A cidade acorda. Passos. Carros. Ruídos. Sol. Tudo se junta num abraço infernal. Queimam os olhos do passante que busca um lugar ameno e sombreado. Tudo fere e se desmancha no fluxo da passagem. Correm. Todos correm. Carros, gentes. Correm e desaparecem... reaparecem e correm na sofreguidão dos segundos que também correm. Trabalhadores, mendigos, loucos, vadios, putas... correm. Viciados de toda ordem perambulam ou se escondem nas ruas dissimuladas e generosas. O passante fecha os olhos, amarga-lhe o fel que oprime a garganta e pensa: “ninguém se suja no mar de lama em que se afoga”. Engole o trago. O sinal abre. Correm, correm, correm todos. Tudo. E de novo reaparecem irmanados, velhos móbiles. O passante para. A fumaça do cano do ônibus entra-lhe nos poros. Gritos de alguém oferecendo felicidade à varejo: padres, evangélicos, sem-teto, ambulantes, políticos, demagogos, todos gritam. Pessoas passam – indiferença.
Mas lá está ela sentada na calçada do prédio antigo e sujo. Prefere locais encardidos e abandonados, como ela. Está sempre lá, debaixo do viaduto, onde o esgoto escorre rio adentro; nas paradas de ônibus, local ideal para acomodar os misteriosos sacos, cheios e sujos ninguém sabe de quê. Mas tem papel e lápis. Cruza as pernas esquálidas e imundas. O rosto, maquiado com crostas de sujeira, assume aspecto nobre de quem sonda o incomensurável.
Poeta, artista... deusa? Segura o toco do lápis com peso metafísico: olha além... Desenha, escreve, rabisca. Folhas e mais folhas vão se amontoando entre os farrapos e o lixo que, presume-se, carrega naqueles volumes. Sempre só e majestosa. Convive com a canalha. Dorme em becos promíscuos e mau-cheirosos. Mas está sempre só no seu mutismo e delírio. Ausente... Ela é indiferente à cidade que borbulha na espuma do nojo. É invisível. Desliza na multidão que ignora, ela, que também ignora.
Ana Barros
Natal, 09/08/99
Conheci a poeta a que se refere o texto.Só lamento da minha covardia;Pois não li nem vi nada do que a mesma escrevia e desenhava.
ResponderExcluirMas lembro da sua nobreza in/munda.E sentia invaja da coragem daquela mulher...ser nobre num mundo imundo.
José Pinheiro Barbosa.