sábado, 2 de julho de 2016

Caldo de ovo



Em tempo de crise e saco vazio Tutu recorre aos artifícios de toda mãe pobre com uma penca de filhos correndo atrás: colhe o que tem em algum canto da casa e prepara a comida para as crianças com olhos fixos na porção que cabe a cada uma. Trabalhadora, ela mantém ativo o roçado de mandiocas e o galinheiro cheio de aves em quarentena para evitar o gôgo antes de serem abatidas e seus ovos colhidos pela menina franzina, que provoca um barulho medonho ao misturar-se às galinhas doidas. Um dos pratos favoritos nesses dias minguados é o beiju que Tutu prepara com a graça e o manejo de uma índia cabocla. Ali, de frente para a porta da cozinha, a terra semeada no inverno e já com suas manivas transformadas em robustas raízes, ela toma conta do facão e do balaio e desaparece no verde brilhante das folhas. Volta minutos depois com as unhas entupidas de barro e a cabeça pendida com o peso das mandiocas. Apressada, despeja o alimento no chão e descasca com a mesma rapidez de nossos olhos ansiosos e famintos. Tutu faz todo o processo com as mãos: descasca, rala e espreme a massa homogênea em um pano de saco para retirar o suco azedo e mortal da raiz. O beijuzeiro esquenta sobre as labaredas do fogo de lenha. Algum tempo se passa... Surge à nossa frente uma pilha de discos brancos, quentinhos, macios e deliciosos. Dormimos saciados e felizes, pois nada na escuridão do sono dá mais prazer que o estômago cheio.
A criatividade da cozinha precária da minha infância não para por aí, entre o vegetal e o fogo. A ela junta-se a bacia de ágata, guardada cuidadosamente no armário com os ovos apanhados do ninho das galinhas. Como dizia meu avô Chicão, “você não precisa das coisas só uma vez”, deixamos a proteína das aves para o dia seguinte, quando vamos ter à mesa malassada” ou “cabeça de galo”. Com três ovos, gordura animal e algumas colhes de farinha de mandioca, a quantidade de comida se multiplica em milagre de mãe. Fácil de fazer e com todos os ingredientes trazidos do entorno da casa, a “malassada” é prato nobre ao paladar virgem de outros sabores que não os inventados por Tutu. Graças a ela podemos nos dar o luxo de variar o cardápio, principalmente no jantar, quando a comida é mais leve que o almoço, este, sempre o mesmo: feijão ou favas, farinha de mandioca, arroz, jerimum, batata doce, carne seca assada na brasa ou miúdos de porco torrados na banha, ou ainda, aqui acolá, um preá ou um camaleão capturado pela mulher de instintos pouco civilizados. Enjoados de alternar beiju e “malassada”, nossa mãe pergunta para nos agradar: “que tal hoje uma cabeça de galo?” Comemos o pirão de ovos batido na tigela branca de bordas rosa, peça salva pelo tempo e uso no preparo do pirão de galinha, dieta obrigatória no resguardo dos cinco filhos. “O que é cabeça de galo, mãe?”, pergunto procurando a cabeça do macho da galinha dentro da panela. Depois de descobrir a verdade, ou seja, que o nome pomposo dizia respeito ao vulgar pirão de ovo, em nada semelhante à nobreza real da linda cabeça adornada com uma crista vermelha imponente, passo a não querer “cabeça de galo” no jantar.
Mas o tempo adiantou cinco décadas e nunca mais voltei a comer, ou fazer, “cabeça de galo”. Não que eu despreze o prato tão nosso, mas por não gostar de ovos mergulhados em caldo com tempero. Cheguei mesmo a esquecer do prato da infância pobre e criativa ao lado de Tutu e de meus irmãos. Porém, a memória reserva as melhores descobertas quanto mais nos distanciamos do presente maravilhoso. Foi assim que, de repente, ouvi o garçom dizer depois de indagado sobre o cardápio daquela noite em São Luis: “temos caldo de ovo,”... “Caldo de ovo?”, eu repeti ansiosa por saber o que era aquela comida de nome duvidoso e ralo. Alguém disse “é caldo da caridade”. “Não é cabeça de galo?” perguntei surpresa e trazendo à memória o cheiro e o gosto de ovos misturados ao alho, à cebola e o cominho lá de casa. Não quis arriscar na escolha, fiquei com o sanduíche de nome esquisito: quebra anzol, o mesmo nome do restaurante. Os demais pediram “caldo de ovo”. E não é que era mesmo “cabeça de galo”!
Em todos os restaurantes nos quais fizemos refeições em nossa permanência na cidade, estava lá o prato da minha infância. “Cabeça de galo”, ou melhor, “caldo de ovo”, quem diria, é prato importante da cozinha do Maranhão.

Ana Barros
Natal, 30 de junho de 2016.