sexta-feira, 8 de novembro de 2019

A festa de Ló

As galinhas morrem penduradas de cabeça para baixo. Alguém amola a faca para retirar o couro e as vísceras dos animais abatidos. As crianças acordam com o berro das ovelhas. Duas horas se passaram. No lugar do sangue e das fezes há agora grande quantidade de carnes limpas com água quente e sal. As crianças voltaram a dormir. O silêncio é quebrado apenas pelo manuseio dos utensílios nas mãos das mulheres que, até ali, olhavam modorrentas à ação violenta dos homens. O cheiro do café coado anima as duas vizinhas que estabelecem entre elas uma divisão amigável das tarefas. Decidem que o tempero fica sob a responsabilidade da dona da casa, uma vez que os convidados conhecem o toque picante dos pratos da velha senhora. Assim começa o dia do aniversário de minha mãe, a quem desde sempre chamei Ló, apelido de Lótus. A festa sempre começava com algazarra e bom humor, porém logo enveredava numa correnteza tão azeda quanto o vinagre usado no preparo da comida. Era assim todos os anos e ninguém deixava de vir alegando cansaço ou constrangimento das repetições dos dramas familiares com data marcada para acontecer, o dia do aniversário de Ló. Havia motivos cristalizados para não faltar. Um deles era a mesa farta o dia todo. O outro, as cenas burlescas entre a anfitriã e os filhos, cuja tensão aumentava à medida que as garrafas esvaziavam e os convidados, já embriagados, entravam na história, fosse como plateia silenciosa, fosse como bobos da corte. O Enredo teria início logo a filha mais velha chegasse da capital onde morava há mais de vinte anos. Aparecia só naquele dia, carregada de mau-humor e presentes caros. “Trouxe meu uísque?”, pergunta Ló mal a filha desce do carro importado rebocando malas e sacolas de grifes. “Maravilha!”, disse Ló agarrando a caixa da bebida sem cumprimentar minha irmã e os filhos. Estes, de fones nos ouvidos e celular na mão, não viam nem ouviam além deles mesmos. Estavam preocupados em encontrar tomadas. O mais novo para carregar a bateria do aparelho e o mais velho para ligar o secador dos cabelos. Eu olhava do alpendre sem me dispor ajudar a minha irmã, que ficara para trás com as bagagens e a cadela Minnie. “Voltem aqui, seus filhos da puta!” “Vou cancelar a viagem à Disney, esperem só!”, grita enquanto arrasta as malas e a cachorra vestida com saiotes de bolas vermelhas.

Ló tomava a primeira dose dupla de uísque daquele dia, fazia setenta e sete anos. Três filhos. Eu era a segunda, o terceiro, deixo para falar dele mais adiante. Dois netos, nenhum genro e um marido que desaparecera quando comemorávamos a Páscoa na casa da madrinha do meu irmão, comadre de Ló, que também fugira naquele mesmo dia. A fuga dos dois se tornou motivo recorrente de lamentações e brigas entre nós, mas não desculpas para cancelar a festa do aniversário de Ló. Há mais de dez anos reuníamos parentes e amigos que vinham de longe saborear os pratos de galinha e bode, cuja engorda se dava ali mesmo no quintal sob os cuidados de Ló. Além das duas filhas e dos netos, faziam parte da festa alguns tios velhos, muitos primos, compadres, comadres, afilhados e pouquíssimos amigos. Ló não fazia questão de tê-los por perto, nem naquele dia, tampouco nos outros. Na ausência deles eu era a única presença naquela casa que enchia uma vez no ano de pessoas com as quais não mantínhamos relações próximas. Vinham para comer, beber e participar das nossas brigas. Por sermos apenas ela e eu, sem muita conversa e, consequentemente, excesso de ironia e dissimulação desempenhadas na rotina silenciosa de duas mulheres com a idade há muito passada das cobranças do mundo, tirávamos proveito da reunião anual para repetir cenas de ciúme e agressões mútuas que todos já conheciam. Não era por isso que os convidados deixavam de ser simpáticos ao combate entre mãe e filhas. Eram discussões regadas à carne, álcool, cigarros e doces. Iniciavam invariavelmente com alguma observação maliciosa de tio Feliciano, cuja tolice e megalomania impulsionadas por alguns copos de cachaça já eram há muito conhecidas de todos. Com a sua chegada triunfal sobre o cavalo marrom tinha início à conversa animada que comandaria a festa dali em diante. “E aí, Ló, convidou o meu compadre?”, pergunta o velho mal pisa o chão. Sem perder o hábito ela estira o dedo médio em direção a tio Feliciano e dispara: “Vá tomar no cu, velho safado!”. Acontecimentos recorrentes como traições do meu pai e falta de sexo voltavam à memória estimulada pelo uísque e, no caso das filhas, pelo prazer de ver Ló, despojada das armas fatais da libido, com as quais enfrentou o marido e o mundo, ameaçar com a voz entornada de uísque: “Parem ou eu acabo já com esta merda!”. Não parávamos. Quase sem voz pulávamos de um xingamento a outro para depois, sem mais o que dizer diante da indiferença das outras mulheres, que mexiam as panelas num frenesi sensual dos quadris, escorregarmos para os nossos esconderijos: Ló engolia mais uma dose dupla e corria ao quarto dos fundos com a garrafa, dois copos e um maço de cigarros. A porta se abria como se alguém observasse de dentro e soubesse que ela iria. Era o meu irmão, o filho caçula que esperava.  Já a minha irmã, se isolava num canto da sala e dava cabo da tigela de doce de leite saída do fogo naquele instante. Quanto a mim, corria ao banheiro com a valise preta e só saía de lá quando o calor entre as pernas havia esfriado.

