sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

ESTRANGEIRO

Um dos pontos negativos de se morar na capital é o isolamento lento e radical de outras culturas, principalmente daquelas mais simples, mais interioranas, que sobrevivem longe dos modismos do grande centro ou, contradição, semelhantes a estes, na composição, a seu modo, da moda e costumes do tempo presente.

Para entender um pouco a falta de percepção do que passa ao lado quando moramos numa capital, basta um dia qualquer da semana ir à rodoviária e embarcar para qualquer cidadezinha. Lá, surpresos, vamos nos deparar com uma riqueza de tipos humanos que pensávamos existir só no frenesi da civilização como resultado da complexidade capitalista-urbano-consumista. O mesmo outsider, o punk, o poeta maldito, o revolucionário, entre outros modelos underground comuns nas ruas das capitais e vistos aí, quando não como artistas por quem faz a cena poética da cidade, rotulados de marginais, vagabundos, loucos e bêbedos por alguns para desqualificar o que foge do padrão burguês de normalidade. Ao se aventurar em terras há muito esquecidas, ou até mesmo desprezadas pelas experiências negativas de um passado nem um pouco glorioso, aquele que pegou o ônibus em direção ao simples se surpreenderá com o que vai encontrar nas ruas, ainda públicas, de pequenas cidades, cujos homens e mulheres são tão artísticos quanto aqueles encontrados em ruas, becos e avenidas do mundo civilizado.

Há mais de 30 anos faço constantes viagens de Natal à cidade de Jaçanã, no interior do Rio Grande do Norte, onde nasci e mantenho laços afetivos e familiares. Nessas três décadas encontrei por lá personalidades que considero tão livres, underground e irreverentes, mesmo sem ter consciência desses adjetivos, quanto seus semelhantes encontrados em qualquer parte do mundo. Falo de Anacleto dos Santos (Creto), de Seu José Américo, de Josias Barbeiro, já falecido, e de Juarez Rodrigues.

Creto tem 53 anos, é solteiro, mora só e nunca teve namorada nem emprego formal. Faz favores e abastece algumas casas com a sua lata d'água. Aprecia uma "pinga" e quando embriagado torna-se tão virulento e debochado quanto o mais famoso dos outsiders, Charles Bukowski, este, amado e odiado com a mesma intensidade, principalmente por jovens que enxergam no "velho depravado" o cinismo com o qual se refere à nulidade da vida e da moral burguesas. Mas Creto é analfabeto, pobre, sem referências intelectuais que o conceituem entre os letrados como são Bukowski e outros tantos do mundo das artes, da poesia e da filosofia. Porém, ao se aproximar de Anacleto com o seu feixe de garranchos na cabeça, ou com a corda para amarar alguma bicho morto, logo se percebe um indivíduo capaz de sobreviver desempregado, sozinho e ainda por cima com a liberdade de se embriagar e esculhambar com a sociedade que o desdenha e exclui.

Antes de falar de José Américo, lembro de um senhor muito importante na história de Jaçanã e, particularmente, da minha, uma vez que conheci de perto a grandeza de um desviante numa cidade do interior cuja tradição fundada nas covas abertas pela enxada não permitia convivência pacífica com um pai de família que se sentisse livre no sentido de não querer trabalhar na roça para alimentar a família, regra patriarcal do mundo baseado na ideologia agrária, não seguir o partido de direita (sempre foi de ideias revolucionárias), de não ter religião nem ir à missa com os filhos, de falar o que pensa dos outros, do padre e dos políticos. Livre para tocar sanfona no cabaré. Livre para, mesmo sendo casado e pai de seis filhos, desaparecer por vários dias e por fim, livre para mudar de endereço repetidas vezes no mesmo ano e nunca possuir nada além do adquirido no presente.  Josias Barbeiro, ele também fazia barba, era um desses homens incompreendidos pela maioria e admirados por poucos que enxergam, tanto no desviante do meio artístico quando no outsider periférico, o mesmo talento para a aguda percepção do caos social. E foi graças à amizade com Josias, lá no começo da década de 1980, que comecei a decifrar a ética do diferente que não se iguala. Do diferente que afirma a diferença e que não se submete a uma igualdade forjada na mais descarada economia da exclusão. Longe de ser um ressentido é antes consciente do lugar que habita no mundo. Mesmo que esse lugar seja visto socialmente como abjeto,  desumano, miserável, marginal.

José Américo tem 83 anos e parece não um vovô, mas um punk dentro de sua roupa preta e acessórios em torno do pescoço, braços, cintura, chapéu preto, óculos Ray ban escuros, celular pendurado no cós da calça, rádio portátil, chaveiro, motoca e capacete vermelhos. Alguém que o visse não deixaria de compará-lo ao mais irreverente roqueiro ou mesmo ao punk mais caricato, cujos acessórios foi encontrando aleatoriamente nas sucatas e no lixo industrial, fazendo do próprio corpo uma performance do mundo das efemeridades. José Américo não tem consciência da sua crítica. Entretanto, tanto ele quanto Creto e Josias Barbeiro, são a realidade que uns expressam pela arte, no caso os poetas e artistas, enquanto eles, os loucos, irresponsáveis, boêmios, bêbedos e vagabundos, no completo alheamento da vida carregada de compromissos entediantes.



O rompimento com a mesmice dos normais, fenômeno que transforma mortais em semideuses, apesar do sofrimento causado àqueles mais próximos e que desejam estabilidade onde é impossível impor regras, é o que tão bem caracteriza Juarez Rodrigues em cima de sua moto Titan verde-limão em busca de aventura nas brenhas da caatinga. Juarez tem 59 anos, reside na zona rural, é casado, pai de três filhos, agricultor e ainda faz parte de um grupo de aventureiros chamado Corujas da Serra. A sua performance é digna de qualquer aventureiro de asfalto contemporâneo. De botas cano longo e jaqueta de couro preta, bottons, correntes e anéis, ele também se preocupa com a estética da moto, que tem um longo par de chifres de boi na frente, uma barba de bode pendurada na traseira, caveiras de crânio humano em miniatura e muitos adesivos de lugares e eventos por onde passou. A “tribo” de Juarez é eminentemente serrana. Já desbravou toda a serra do Planalto da Borborema, cujos serrotes se estendem entre a Paraíba e o Rio Grande do Norte.  Para ele, “a vida é uma aventura”.

Ana Barros

domingo, 19 de janeiro de 2014

URUBU REI

Já me encontrava gasta nos gestos
quando vi o buraco onde escondi o pior
Mas você que afina vida à morte
sempre tão sujo era o melhor
Ajoelhado aos meus pés empoeirados
acariciou-os com a língua quente e sebosa
Quantas vezes depois do banho com o sabão de lavar o cachorro
e a naturalidade de quem escolhe o tecido mais fino
você apanhou do varal a estopa de limpar o chão e
escovou os cabelos com o esfregão do banheiro
À mesa lambeu os dedos arrotou e palitou os dentes com o garfo
Tortura e vergonha de Kafka...
Mas diferente de K
Você
que atravessou a cerca de Sempre-Vivas
comeu o animal que desconhece as regras
E cheio de Qorpo Santo  
mil vezes agradeceu à mãe de todos os loucos
a seiva bruta que escondeu dos lobos  
E mil vezes ainda agradece à carniça o pedaço podre
indiferente ao açougueiro de luvas de cetim
e avental de ouro

Ana Barros