com as palavras, tomou a calcinha da mão do marido e arremessou-a na imagem que contemplava os dois sob o véu de tristeza que toda santa carrega depois de renunciar a sexo e à paixão do mundo. Mas Rosa, que dizia sim à carne e jamais dera atenção à virtude das santas, mugia e mordia o pescoço do touro.
                                                      ***


III– O senhor da luz

Na casa de Malaquias o mundo tem hora de acabar: às vinte, depois da Voz do Brasil, que ele ouve sozinho sem que ninguém o acompanhe nas informações dadas pelo locutor de voz empolada e sotaque sulista que tanto admira. Tanto que, no café na manhã do dia seguinte, ele repete as notícias imitando a afetação do locutor com a seriedade de quem acredita no próprio talento e nas informações oficiais. Enquanto o marido ouve o programa, a mulher escolhe o feijão do almoço e os filhos, duas crianças e dois adolescentes, sabem que, terminada a transmissão, chega o momento da escuridão total. E, tomados da ansiosa necessidade de traquinar o máximo que podem, os jovens param de repente ao ouvirem o repórter dizer “boa noite!”. O pai se levanta do tamborete colado ao rádio, boceja, coça a barriga, lança a gosma escura de fumo mascado no canto da parede, de onde já escorre um pequeno riacho, mija de cima do batente da porta e suspende a lamparina pela asa no começo do corredor, onde a fila, encabeçada pelo mais velho, passa solene. Um a um pedem a bênção e desaparecem guiados pelo silêncio da mãe.
* * *

   
IV – A morte do contador de histórias

Padrim morreu!”, gritou o afilhado da porta da sala no momento em que Seu Luis silenciou para sempre a arte de fazer mentira virar verdade. Ele, como ninguém, soube dar alma à ficção sem que duvidassem da farsa: “um grande fazedor de mundos em seu próprio reino de faz de conta”, disse padre J. ao terminar  a extrema unção sobre o corpo ainda quente do macumbeiro, increu e filho das trevas, adjetivos com os quais exortou nos sermões de suas missas mulheres e crianças a se afastarem das garras demoníacas do contador de história, este que, envolto na atmosfera noturna da cozinha de sua casa, encantou a todos de quem fosse amigo ao emendar uma história à outra até a hora em que abrisse a boca três vezes: “Basta!”, dizia e se levantava indo em direção à porta da rua onde ouvia em coro: “bença padrim!”.

Único filho de dona T., viúva desde cedo, já passava dos 40 anos quando a mãe morreu. Mulher mal humorada e de difícil trato com a vizinhança não gostava de ninguém em sua casa, também não ia à casa de ninguém. Se quisesse conversar com os amigos, Seu Luis tinha que ir até à pracinha da rua onde se formava um círculo em torno do homem conversador. Porém, agora, livre da presença dominadora de dona T., ele abre as portas e os potes de biscoitos escondidos no guarda-roupa pela dona da casa para receber os vizinhos, todos, compadres, comadres e afilhados. Os compadres, no entanto, homens sérios que nunca davam uma risada se o assunto não fosse tratado ao pé do ouvido e carregado da malícia dos homens que só se sentem livres na presença de outros homens, jamais de mulheres e crianças tagarelas, não faziam parte daquele público alegre. Se alguém perguntava o motivo da ausência deles no ambiente quente da casa de Seu Luis, tão ao gosto daqueles para quem a vida é brincar de faz de conta, diziam: “o compadre? sei não!... além de não ter casado só fala bosta... papo furado pra engabelar menino besta e mulher que deixa os afazeres pra ouvir lorota de velho no pé do fogão”.