A casa já não era a casa da filha mais velha. Há muito havia deixado para trás os afetos corrompidos. Mesmo assim, quando retornava aquela única vez no ano, era como se os ressentimentos se renovassem, não só entre mãe e filha, mas com os netos também. “Feche a geladeira, filho da puta!”, gritou a avó para o neto indeciso se pegava a garrafa amarela ou a roxa. “Beba mijo. Os refrigerantes são para o almoço”, ela diz e toma a garrafa da mão do rapaz. Virando-se para minha irmã ordena: “Leve embora esses frescos.” Às costas de Ló, minha irmã simula um chute em seu traseiro, abre a geladeira e entrega a garrafa ao filho que escorrega na ponta dos pés.“Esta é a última vez que eu venho aqui!”, diz minha irmã encaminhando-se para o carro com os filhos e a cadela, que ameaça morder o calcanhar de Ló. O mais velho, que não largava a necessaire de oncinhas na qual carrega o secador de cabelo, caminha lento e debochado. Vai atrás rebolando e de dedo do meio estirado para os que observam e dão gritos de “urra!”. Minha irmã, contorcendo-se de raiva atira na direção dos convidados uma caixa cheia das embalagens dos doces que havia comido. Em silêncio, e de queixo erguido, Ló passa por todos e se encaminha para o quarto. Fecha a porta e destrói os presentes que havia recebido de nós, suas filhas e netos. Não poupa nem os litros vazios do Old Parr que bebera em goles rápidos. Antes, porém, inclina-os na boca para descer as últimas gotas. O arremesso das garrafas quase atingiu a filha, que resolve voltar depois do cavalo de pau que ensaiou com os filhos na estrada poeirenta.

Cortar os alimentos, prepará-los com mexidas leves ou apressadas nas quais o corpo acompanha o manejo num ritmo violento e sensual, imprimia às conversas um jogo erótico e dramático no qual os desentendimentos entre Ló e nós, suas filhas, misturavam-se à comida igualmente os condimentos essenciais como o alho e o sal. Nada ficava por dizer na atmosfera dosada de gordura, álcool e açúcar. As conversas cresciam, inchavam como as claras em neve batidas pelas cozinheiras. Ameaçavam explodir igualmente a gula sobre os pratos ora doces, ora picantes, ora azedos. No ritmo crescente de acusações não prestávamos atenção ao que dizia a outra. Cada uma representa o seu monólogo como se o que dissesse fosse de grande importância para os que ali cortam, mexem, lavam, bebem, escutam, ou fingem escutar. A confusão atinge o ponto alto quando minha irmã abre a boca e puxa um par de dentaduras postiças impregnadas de resíduos de doce. Ela está transtornada. Treme, grita. A saliva faz chuvisco sobre as comidas expostas à mesa. “Todos perdidos!”, diz minha irmã com o dedo no buraco murcho sem os dentes. “E de quem é a culpa? Dela!”, aponta com furor para Ló, que ouve a história contraindo os músculos do rosto. “Sim, a Senhora é culpada!” A frase é cortada por um acesso de tosse. “Tragam água, batam-lhe nas costas!”, pede aos gritos uma das cozinheiras. Ló dá de ombros e bebe mais uma dose dupla.

