quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A cidade e a poeta

A cidade acorda. Passos. Carros. Ruídos. Sol. Tudo se junta num abraço infernal. Queimam os olhos do passante que busca um lugar ameno e sombreado. Tudo fere e se desmancha no fluxo da passagem. Correm. Todos correm. Carros, gentes. Correm e desaparecem... reaparecem e correm na sofreguidão dos segundos que também correm. Trabalhadores, mendigos, loucos, vadios, putas... correm. Viciados de toda ordem perambulam ou se escondem nas ruas dissimuladas e generosas. O passante fecha os olhos, amarga-lhe o fel que oprime a garganta e pensa: “ninguém se suja no mar de lama em que se afoga”. Engole o trago. O sinal abre. Correm, correm, correm todos. Tudo. E de novo reaparecem irmanados, velhos móbiles. O passante para. A fumaça do cano do ônibus entra-lhe nos poros. Gritos de alguém oferecendo felicidade à varejo: padres, evangélicos, sem-teto, ambulantes, políticos, demagogos, todos gritam. Pessoas passam – indiferença.

Mas lá está ela sentada na calçada do prédio antigo e sujo. Prefere locais encardidos e abandonados, como ela. Está sempre lá, debaixo do viaduto, onde o esgoto escorre rio adentro; nas paradas de ônibus, local ideal para acomodar os misteriosos sacos, cheios e sujos ninguém sabe de quê. Mas tem papel e lápis. Cruza as pernas esquálidas e imundas. O rosto, maquiado com crostas de sujeira, assume aspecto nobre de quem sonda o incomensurável.

Poeta, artista... deusa? Segura o toco do lápis com peso metafísico: olha além... Desenha, escreve, rabisca. Folhas e mais folhas vão se amontoando entre os farrapos e o lixo que, presume-se, carrega naqueles volumes. Sempre só e majestosa. Convive com a canalha. Dorme em becos promíscuos e mau-cheirosos. Mas está sempre só no seu mutismo e delírio. Ausente... Ela é indiferente à cidade que borbulha na espuma do nojo. É invisível. Desliza na multidão que ignora, ela, que também ignora.

Ana Barros
Natal, 09/08/99

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Vaidade

Assistia à novela quando
o artista famoso exibiu a glória do ouro
no pescoço nos anéis e nas lindas roupas do Shopping
Me lembrei do buraco
no calcanhar da sua meia branca e suja de um mês
(Sem que soubesse vi e fingi não ver
os fiapos a necrosar o pobre acessório)
Considerei “É do poeta rasgar as vestes e abrir as veias” As suas
tinham tantas fissuras que a camisa de brim azul
balançava ao vento
Mas hoje vi de novo o buraco no calcanhar
da sua meia branca e suja de um mês e você viu que eu vi
e fez o buraco maior

Ana Barros

Últimas sensações de um ateu

“Um sopro

E logo entrarei no Vazio...
Mas enquanto durar
Estou Aqui

Descubro que sinto
Do jeito de ontem
E a foto ao lado zomba de mim
Entretanto, deixou de ser:
Vivo fora do tempo sem Tempo do retrato

Já não falo
Nem ando nem como com as minhas mãos
Deixei de trepar
Mas um sopro
É Tudo

Alguns vieram me ver e lamentam
O que não faz parte de mim
Ah se eu pudesse jogar pra fora este pó...
Mas a boca amolece
E eu esqueço...”

Ana Barros

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Santa Rita: a porta do céu*

Santa Rita: por quê? Pelo distanciamento, pela leveza diante do desconhecido, por ser lugar onde as pegadas e a voz do homem se desmancham com as pedras e as ondas. “Mas existe tal praia”? Ora, se não existisse inventaria com a força da imaginação que vem em momentos de tensão e nos leva ao delírio e aí esquecemos as horas, tocamos pessoas, coisas, pedaços de mundo com a fantasia que se eleva acima do que vive.

Santa Rita entrou em minha vida como um desses objetos que a gente faz questão de conhecer só pelo prazer de descobrir paraíso. Santa Rita seduz pela aura de inocência, melancolia e malícia. Quanto êxtase experimentei ao descer do ônibus às dezoito horas e caminhar lentamente pela faixa estreita de praia que se bifurca com pedras escuras, areia e vegetação selvagem. Instante mágico em que o homem se despede da ação do dia e mergulha na quietude da sombra, sombra que coloca a dúvida sobre a certeza da solidez do mundo ao penetrar sorrateira morros, telhados e consciências.

Sempre procurei chegar em Santa Rita às seis da tarde, hora do recolhimento do que vive, até mesmo do mar que recua dócil em seu leito, de onde podemos ouvir o suave respirar de seu sono. Sublime silêncio: harmonia dos elementos. Pude sentir diante daquelas pedras negras e daquele mar que se cala uma profunda sensação de acolhimento. Durante muito tempo fui a Senta Rita como quem vai ao templo a procura de Deus. Mas lá também encontrei o Diabo, um labirinto aonde pude caminhar, me esconder e adivinhar o feio que ali se deixa arrastar pela inclemência do sol e a indolência das ondas.

Vi de Santa Rita os últimos raios de sol que pincelavam o céu de Genipabu, a coloração avermelhada do oceano que se arrasta cansado nas areias mornas e desertas ou, olhando para o nascente, saboreei a doçura tristonha das ruínas do casarão que é derrubado pela fúria do mar junto ao abandono à ferrugem e ao tempo do fusca de Marcelus Bob e das esculturas efêmeras de Guaraci Gabriel.*

Quando a noite cai em Santa Rita parecemos anoitecer com as pedras e o mundo. Deixamos de existir e já não temos peso algum: o tempo nos esquece, a escuridão nos engole, podemos ver sem os olhos, somos olfato, poros, algo escondido cochicha, sussurra. Há algo que não podemos aprisionar.

Nasce o dia em Santa Rita... e nada sobrevive do sono a não ser o corpo que salta de novo no mundo. Agora é burburinho, areia quente. E quantas vezes o sol vai voltar pra esconder o indizível ao rasgar o céu já sem bruma, expor os corpos, as carcaças, os odores, as dores, os vícios e os gemidos que só o dia desperto escancara e transforma em espetáculo.

Ana Barros
Natal, 13 de janeiro de 1999.




*Porta do Céu foi o tema da megaexposição promovida em Santa Rita, em 1999, por Guaraci Gabriel. Dela fizeram parte vários artistas, da praia e de Natal. Foi um mês inteiro de festa dionisíaca.