Dono de uma coleção de mais de duzentas histórias aprendidas dos folhetos de cordel, Seu Luis guardava tudo na memória. Em sua casa não se via livros nem estantes, mas muitos cordéis e almanaques antigos dentro de um baú de couro de boi. Apesar da variedade de temas, apenas uns poucos encantavam a plateia tantas vezes o compadre contasse. Uma delas, “O anjo que virou cão”, era contada e recontada no pequeno recinto iluminado pelas labaredas do fogo de lenha e da chama mortiça da lamparina, cujas sombras fantásticas ilustravam a história mal-assombrada. Seu Luis contava e mostrava o cordel ensebado das mãos da plateia ávida de suspense. Ele fazia questão de que todos pegassem o folheto no qual podiam ver a ênfase que o autor dava à desobediência e à punição de Lúcifer. Divertia-se em observar o terror nos olhos dos meninos e o espanto traído pelo riso de mofa e falsa cumplicidade das comadres. Alguns dos afilhados, instruídos nas aulas descoladas do professor Chico Ciência, carinhosamente apelidado por eles de C.C., e de maluco pelos pais, viam na xilogravura do diabo semelhanças com algumas capas dos discos de rock do professor. “Padrim, posso levar pra mostrar a professor C.C.?”, perguntou certa vez o mais roqueiro da turma, ao que Seu Luis respondeu tomando o folheto da mão do afilhado: “nem pense! Se ele quiser que venha até aqui.” A gravura do cão passava, assim, de mão em mão provocando simpatia e nenhum terror naqueles atentos mais à beleza da imagem que à condenação do anjo. De novo o cordel terminava na mão do dono da casa, que abria o baú velho e guardava o folheto à chave para outra noite quando ninguém mais se lembrasse dos versos.   

Era com o nome cão, ser das trevas, de chifres, rabo, patas de cavalo, cheiro de enxofre, tridente e cor tão escura quanto a fumaça da lamparina, que Seu Luis impressionava as crianças ao contar mais uma vez “O anjo que virou cão”. “Padrim, só tem cão preto?”, quis saber o menino roqueiro cuja pele era preta e não se achava nem um pouco parecido com o cão. “Só, meu filho! Só existe cão preto. O pecado queima os couro. Lúcifer era galego qui nem padrim!”, respondeu Seu Luis embasado nos conhecimentos de folhetos nos quais as profecias do mal eram confirmadas nos sermões do Padre Cícero. E, para dar testemunho da verdade que alardeava ao pé do fogão diante de olhos inocentes e crédulos, ele, nu da cintura para cima, pois se tornara hábito não vestir camisa à noite, estirou o braço curto, gordo e peludo, tão vermelho que mais parecia uma lagarta de fogo, e disse: “vejam, eu nasci galego... mas os meus pecadinhos deixaram a minha pele assim, sarará, cheia de pintinhas.”, completou Seu Luis estirando o outro braço para que todos pudessem ver as marcas que o pecado deixara em sua pele. Só que ele não imaginava que algum tempo depois a sua teoria ganharia mais ciência que as aulas do professor C.C., estas, sistematicamente explicadas aos mesmos alunos que, à noite, na cozinha de Seu Luis, esqueciam as experiências rigorosamente comprovadas por gênios e doutores e embarcavam com o padrinho nas aventuras que este, sábio de longas leituras de folhetos e almanaques, dava provas. Vejamos, então:

Seu Luis estava morto. Comadres, compadres e afilhados fizeram questão de velar o defunto a noite toda. Entre uma xícara de café, namoro no alpendre, ladainha de Nossa Senhora, cachaça à vontade e conversa cacete de bêbado, a noite passou sem que ninguém pensasse em apagar as lamparinas. Um dos compadres, com receio de que faltasse querosene, comprou um latão de dez litros, suficiente com sobra para queimar a noite inteira. Quando o dia clareou não se fazia mais necessidade da luz da lamparina. sol invadira a sala e foi dar de cara com alguns encolhidos sobre sacos de arroz, outros estirados em bancos encostados à parede, os nem aí pra céu e inferno, já bêbados, entornavam o último litro de cachaça de uma caixa de dez. O afilhado de Seu Luis, o mesmo que pedira o folheto emprestado em nome do professor C.C. e que perguntara se havia outra cor de cão além daquela carimbada como a preferida do coisa ruim, acordou desorientado e com os olhos colados de remela. Ao ver sob o véu da sapiranga o rosto do padrinho, este, antes do menino adormecer, transformado em máscara de cera, e naquele instante de luz intensa feito o próprio capeta, pulou berrando de cima do saco de arroz: “padrim virou cão!”. O rosto de Seu Luis estava negro da tisna da lamparina que havia iluminado o defunto noite adentro.
* * *
Ana Barros
Natal, 13 de fevereiro de 2016.
(concluída em 31 de agosto de 2016)