Os pratos foram enfileirados na grande mesa retangular. Abro a caixa forrada com veludo e retiro os talheres junto com os guardanapos de linho vermelho. “Para a mesa, todos!”, ordena Ló. Minha irmã é a primeira a sentar à cabeceira num claro desafio a quem se atrevesse dizer que aquele lugar não era o seu. Foi ainda a primeira a fazer o prato antes mesmo dos convidados se acomodarem. Ló anda de um lado para o outro da mesa a encher os pratos com o mesmo controle de quando passamos por grande privação de alimentos: éramos proibidos de fazer nosso prato. Passam por suas mãos as travessas fumegantes e perfumadas. Todos repetem duas, três, quatro vezes, até não restar mais nada nas vasilhas. Bode, galinha, porco, bacalhau, feijão, arroz, farofa, saladas… Quarenta minutos e nem mais um grão de arroz sobre a mesa. “Tragam a sobremesa!”, Pede Ló ainda em pé. Levo ao centro da mesa a grande tigela de chouriço, doce preferido de Ló que ela faz questão de preparar com o sangue colhido do porco. Cinco minutos depois não havia nem mais uma colher da sobremesa.“Não deixaram o chouriço de Ló?”, perguntei ao perceber que ela ainda não havia sentado à mesa após servir os convidados. Estes, agora fartos e silenciosos, relaxavam em redes estendidas nos alpendres. Alguns fumam, outros cochilam. Os mais românticos dançam ao som de modinhas sertanejas. Ninguém se preocupa com a sujeira deixada para trás. Os filhos da minha irmã se fecharam no quarto com o celular e o secador de cabelo. Os meus dois vira-latas e as moscas tomaram conta da cozinha. Ló, de semblante fechado, tem o copo de uísque numa das mãos e o cigarro na outra. Está sentada na espreguiçadeira diante da louça suja. Há em seu rosto o tédio resignado do fim. Fuma bebericando a quinta dose dupla de uísque. Por fim, senta-se à mesa para comer os miúdos dos bichos. Divide com as duas velhas que lavam a louça os pés das galinhas e as vísceras do porco. Mal havia levado a primeira porção à boca ouve o grito da filha mais velha: “Meu Deus, o bolo! Tem que ter o bolo dos parabéns!” A cozinha ocupada pelos vira-latas e às velhas que chupam os ossos é invadida outra vez pelas mulheres que têm pressa em mexer, bater, amassar, coar, pois o tempo é curto e o bolo tem que ser servido antes do jantar. Não havia quem fosse à mercearia comprar os ingredientes. “Ló, vá até à venda! Compre farinha, fermento e morangos. Vai ser com recheio de morango.” “E uma vela no meio.” “Sim. Uma vela no meio.” “Os refrigerantes estão na geladeira.” “Uísque também.” “Uísque também.” “Vamos cantar o parabéns às sete.” “Quero a toalha vermelha.” “Sim, Ló.” “Quero muitas fotos no Facebook.” "Sim, Ló, o celular está carregado."

Faltavam alguns minutos para 19 horas quando a aniversariante apareceu na sala vestida de roxo. Eu a penteara e fizera a maquiagem com a intenção de deixá-la mais jovem. Ló tinha os olhos no grande espelho e gostava da própria imagem. A base escondera as rugas e o batom vermelho imprimira volume aos lábios murchos. “Grande dama!”, eu disse sem perceber que minha irmã havia entrado no quarto e observava: "Que coisa mais ridícula! Não adiante enganar. Todos percebem que não passa de uma velha sem vergonha!”, ela disse e se retirou. Ló endureceu na cadeira de frente para o espelho. Abriu enormemente os olhos e soltou uma gargalhada obscena. “Pegue o uísque!”, pediu de dentes serrados. Corri à cozinha e levei até ela a dose dupla do segundo litro. “Mais uma!”, ordenou. “Agora vamos!”, disse aprumando-se nas pernas bambas.“Ló Chegou!” “Viva Ló!” “Apaguem a luz!” Gritam os convidados. A vela é acesa e todos cantam o parabéns. Ló apaga a vela. A lâmpada é acesa outra vez e, sem que ninguém esperasse, meu irmão surge nu, de braços abertos e feliz. Sorrir para Ló. Ela, sem demonstrar surpresa, acolhe em seus braços o filho caçula. “Mamãe…”, “mamãe…”, “mamãe…”, ele repete a palavra jamais dita por mim e a outra filha.

Ana Barros
Natal, novembro de 2019.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Vaga-lumes e vitrais

No museu da cidadezinha de Arês, escondida entre o mar de Tibau e a Lagoa de Guaraíras, me deparei com coleções de garras separadas pelo tamanho, volume e cor. Garrafas cujas cores encheram os meus olhos da alegria infantil encontrada no contato com os materiais mais simples e precários, como são os vidros coloridos à luz do interior de uma igreja. Sim, o museu de Arês é na igreja de estilo barroco São João Batista. Pois bem, por este detalhe, escolher um lugar sagrado para acomodar resíduos profanos, aumentou em mim a sensação de completude, de aniquilamento de   culpa: quis a infância. Desta trazemos a memória de ordem, de disciplina, de cuidado e disposição dos objetos sobre um mundo a impor um ideal de permanência. Ideal este conquistado nem que seja da contemplação de um caco de vidro azul... do vinho (do padre?), da cachaça barata (do cabaré?), do licor (da beata?), do azeite (do bispo glutão?). Não importa ali a origem dos frascos, se divina ou diabólica, e sim o congelamento do tempo. Existir para o colecionador de Arês, tão disciplinado em guardar e arrumar garrafas e garrafinhas secas, possivelmente não consumidas por ele, tinha a ver com tempo e cor. Uma escolha estética em meio ao cotidiano cinza e vulgar das obrigações. Sabido é que de dentro dos frascos escorreram líquidos maravilhosamente iguais à beleza das garrafas. Deleite sensual para aquele, ou aquela, que enganou o tédio com vaga-lumes e vitrais.

Ana Barros






quinta-feira, 2 de maio de 2019

Alfinete da armadilha


                                                                      A Eloisa Araújo*
                       
        
Caminhava na avenida perfurada de gritos de homens maus
quando a chuva lavou os meus cabelos com os dedos finos
de Nanã. A minha mãe é um plano bruto
Além e atrás habita o pântano de onde comanda o fim e o começo
E eu sou o começo. Minha mãe é rizoma e também é morte
À noite vai à casa da velha deusa e torce o pescoço do galo
Tenho comigo o bastão retrátil que ganhei do meu padrasto
Meu pai caminha no gelo e malha ferro
Meu pai, que deita ao meio dia e sonha com ostras e pombos
É dele que guardo deserto e lâmina: Saias escondem facas
Da minha mãe não guardei nem perdi. Sou idêntica e mesma
força a modelar o barro que não endurece. Sou filha do lodo
Armadilha roxa presa no pescoço


Ana Barros
02 de maio de 2019.


