quarta-feira, 29 de setembro de 2010

As três mulheres

Duas horas e ainda escuto
sussurros da natureza que vive
lá fora. Na sala de estar
as redes de franjas longas relaxam
mamãe e tia Ló
Dois pares de seios moles se desmancham
debaixo da camisola transparente e
a boca aberta de mamãe mostra a gengiva fina e sem dentes
Há pouco, cochilavam de frente pra televisão e a aura
de vazio que vi sair de seus corpos
dizia solidão de mil derrotas. Sofriam
das fendas da carne consumada. Mas o espírito
desconhecia as inquietações
nas quais naufragara o meu que
lúcido de mim
velava por nós três

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Em si


Aquela velha que encontrei ontem a caminhar
tinha a indiferença de quem viu tudo,
a convicção do real e nenhuma ansiedade mais
Observo a leveza da espinha – passos de ganso...
Andar orgulhoso e grávido dos gestos que ainda não li, pois, em mim,
há vaidade a inquietar nestes dias sem paixão em que
o olho passeia sem ver
Mas aquela velha viu

Ana Barros
Natal, 02/09/03

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A internet e as cabras

Era sempre a mesma sentença: “Estás excluída!” E um dia, lá estava eu de frente para o computador. Naveguei. Li tudo que por hábito selecionaria de um jornal, revista ou livro; desliguei o aparelho. “Mas quê! Já terminaste? És mesmo resistente!” Não compreendi. Aliás, como resistente se desde criança leio tudo o que me chama a atenção? Não era eu um daqueles privilegiados que leem mais de dois livros por ano? Então, resistente a quê? Será que era porque não compreendia imagens? Excluída de que se encontrava meu pensamento contemporâneo e fugaz tanto em meus vizinhos como nos livros, revistas e jornais impressos ou virtuais?
Certo dia, ainda com aquela sensação de que poderia ser uma excluída, fiz uma viagem pelo interior, serra verdejante, perfumada de flores e brotos diversos. Conheci seu Antônio, velho robusto, músculos rijos de tanto rasgar a terra e colher seus frutos. Ao me aproximar diminui o passo e observei longamente aquele homem baixinho, de calção de algodão cru e botinas de couro de vaca nos pés gretados, que se abeirava do chiqueiro das cabras com uma foice numa das mãos. Num salto matreiro, decepou o galho da mangueira e jogou às cabras famintas.
O silêncio ali era diferente, compacto, quebrado apenas pelo balido e o badalar fraquinho dos chocalhos pendurados no pescoço das ovelhas. O mundo se resumia àquele velho e suas cabras; mundo de ausência de tudo o que é civilização e ao mesmo tempo presença mítica de tudo o que promete a civilização. Pois não eram a liberdade e a inclusão, os mais altos valores da sociedade virtual, os mesmos valores daquele velho que tinha como companhia as cabras e o tempo?
Voltei para a cidade rindo dos meus amigos e de mim. Ignorávamos a dimensão das palavras liberdade e inclusão. Aquele velho tinha a inocência e a intuição necessárias à união da parte com o todo; ele era sim um incluído.

Ana Barros
Natal, 16/06/00