sexta-feira, 12 de agosto de 2016

O cristal do pesadelo



Aqui acolá eu digo: acabou! Nada de falsa alegria, nada de riso, nem mais uma palavra inútil, nem mesmo vou ser educada. Serei selvagem, desregrada. Vejamos por quê? Começa o dia, ligo a TV e vejo os programas que anunciam o fim do mundo, a ira dos escolhidos contra a rebeldia dos danados. Deixo a caixa preta de lado e acendo o cigarro nervosa, mas com o volume alto para ouvir da cozinha enquanto bebo a borra do café que ficou no fundo da xícara. Apago a bituca no resto da borra e corro para a Internet... “Chega!” Desligo tudo. Pego a vassoura atrás da porta e vou varrer a calçada, quem sabe encontro o vizinho do lado direito e o convido para irmos ao Clube da esquina na próxima sexta? Mas para meu desapontamento quem está lá, em sua cadeira de balanço e com o rádio portátil ligado, é o vizinho da esquerda, o mesmo que não me deixa dormir à tarde. “Bom dia, Seu...”, digo olhando o chão forrado de folhas e juntando o lixo com rapidez. Evito assim a conversa enjoada do homem de Deus, como ele mesmo costuma se apresentar a quem passa na calçada e para quem insiste dizer qualquer coisa, ainda que o estranho sequer responda o cumprimento antipático: “Bom dia, Dona... Já fez a sua oração da manhã?” Ele tem o rádio permanentemente ligado na estação Ondas do céu e, invariavelmente, ouve as mesmas músicas e sermões condenatórios, menos para ele e mais para mulheres como eu que, em vez de irem à Igreja no fim da semana, vão ao clube dançar, fumar, beber, e jogar carteado. Poucas vão à procura de um amor. Isso não quer dizer que as demais sejam invisíveis aos homens, longe disso quando se tem o prazer do mundo e o bônus do tempo chega risonho, maduro, sem tragédias nem fantasmas. O gozo migrou de um ser exclusivo para uma diversidade de seres, gozos e objetos, os quais a Igreja de Seu... atira ao fogo do inferno com a raiva dos puros. Mas a TV e a Internet não sabem, ou fingem não saber, essas obviedades do particular que se desenvolve e morre em cada um longe dos olhos e da ciência dos que fazem juízo. O meu vizinho da esquerda não tinha interesse em outro mundo senão aquele repetido continuadamente na estação Ondas do céu. Ou seja, um mundo entregue à perversão e ao crime, à catástrofe sem fim alimentada por “velhas depravadas”, como era hábito gritar quando o táxi parava na sexta-feira à noite já com minhas amigas V e C lindamente maquiadas e perfumadas. Jamais respondemos ao homem de Deus com palavras. Porém, depois de fechar a porta do táxi eram quatro línguas e dedos estirados na sua direção. De longe ainda ouvíamos as pragas do homem de Deus, agora em pé e brandindo a Bíblia no vazio da noite. Esqueçamos por enquanto o juízo final esperado com diligência e discursos pelos eleitos, estes, convencidos de que o mal se esconde na ausência de grades, como disse o repórter no jornal ao defender mais ferro e cadeado para os marginais, e nos pentelhos raspados das mulheres, fé inabalável de Seu... Outro dia depois de me olhar na vertical e imaginar que raspo os meus ele, na lata: “a senhora não toma vergonha?” “Não! tomo uísque.”, disse e levantei o vestido de algodão azul transparente acima dos joelhos, requebrei e desviei os sentidos para o lado de cá, o lado para o qual também basta o esquecimento, uma palavra, uma imagem, um olhar para que a nossa percepção se dê conta de que continua, apesar de eterna trama ao contrário, orgulhosa de si. Vejamos o exemplo: quando velhos e o acervo do aprendizado se fez mofo, eis que o neto nos leva à reflexão espantosa: “onde diabo esse moleque aprendeu isso?” A surpresa aumenta ainda mais se a criança diz que não foi com a professora de religião, nem na casa dos pais, estes, absolutamente alheios à culpa e pecado. “Mas onde mesmo, meu bem?” “Ora vó... no pesadelo!” Fiquei sabendo assim que meu neto ressuscitara em pesadelo refugos da cartilha dos mortos, a mesma que eu havia revivido e que largara como trapo imprestável depois de passar por todas as gerações das quais acreditei me desfazer esquecendo as verdades mortas.  Mas como o menino jamais ouvira falar dentro de casa em anjos e demônios, onde ou com quem aprendera o que não tinha mais força moral para aqueles com quem vivia e verdade incontestável para aqueles que se mantêm no repouso dos séculos? O pesadelo! Fora o pesadelo o responsável pela lição do menino que, na imediata contradição e mudança de assunto disse ao pular da cadeira vestido de Homem Aranha: “vó, eu tenho três qualidades.” Passados alguns segundos de espera para que eu perguntasse “quais, meu herói?”, ele disse contando nos dedinhos da mão espalmada: “eu sou inteligente, tenho estilo e sou engraçado”. 