*Jovem feminista de 21 anos agredida na Av. Paulista
por três homens eleitores do presidente Jair Bolsonaro.
Sete de abril de 2019  




quinta-feira, 11 de abril de 2019

O cheiro do ônibus


A sensação era a de que o ônibus ia se partir em bandas e jogar os passageiros no meio da rua. Num “salve-se quem puder” agarram-se ao longo do corrimão ensebado e se equilibram como podem. No entanto, fora a preocupação com a autodefesa, ninguém parece dar importância à falta de conforto do veículo, tampouco presta atenção à paisagem que margeia o caminho por mais de quinze quilômetros até o centro comercial, cujos manguezais e o grande rio de águas sujas imprimem uma atmosfera romântica à paisagem àquela hora da manhã. Vencidos pelo cansaço acumulado muitos dos que vão sentados adormecem e só acordam no ponto final quando o motorista empurra o pé no freio fazendo com que os dorminhocos saltem do assento e gritem gracinhas para o condutor apressado. A maioria faz o percurso em pé. Tem semblante vago e olhar perdido entre carros e edifícios e volta a si apenas quando alguém puxa a cigarra ou dá um empurrão para abrir passagem. Bárbara e eu passamos metade de nossas vidas fazendo parte do coletivo de estranhos que, mais tarde, descobriríamos ser o nosso real afeto. Foram raras as vezes que tive o privilégio de viajar acomodado numa das poltronas velhas e malcheirosas, impregnadas que eram do suor e da gordura dos passageiros. Bárbara jamais abriu mão de um bom lugar e viajou sentada todos os dias até se aposentar. Porém o pequeno conforto tinha um preço: levantar três horas após deitar-se para dar tempo fazer o café, arrumar a marmita, tomar banho e sair pontualmente à hora sabida do ônibus que tinha a poltrona à sua espera. E aquela cadeira há muito passou a ser dela, Bárbara. Acho até que ambos, ônibus e passageira, haveriam de se aposentar no mesmo dia, pois aquele transporte não tinha menos de trinta anos, tempo equivalente ao que ela contava de percurso diário entre a casa e o trabalho. Decidida a marcar território quando o assunto era o seu prazer, disse que a terceira poltrona atrás do motorista e junto à janela era dela. Tinha dois motivos para a decisão radical: primeiro, descer sem ser empurrada e segundo, o nojo que sentia dos companheiros de viagem. Não só o nojo pela falta de asseio àquela hora do dia, que os deixava com as axilas azedas próximas do nariz de Bárbara, mas a ousadia dos homens que se concentravam no final do corredor com o único propósito de encoxar as mulheres. “Morreria se tivesse de ir em pé entre eles...!”, me disse sem suspeitar que entre eles houvesse alguém que a desejava, que a observava com carinho, que esperava pacientemente ser visto. Esse alguém era eu, repórter da revista Bagaço, escolhido pela redação para escrever um artigo sobre os passageiros da Linha Z. Bárbara foi a única que não quis falar nem ser fotografada. Percebi na recusa, motivo principal da minha paixão, instinto de superioridade e completa indiferença pelo mundo do qual eu era porta voz e cujas informações seriam lidas por milhares de pessoas cultas. Mas ela não dava importância a pessoas cultas que sabem da vida dos outros pelos jornais, tampouco dava atenção aos fatos corridos ao seu redor. Para ela a vida acontecia longe dos leitores do meu jornal, longe de gente como eu, que vive de criar enredos cuja finalidade jamais atrairia sua atenção. E foi depois daquela entrevista sem a opinião de Bárbara, sem a qual o meu texto perdeu o sentido e não valia a pena ser publicado, que passei a andar no ônibus da Linha Z só para encontrá-la.

Nascida no dia da santa cujo nome constava na folhinha, Bárbara estava mais para Iansã do que para a mártir cristã. Crescera livre em meio às brincadeiras com dois primos da mesma idade que, junto à menina, inventaram muitas maneiras prazerosas de permanecer longe dos olhos dos adultos. Com doze anos Bárbara ainda brincava de esconde-esconde com os meninos. Depois de escalar todas as árvores e se esconderem no paiol de milho, o local mais apropriado para a brincadeira dos adolescentes era o quarto de despejo que, além de víboras e traças, guardava malas e uma cama velha há muito abandonada. Ali os primos brincavam todo o período da manhã enquanto os adultos da casa ocupavam-se das coisas sérias. Porém um dia, com quase 18 anos e esquecida dos primos que haviam se mudado para outra cidade, Bárbara, de súbito, disse aos pais que partiria dali a algumas semanas, tempo suficiente para completar a maioridade. Não adiantaram as lamentações nem o choro, ela foi assim mesmo. Desembarcou na cidade grande e lá esqueceu quem havia deixado para trás. Pela primeira vez entrou num ônibus: lotado, malcheiroso e barulhento. E foi naquele espaço, diferente de todos os recantos que ela havia se escondido com os primos, que sentiu o mesmo cheiro e a felicidade da infância. Dali em diante, até se aposentar, Bárbara fez aquele percurso dentro do mesmo ônibus. Viajava todos os dias com a fisionomia relaxada inclinada e quase adormecida na poltrona de ferro coberta de escaras de mofo. Expressava o prazer da menina que ainda andava com ela. E, numa espécie de transe, Bárbara descobriu que o cheiro daquele transporte era o mesmo odor azinhavrado dos primos quando a agarravam e rolavam os três para debaixo da velha cama. Havia no ônibus a combinação sensual e potencialmente viril da mistura de suor dos homens com perfume e salmoura de peixe estragado, composto que ia além da imaginação infantil e que nela provocava ondas incômodas de desejo. Mas foi pelo poder do olfato que ela amou e odiou os companheiros de viagem por três décadas.

