Santa Rita: por quê? Pelo distanciamento, pela leveza diante do desconhecido, por ser lugar onde as pegadas e a voz do homem se desmancham com as pedras e as ondas. “Mas existe tal praia”? Ora, se não existisse inventaria com a força da imaginação que vem em momentos de tensão e nos leva ao delírio e aí esquecemos as horas, tocamos pessoas, coisas, pedaços de mundo com a fantasia que se eleva acima do que vive.
Santa Rita entrou em minha vida como um desses objetos que a gente faz questão de conhecer só pelo prazer de descobrir paraíso. Santa Rita seduz pela aura de inocência, melancolia e malícia. Quanto êxtase experimentei ao descer do ônibus às dezoito horas e caminhar lentamente pela faixa estreita de praia que se bifurca com pedras escuras, areia e vegetação selvagem. Instante mágico em que o homem se despede da ação do dia e mergulha na quietude da sombra, sombra que coloca a dúvida sobre a certeza da solidez do mundo ao penetrar sorrateira morros, telhados e consciências.
Sempre procurei chegar em Santa Rita às seis da tarde, hora do recolhimento do que vive, até mesmo do mar que recua dócil em seu leito, de onde podemos ouvir o suave respirar de seu sono. Sublime silêncio: harmonia dos elementos. Pude sentir diante daquelas pedras negras e daquele mar que se cala uma profunda sensação de acolhimento. Durante muito tempo fui a Senta Rita como quem vai ao templo a procura de Deus. Mas lá também encontrei o Diabo, um labirinto aonde pude caminhar, me esconder e adivinhar o feio que ali se deixa arrastar pela inclemência do sol e a indolência das ondas.
Vi de Santa Rita os últimos raios de sol que pincelavam o céu de Genipabu, a coloração avermelhada do oceano que se arrasta cansado nas areias mornas e desertas ou, olhando para o nascente, saboreei a doçura tristonha das ruínas do casarão que é derrubado pela fúria do mar junto ao abandono à ferrugem e ao tempo do fusca de Marcelus Bob e das esculturas efêmeras de Guaraci Gabriel.*
Quando a noite cai em Santa Rita parecemos anoitecer com as pedras e o mundo. Deixamos de existir e já não temos peso algum: o tempo nos esquece, a escuridão nos engole, podemos ver sem os olhos, somos olfato, poros, algo escondido cochicha, sussurra. Há algo que não podemos aprisionar.
Nasce o dia em Santa Rita... e nada sobrevive do sono a não ser o corpo que salta de novo no mundo. Agora é burburinho, areia quente. E quantas vezes o sol vai voltar pra esconder o indizível ao rasgar o céu já sem bruma, expor os corpos, as carcaças, os odores, as dores, os vícios e os gemidos que só o dia desperto escancara e transforma em espetáculo.
Ana Barros
Natal, 13 de janeiro de 1999.
*Porta do Céu foi o tema da megaexposição promovida em Santa Rita, em 1999, por Guaraci Gabriel. Dela fizeram parte vários artistas, da praia e de Natal. Foi um mês inteiro de festa dionisíaca.
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