Não é à toa que meu padrinho Vitorino repete a frase que me
deixa vermelho de vergonha cada vez que peço a bênção. Ele, sentado na cadeira
de balanço, porta aberta de frente pra rua, de onde todos podem vê-lo tirar o
chapéu num solene cumprimento, diz alto e grave “Deus te dê fortuna” e
solta da varanda uma moeda que cai reto na minha mão humilhada. Com o passar do
tempo percebo o sentido daquele gesto. Era a senha para que eu decifrasse a
vida pindaíba que carregava desde já. “Deus te dê fortuna” era o
desejo do homem rico e orgulhoso convencido sempre das dádivas do céu na vida
daquele que ajoelha e pede. E eu, moleque que veste roupas de segunda mão e
dorme em cama com mais dois, devo ser como meu padrinho, ter calças de linho
branco com os bolsos estufados de notas. A sua máxima de “homem de bem” estava
no tamanho dos bolsos da calça. Os seus, não podendo fugir à premissa, exibiam
dois volumes quadrados de cédulas variadas. As menores separadas das maiores.
Explicava: “a salvação da alma está na quantidade de esmolas”. As
notas de valor significativo guardava no bolso mais fundo e vistoso. Não
explicava o porquê, no entanto, todos sabiam que a intenção era provocar a ira
dos invejosos. E um destes, só eu sabia, era o meu pai, que me esperava na esquina
de volta da bênção do domingo e arrancava a moeda da minha mão com o mesmo
impropério: “aquele muxiba só deu isso?”.
Lá em casa falta tudo, principalmente dinheiro pra fugir
das cobranças penduradas no prego de Seu Felizardo. “Ah se eu tivesse o mar!...”,
suspiro olhando a capa do meu caderno com a ilustração do mar azul a se
misturar com o céu azul de Gullar que, mais tarde, não me cansaria de analisar
em sala de aula com os meus alunos verdes de metáforas. E por falar em metáfora,
logo cedo descobri a diferença entre o “duro” que mora na cidade onde
tem mar e o “duro” que vive longe dele, o mar, esse desconhecido dos que
fazem da sala de estar o seu oceano pacífico. Sabia pelas fotografias
maravilhosas do livro de História que ele, o “duro”, estava lá, a poucos
metros das ondas que trazem de volta o sol nublado de tédio no correr dos dias
cansados. De lá ele volta radiante, quase sempre bêbado, esquecido. Volta mais
pindaíba ainda, porém de saco esvaziado.
Mas foi num domingo mofado do Baú de Sílvio Santos que
conheci Capital. Não sou o homem que meu padrinho Vitorino quis que
eu fosse, mas tenho algumas notas de dez e de vinte no bolso e acabo de chegar
à cidade onde mora a minha irmã há mais de vinte anos, o mesmo tempo que não
nos vemos. O ônibus estaciona na Rodoviária depois de três dias de viagem e
muito barro vermelho no meu bigode, que de preto ficou ruivo. Um sobrinho me
espera com ar de quem está ali empurrado. O cumprimento é mudo e com a mão
frouxa: “Já não pede a bênção...”, observo sem mágoa. Aliás, sinto
alívio em não constrangê-lo na repetição do hábito há muito esquecido por minha
irmã no sofá da sala, como veremos adiante. Meu sobrinho tem pressa em se
livrar de mim. Com receio de que apronte alguma peça comigo considerei dar a
ele as moedas que juntara de troco na viagem. Porém, em segundos, o rapaz havia
me deixado para trás com a mala e o saco de comidas e correu cortando a fila
que se formara mal o transporte parou no terminal. Subo no ônibus com
dificuldade, sem ajuda. Alguns passageiros fazem palavra cruzada, outros
cochilam nos assentos impregnados de marcas de fadiga. A maioria, em pé, colada
um no outro, se balança indiferente aos movimentos bruscos do veículo.
Meu sobrinho tem mais sorte que eu. Alguém desce e ele, quase derrubando a
senhora a seu lado, cai sentado na poltrona. Quanto a mim, vou em pé com a mala
entre as pernas. O saco de comida atrapalha a passagem no corredor, é
impossível ser diferente. O jeito é passar por cima dele, que já começa soltar
cheiro. “Que fome!”, meu estômago reclama ao sentir o cheiro da
jaca que escapa do saco, lembra que não como há quase um dia. Não
dou importância nem à fome tampouco aos resmungos dos incomodados com o barro
vermelho que voa do meu bigode em direção a eles. Esqueço os passageiros por
alguns instantes e passo a admirar a paisagem da grande Avenida. Pergunto ao
meu sobrinho que planta é aquela, enorme, de galhos flexíveis parecendo uma
cascata de cipós: “pindaíba”, ele diz de dentes serrados em completo
desinteresse de continuar o papo. “Quer dizer então que pindaíba é uma
árvore?” Sem resposta. O silêncio dele dizia: “deixe de pagar
mico, bocó!” Sem conter a ansiedade quase machuquei as mãos ao apertar
o apoio de ferro no qual me segurava. Quero saber logo o que é pindaíba além
de “duro”, além de “liso”, qual a relação entre as duas palavras
e aquela árvore medonha. Aproveito que o sinal ficou vermelho e deslizo o
dedo sobre “pindaíba”. Está lá: “vem do Tupi pindá= anzol e
yba= vara. Era uma vara usada pelos índios como caniço. Quando não
pescavam nada voltavam apenas com a vara na mão, ou seja, na pindaíba”. “kkkkk...”,
não consegui segurar o riso diante da estranha definição. Envergonhado do “kkkkk”
dentro do ônibus lotado de mal-humorados olho em todas as direções para ver se
alguém compartilha a minha surpresa. Fico feliz em constatar que ninguém, nem
mesmo o azedo do meu sobrinho, havia dado a menor importância ao “kkk”.
Foi então que senti uma mão apertando o meu braço apoiado no encosto da poltrona
do lado. Uma senhora visivelmente aborrecida me faz inclinar até ela e dá a
ordem: “não faça isso! Em Capital não se liga celular dentro do ônibus”.
Respeito a ordem e enfio o aparelho no bolso. Mas ali, na catatônica Avenida
por onde o veículo passa arrastando passageiros sombrios com seus celulares
desligados e escondidos, sou tomado por outra sombra, a que me deixa
desapontado, o mesmo desapontamento que vou sentir uma hora mais tarde ao
encontrar a minha irmã no sofá da sala. A sombra não vinha das copas
majestosas, nem dos prédios de edifícios, mas dos contornos redondos de Capital,
geometria que imediatamente associo à passagem bíblica do bezerro de ouro
cercado por ovelhas tristes e de carne pindaíba apodrecida
longe do mar, este, que se dedica a roer e esquecer o que rói. No instante em
que o ônibus atravessa a Avenida que liga o Norte ao Sul da cidade vejo que as
coisas mudam apenas de humor e geografia. Em todas, porém, o imperioso tédio
que oscila da embriaguez à ressaca. Se tivesse mar corriam a ele e se afogavam na evasão salgada e momentânea. Porém sem mar, Capital é uma
enorme bacia redonda na qual o mergulho não passa da sala.
Meu
sobrinho corre à frente. Ali mesmo na sala desce as calças e puxa o celular do
fundo da cueca. Tranca-se no quarto. A minha irmã sorrir satisfeita para Sílvio
Santos. Tem as pernas gordas sobre o sofá, uma bacia de pipocas de um lado e a
garrafa de coca-cola do outro.
Ana
Barros
Natal, 29 de novembro de 2016.
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