Bárbara viera de uma família na qual a palavra servia apenas para insultar o outro na hora das refeições e de deitar, momentos que aproveitavam para fazer as observações maldosas sabidas, ou criadas, por algum vizinho no correr do dia. Mas a sagacidade dos sentidos teve poder maior na educação quando o assunto foi orientar os filhos sobre bem e mal. Porém, nem sempre o que era sentido correspondia à verdade, mas tão somente à imaginação do pai, forjada nas próprias experiências de homem para o qual o silêncio diante da natureza dizia mais que o pequeno vocabulário que dominava. Foi assim que o pai protegeu Bárbara da maldade do mundo. Ensinou à filha distinguir bem de mal acendendo as narinas para captar o cheiro de quem se aproximasse, fosse bicho ou homem. O hábito que lhe daria poder para agir sem precisar recorrer à outra arma que não fosse a dos aromas. A orientação paterna logo serviu para afastá-la dos homens pendurados à porta traseira do ônibus. No entanto, Bárbara jamais soube por que ao mesmo tempo em que desejava não encontrar os passageiros, ao entrar no transporte e acomodar-se em sua cadeira, entregava-se ao devaneio daquelas viagens curtas e mecânicas, porém plenas da sensação de que algo doce e bom há ali, mesmo se tratando do ônibus da Linha Z. Uma delas, por sinal coletiva, e que nos distraía deveras, era a ladeira do gozo, cujo declive causava gritinhos sensuais nas mulheres e escrachos dos homens: “vamos gozarrrrrrr...!”, gritavam eles no instante que segurava o êxtase antes do mergulho relaxado do ônibus. Todos nós, inclusive ela, esperávamos com o coração suspenso o prazer que acendia nossos sexos quando o motorista engatava a marcha na banguela e deixava o carro cair ladeira abaixo. Bárbara acompanhava a algazarra de olhos baixos, sangue nas faces e um leve sorriso nos lábios entreabertos. Sentia a mesma cócega efêmera e maravilhosa que tantas vezes a surpreendera nas brincadeiras com os dois primos. Passados os dois segundos do gozo coletivo o silêncio era absoluto e devolvia todos à normalidade do trajeto. Alguns minutos depois não haveria mais sinal dos passageiros naquele veículo desprezado por pessoas cuja libido seria recarregada no trabalho para mais uma descarga no dia seguinte. Evadiam-se por ruelas e espaços jamais conhecidos senão por eles próprios. Desapareciam da mesma forma que surgiram no ponto do ônibus: sozinhos, indiferentes e anônimos. Aliás, só vim me aproximar de Bárbara 15 anos depois, na fila da Previdência Social. “Chegou o momento”, pensei feliz e postei-me a alguns passos à espera que ela solicitasse o meu favor, fato realizado ao receber da mão estendida pelo guichê os formulários para preencher e não dispor de uma caneta. Rápido ofereci a minha. “Obrigada”, ela disse sem olhar o dono da mão estendida. Enquanto assinava, Bárbara falava compulsivamente sem demonstrar interesse no entorno. Falava com os próprios botões sobre aquele instante há 30 anos esperado como troféu. Iria para casa e nunca mais entraria no ônibus da Linha Z. Tive dúvidas se realmente ali eu era um estranho ou se ela, na sua impressão olfativa, me reconhecera como um dos passageiros. Na verdade, por viajarmos apertados como linha no carretel, por mais que me lavasse estava sempre com o cheiro do ônibus, cheiro há muito reconhecido pelo cérebro da mulher que aprendera com o pai captar odores e através deles definir os conceitos de bem e mal. E foi pelo meu cheiro, e não pela pequena gentileza em oferecer a caneta, que ela confiou a mim sua história.  