Dias depois, final de semana e hora de limpar a casa, eu dava a meu neto lições de como lavar o banheiro. Antes, porém, perguntei se queria “trabalhar” ouvindo música. “Quero ouvir rap.” De luvas e escovão em punho, logo começou a cantar e esfregar a cerâmica como se estivesse no show da banda K. “E aí boy, precisa de ajuda?”, perguntei enfiando a cabeça na porta entreaberta. Sem responder ele disse: “Vó, que dia feliz... sou um artista! Parece que estou grafitando uma parede na rua”, disse simulando as latas de spray com as duas escovas deslizando sobre os azulejos ao ritmo compassado da música negra. Pensei aumentar a alegria dele e disse: “isso se chama orgulho de si...”. Imediatamente ele parou os movimentos, fechou o sorriso, atirou as escovas longe, pôs as mãos na cintura e disse olhando para mim, que fingi ser tomada de medo pela raiva sincera de menino: “orgulho é pecado! É o quarto pecado capital!”, retrucou fazendo com que me lembrasse do pesadelo e do desenho Bob Esponja e os sete pecados capitais que eu havia comprado tinha uma semana, não porque quisesse ensinar moral a meu neto, mas por insistência dele, influenciado pelo comercial da TV. Agora, visitado por Bob Esponja em sonho, cujo enredo esqueceu ou não quis contar, ele acabava de resgatar o cristal da memória há muito em mim derretido. 

Mais alguns meses e eu faço oito décadas. No meio das zombarias dos meus filhos sobre o que valeu e o que não valeu ter vivido até aqui, na esperança inútil de que eu diga “ter casado com seu pai e ter tido vocês”, digo que um só motivo vale carregar oitenta anos. “Qual então, mamãe?”, quis saber o do meio, o mais estranho à minha existência. “Ora ora... se você desse importância saberia que é viver,” respondo com a ironia da velha que jamais vestiu preto nem lamentou o destino, cujo desfecho o pai logo cedo disse ser exclusividade dela. Mesmo assim, conhece as regras. E por conhecê-las e nunca ter deixado o encanto ou desencanto seduzir sequer um dia, diz segura de si: “sou inteligente, tenho estilo e sou engraçada,”, ou seja, “dirijo o meu teatro”. 

M acabou de chegar. Peço que aguarde enquanto calço o sapato amarelo. “Cadê o meu vestido preto?” “Pronto, só falta o colar e o perfume”, digo recebendo a dose de uísque preparada por M. Acendo o cigarro sem pressa e digo soltando a fumaça para cima: “chame o táxi!”. Enquanto aguardamos, converso com M. Ele é muito mais jovem que eu...  Mas a diferença de idade não o impede de se queixar o tempo todo de sentir dor. Acho até que é pura invenção, só para aparentar mais idade e poder estar bem comigo.  Digo que também sinto dores, mas só revelo isso ao médico. Aborrecido com a minha falta de compaixão, M retrucou certo de que me enquadrava em sua verdade mesquinha e covarde: “quero que todos saibam!”. Tomo o último gole de uísque, trago o final do cigarro e respondo fingindo não perceber as segundas intenções de M, que eu sei, me acha uma velha cínica: “Meu caro, eu quero é viver, com dor ou não tanto faz. Então, para que dizer?” “O táxi chegou, vó!”, grita da porta meu neto.

Ana Barros                                   
Natal, 03 de julho de 2016.