Bárbara parecia despedir-se não do emprego, mas de uma prisão na qual a sentença imposta havia sido trancar a fala. Justamente ela, que evitava a prosa com quem quer que fosse, desatou a língua e falou como se fosse uma velha amiga, o que não deixava de ser verdade uma vez que andávamos emparelhados no mesmo transporte. Estava feliz em assinar os papéis. Em nenhum momento se referiu ao trabalho do qual dava adeus. Regozijava-se de não mais ter de pegar o ônibus com os seus passageiros fedidos, agora velhos e safados. Velhos, fedidos e safados porque haviam endurecido seus vícios ao longo de décadas naquele trajeto comum e vulgar, cujas novidades se resumiam aos frequentes acidentes e mortes de percurso. Não que eles continuassem aglomerados na porta traseira do ônibus importunando as mulheres. Homens jovens haviam ocupado o posto. Agora, além de encoxar as passageiras, muitos dos novatos da Linha Z acessavam vídeos pornográficos no celular e se masturbavam atrás de quem viajava em pé, independente de vestir saia ou calças: “É só ralar num rabo gordo que eu gozo”, ouvi do rapaz que desceu às gargalhadas depois de esfregar-se na bunda recheada de espuma de Janny, travesti que se deleitava com os assédios. Mas voltando aos velhos, era naquele espaço único de suas vidas invisíveis fora do ônibus que narravam crônicas de velhacos. Eram monólogos de aposentados ociosos ou de bêbados, que além de não ter outra vida senão a da rua, a família não os queria dentro de casa. E assim, rejeitados pelos de casa e sem nada que fazer fora, passavam o dia para lá e para cá insultando as passageiras com palavrões e piadas sórdidas. Bárbara manteve sempre o semblante carregado diante dos velhos pornográficos que um dia foram jovens, mas já pornográficos. Naquele dia, porém, na fila da Previdência, ela, também uma velha, estava simpática e excitada. Falava sem dar tempo de perguntar ou responder. Tinha os olhos inquietos, muito abertos e dava a impressão de que perdia o controle de si. Falou do ônibus e da alegria em se livrar da lata suja e de seus passageiros sebosos. No começo, lembrou, foi difícil se acostumar: ora com a indiferença das pessoas, ora com a depravação com que os passageiros se comportavam dentro do ônibus. Por várias vezes se aproximou, puxou conversa, porém o máximo que obteve de volta foi um movimento desdenhoso de cabeça e o passo apressado de quem foge de uma incômoda possibilidade.

“Era tempo de partir...”, ela disse olhando longe como se assistisse ao próprio filme na tela azul do infinito: “eles me abençoaram rogando pragas”. Apesar das ameaças e maldições dos pais, pouco tempo depois Bárbara já havia esquecido todos. Deixou-se impregnar da vida sem referências cuja representação maior, o pai, se achava com poder para decidir sobre o destino dela, a filha que decidiu criar as próprias regras. De onde viera, o hábito selava o caráter dos filhos, fato que assegurava ao pai a certeza de ter o controle na mão, fosse pela imposição dos castigos, fosse pela rotina da moral silenciosa do homem do campo. No entanto, Bárbara, ao se misturar com pessoas estranhas e diferentes das que havia deixado para trás, abandonou as poucas lembranças no fundo da mala, na qual havia deixado algumas fotografias e imagens de santo que guardava como proteção. Em apenas dois anos já havia se familiarizado à turba indiferente da cidade grande e passado a viver sem mais referências. Viera de um lugar de gente lenta, com tempo de sobra pra ver e falar em demasia. Preferiu, contudo, escapar das vistas e dos comentários maldosos dos adultos e brincar de faz de conta com os dois primos. O relato de Bárbara era o enredo de uma estrangeira. Semelhante aos répteis, seus animais de estimação, criaturas solitárias, aparentemente inertes, silenciosas e adaptadas, como ela, à dinâmica urbana. Reencontrara os bichos rastejantes com grande felicidade nas frestas da parede de tijolos vermelhos do quarto em que morava: “vieram comigo!”, disse demonstrando com o comportamento esquivo compreender a plenitude daqueles bichos frios colados à parede como a dizer: “eu sou você.” Calou de repente e assumiu ar de quem lembrava algo há muito esquecido.

Tinha seis anos e era hábito à noite, deitada em sua pequena cama, observar os filhotes das lagartixas colados na parede iluminada por velas, acima do guarda-roupa, paradinhos, a espreitar algum inseto atraído pela luz. Uma noite, após observar os bichos por um bom tempo, perguntou à mãe se ela sabia a diferença entre as víboras e os homens. Diante da negativa da mãe a menina responde: “é que elas não precisam falar, sabem de tudo com os olhos”. A ligação com os répteis explicava a rejeição de Bárbara pela fala, cuja revelação dera-se no diálogo precoce com a mãe, ao qual eu tomaria conhecimento naquela conversa, talvez o primeiro diálogo de sua vida com um estranho. No fundo ela sempre soubera por que desprezava as tias quando exigiram dela arranjar casamento, isto é, quando quiseram dela o mesmo compromisso que haviam firmado com o mundo na idade da sobrinha. Porém do mundo das casadas Bárbara sabia que nada mais que traições, rabugice e veia quebrada haveria de ter. E, longe da solidão casada das tias velhas, preferiu um só lugar na cama, o seu. Ficava difícil compreender por que Bárbara, solitária, silenciosa e pouco dada às camaradagens masculinas, escolhera estar sempre perto dos homens. Cheguei a considerar a hipótese de que ela gostasse de mulher: “Seria homossexual... Ou bi?”, me fiz essa pergunta por algum tempo sem querer jamais uma certeza. Mas essa fraqueza de caráter não diminuiu meu sentimento por ela.  “Finalmente”, respirou fundo, “faltam dois dias para me livrar daquele ônibus imundo”. “Mas você não está feliz?”, perguntei ao perceber que a excitação da minha amiga dava lugar à tristeza mais doída. “Está sentindo alguma coisa?” Não respondeu. Levantou a cabeça, olhou longe e disse: “queria começar tudo de novo... Pegar o ônibus, procurar emprego, comer sanduíche de mortadela no almoço...”. Respirou fundo e continuou: “ainda sinto o gosto da primeira viagem... Rodei feito pião na roleta e o cobrador empurrou-me para dar passagem à fila que se formou atrás de mim gritando palavrões”. Parou de falar, fechou os olhos e entreabriu os lábios tomada por uma lembrança erótica: “cachorra quente...!”, sorriu da comparação que um dos meninos fizera com ela quando brincavam de esconde-esconde. A recordação não passou de pálida imagem, logo tentou trazer à superfície outras histórias felizes. No entanto, viu o rosto transtornado da mãe a gritar “filha da puta!”, e o do pai ridicularizar um compadre que falava fino. Imitava a voz e os trejeitos do amigo recorrendo à teatralidade que provocava gargalhadas nos filhos cúmplices da falta de escrúpulos do dono da casa. Riso debochado naqueles momentos nos quais todos esqueciam a moral paterna e passavam a zombar do outro. De repente as lembranças desapareceram e ela se desmanchou sob o vento que soprou cheiros e vozes sobre ela. Abriu as narinas, inspirou fundo e de olhos fechados. Inclinou o ouvido direito em direção ao som para o qual eu não tinha tímpano. Levantou-se enfim com a pressa de quem acabou de sofrer uma fatalidade e o tempo exigisse que tomasse uma decisão imediata. Devolveu-me a caneta da maneira como recebeu, sem me olhar, e desapareceu.

O ônibus se aproxima, peço parada. Bárbara não me vê, apesar de tocar no meu braço ao se equilibrar nos degraus da porta. Encosta a cabeça no vidro de sua janela e estira um vago olhar entre os prédios, automóveis, árvores e toda miudeza entre lixo e tecnologia produzidos pelos moradores naquele caminho por demais conhecido. Detém-se num objeto estranho, a estátua viva pintada de prata e vestida apenas com uma sunga. O ônibus para. Um jovem magro aparentando vinte anos e ar de quem havia deixado para trás uma terra igual a que ela também havia abandonado, sobe e se acomoda na cadeira ao lado. Segura um papel no qual tem algo escrito. Lê e relê a anotação na dúvida se pede informação àquela senhora. O rapaz olha Bárbara com timidez. Alguns minutos se passam. Tomado de súbita coragem pergunta: “a Senhora é daqui mesmo?” Ela estava tão absorvida na contemplação da estátua viva que não ouviu o rapaz. “A senhora é daqui mesmo?”, insiste o estranho. “Não!”, respondeu secamente sem desviar os olhos da estátua cuja imobilidade conversava com ela. O ônibus parou na Avenida, Bárbara levantou-se apressada e desapareceu. Antes, porém, ainda viu o rapaz com a mala e o papel na mão observando o semáforo. O sinal abriu. Os dois desapareceram na nuvem de fumaça escapada dos veículos. Não a vi mais nos dois meses seguintes. “Onde ela andará? Terá se aposentado”? “Estaria doente”? Fiz estas perguntas a todos que supus lembrassem da mulher cujo nome não sabiam, mas de cuja esquisitice faziam piadas: “aquela velha doida? É mesmo... faz um tempão que desapareceu”. “Vi no Facebook que ela fugiu com o cobrador... kkkkk.”“Vi na TV que ela morreu quando gozava no ônibus desgovernado, que se partiu em bandas na ladeira do gozo...” Já havia desistido quando fui procurado duas semanas depois por um homem de meia idade que se dizia amigo de Bárbara. Dissimulei o meu ciúme, pois não imaginava Bárbara com um amigo, e puxei o informante pelo braço procurando um lugar onde pudéssemos conversar. Ele estava visivelmente angustiado e com olheiras de quem havia chorado noites adentro. Mas eu, ansioso por saber logo notícias de Bárbara, subestimei o aspecto mórbido do amigo da minha amiga e não considerei a possibilidade de uma notícia ruim. Envergonhei-me de bisbilhotar a vida de alguém ausente e indiferente a mim, talvez nem fosse íntima daquele homem amassado e infeliz. “E se for seu amante?”, pensei sobressaltado. Imediatamente, porém, voltei ao que importava de fato, que era saber dele pormenores daqueles dias em que deixei de ver a mulher que ocupava a minha solidão. O homem contou que Bárbara tinha insônia e dera em andar de um lado para outro na esperança de descobrir o motivo daquela aflição. “Achava a casa triste... Caminhava da sala pra cozinha e da cozinha pra sala sem pensar em nada”, disse franzindo a boca numa demonstração de dor profunda. “Conte-me tudo!”, implorei.

“Parabéns, dona Bárbara, a senhora está aposentada!”, ela ouviu do gerente de Recursos Humanos. Desde então sua vida mergulhou no mais profundo abismo, na mais agoniada ausência daqueles que não encontrava dentro de casa, ou seja, os passageiros do ônibus. Desesperada com a força daquelas presenças dentro dela ligou a TV em alto volume, tomou longos banhos, perfumou-se, desinfetou a casa, tomou chá de camomila e tentou esquecer. Tudo em vão. A presença dos passageiros dominava os sentidos completamente dominados pela ausência e o cheiro do ônibus. Desligou a TV e foi contemplar os répteis que, apesar de alguns bebês, também haviam envelhecido e quase paralisado de tão gordos. Pela primeira vez achou os animais feios e os enxotou com a vassoura.  O cheiro e as vozes dos passageiros chegaram no pé de vento que escancarou a porta. “Será que só eu não fui”? Vê mais uma noite chegar e o mesmo pesadelo enlouquecê-la: estava no ponto do ônibus e não havia mais ônibus nem passageiros. Entra em pânico. Corre pela rua deserta e não encontra a parada. Está na avenida e não há vestígio de gente. Depois de longos minutos de desespero vê enfim um ônibus que se aproxima. Estende a mão. Entra ofegante e, com o olhar aflito, procura os passageiros. Mas os passageiros não são os mesmos e ela é a única velha no meio do bando de estudantes tagarelas. O celular de um deles alarma. Bárbara pula da cama e percebe que o barulho vinha do próprio celular programado para despertar às quatro da manhã. “Graças a Deus foi um pesadelo!”, disse fazendo o sinal da cruz. “Meu Deus, tá na hora!” Toma banho, corre à cozinha, prepara a marmita enquanto come. Fecha a porta e corre em direção ao ônibus que aponta na rua. Sobe. “Esta cadeira é minha!”, diz à estudante de fones nos ouvidos. A jovem finge não ouvir. Bárbara arranca-lhe os fones e a puxa para fora do assento. Num ímpeto de alegria se acomoda na cadeira que pensa ser a sua. Fecha os olhos e abre as abas do nariz: “são eles!”, diz enchendo os pulmões com o cheiro do ônibus. Queria cantar, pois o prazer que sentia era tal qual o que arrebatou Santa Teresa diante do anjo, gravura que recortara de um livro encontrado no lixo e que mantinha colado à cabeceira. Não sabia dizer o porquê daquela inquietação sentida sempre que mirava à imagem de olhos virados para cima em estado de gozo. Como não sabia cantar abandona-se no canto da poltrona e comprime uma perna na outra e vira os olhos para o céu. O motorista, que parece ter vinte anos, fala ao celular quando engata à banguela e grita: “com emoção ou sem emoção, galera?”. Os estudantes em coro respondem: “é pra fuderrrrrrr...!”, e o ônibus cai da ladeira do gozo...

Ana Barros










domingo, 17 de fevereiro de 2019

À borda do ralo


Não toquei na arte, eu, que tenho os moldes da minha avó-feiticeira. Foi com eles que apaguei os pigmentos da tatuagem de sangue. Tenho lembranças. Elas vêm, desenham e vão embora. É tempo de medo. E vem a necessidade de recorrer à minha avó com seu olho baço de juízo. É a imagem assentada da mulher velha ao pé do fogo em dias de raios e trovoadas que acalma quando ensurdeço ao meu próprio grito. Não encontro sinal a não ser o da minha avó armada de natureza no tempo sem o movimento no qual desmancho. Arrastei-me em confusões nas quais lambi mel e dor. Porém a carcaça expôs o esconderijo das recompensas malogradas: enigmas foram desvelados. Assim se estendeu a paisagem do meu nascimento à morte, da libido encarnada à solidão branca. Não conheci a minha avó jovem. Velha a vi desde sempre e de sua frieza fiz um avatar. Nela, a idade crescida formou encouraçado contra fluxos de mesmo: a minha avó conhecia ressacas... Contudo, bastava vê-la à noite com a varinha a encantar os corvos. Longa intimidade com a minha avó-feiticeira. E se quebro à hora ela reaparece jovem e goza ao dizer: “de novo!”. Aí me faz carregar a pedra acima, rolar a pedra abaixo. Uma pedra com desafio de erguê-la ao cume sem jamais chegar. Uma pedra áspera que me obriga querer peso leve, queda retorno. Subida, descida, ao infinito riacho... Eu: “Saberei frear a liquidez do ralo”? Ela: “Congela. Queima.”. Minha avó, feiticeira e assassina de feitiço. 


Ana Barros
Natal, 10 de janeiro de 2019.




segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Simpatia


Minhas mãos frias percorreram
A calçada com seus guardas noturnos
Você caído a meus pés pedia
Que a sua dor fosse a minha
A mentira escreve à tela do celular
A vida real grita entre nós
O cão dorme enrolado no lençol que é seu
O casaco de lã que ganhei no Natal
Mofa em armário desprezado no quintal
O gelo degela os meus sonhos e
Já não quero casaco no armário velho do quintal
Agora você dorme aquecido e sonha
O cão dorme com o seu cobertor e sonha
Eu volto para casa com os braços nus
E não sonho

Ana Barros
Natal, 30 de outubro de 2018.