sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Homem de família

O momento de chorar já está perdido. É com esse desânimo que chegamos ao fim de Velhice, da coletânea um homem extraordinário e outras histórias, de Tchékhov. Ou será que podemos chamar o pessimismo do pequeno conto de niilismo tardio, uma vez que o tempo para a reparação de um passado, tão fútil quanto seus protagonistas, não encontra mais ressonância na sociedade que emerge?

Velhice aborda de forma irônica a existência de dois profissionais liberais da Rússia do século dezenove, cada vez mais direcionado às novas tecnologias e profissões exigidas pela sociedade burguesa que desponta. O arquiteto Uzielkóv e o advogado Chápkin, são caricaturas fiéis de uma época que conhece os grandes projetos urbanos e às questões jurídicas consequentes de uma população que passa do provincianismo rural à complexidade moderna e ao caos das relações pessoais e interpessoais. Sem perturbação ideológica ou de consciência, preocupação recorrente em Memórias do subsolo, Crime e Castigo e outros romances de Dostoievski, os dois personagens de Tchékhov aderem ao mundo dos novos negócios com audaciosa vontade de enriquecimento, às vezes esquecendo a ética, quando Chápkin deixa-se corromper pelos clientes, sendo um deles Uzielkóv, este, também, sem demonstrar culpa ao subornar o advogado trapaceiro.

POR PURO TÉDIO

A história começa com a chegada do arquiteto e conselheiro de estado Uzielkóv à sua cidade natal para restaurar a igreja do cemitério. Após dezoito anos ele vai reencontrar uma cidade completamente modificada pelo progresso. No entanto, nada se modificara tanto quanto o povo do lugar. Mais da metade das pessoas de quem ele se lembrava já havia morrido, empobrecido ou sido esquecidas. E, sem acolhida afetiva naquela cidade agora estranha, ele resolve, por puro tédio, procurar o advogado Chápkin, velhaco e trapaceiro, como descreve o próprio Uzielkov ao lembrar da fortuna que teve de pagar a ele por seu divórcio. Porém, aqui, um paradoxo: é no reencontro dos dois, agora velhos, bem sucedidos e sem culpas, que o autor ensaia um pálido acerto de contas do arquiteto com o passado deixado para trás há quase vinte anos.

Velhice é importante ainda hoje por tratar da decadência e nulidade das ações do homem, da precariedade das relações afetivas, bem como por mostrar a linha invisível que separa a juventude ativa, irrefletida e bem sucedida, da velhice refletida e impotente diante de um mundo modificado e de um passado que reaparece para atiçar os sentidos negligenciados. É só com a sua chegada à cidade natal e com as lembranças hediondas de Chápkin, que Uzielkóv se dar conta de que é um velho e que havia esquecido algo muito importante: o pedido de socorro da ex-mulher, Sófia Mikháilovna, agora morta. Chápkin, acompanhando o arquiteto ao cemitério, traz à tona o processo do divórcio, ao qual Uzielkóv pagara 15 mil rublos para o advogado subornar e levar Sófia a assumir a culpa pela separação.

Apesar do reencontro ser motivado pelo tédio de Uzielkóv, é com o medíocre Chápkin que o arquiteto vai perceber a si e ao outro como fazendo parte de um jogo que tem um começo e um fim, um fim que vai recomeçar diante dos fatos trazidos ao presente pelo advogado. Mas o fim mesmo, humano e miserável, fica evidente quando, diante do túmulo de Sófia, que simboliza a inocência corrompida, os dois tiram os gorros e expõem a calva brilhante ao sol. É nesse instante que temos conhecimento de que o arquiteto e o advogado são dois velhos. E Chápkin, assumindo sua pequenez diante do outro e pensando na morte, aponta para a cabeça do amigo e diz que por mais repugnante que tenha sido o passado é melhor do que ter cabelos brancos, ou seja, é melhor do que ser velho e consciente disso. Diante das revelações do advogado o arquiteto começa a sentir vontade de chorar, mas se contém junto à única testemunha do seu fracasso.

Um instante depois, Uzielkóv retorna sozinho ao túmulo da ex-mulher e força o choro, que pode ser interpretado como a possibilidade de uma redenção. No entanto, a personagem de Tchékhov é fraca demais para gestos sobre-humanos e, mesmo assim, já é tarde para chorar, o sentimento é nulo. Por mais que o velho piscasse os olhos, por mais que se esforçasse, as lágrimas não corriam, e o bolo não apertava a garganta... Após esperar por uns dez minutos, Uzielkóv fez um gesto de desânimo e foi procurar Chápkin.

SEMELHANÇA

O velho de Tchékhov tem quase dois séculos. No entanto, será que é ele diferente do velho do século atual? Será que os velhos de hoje estão com mais sentido e realizações pessoais? Ou será que os velhos do momento esqueceram de tirar o gorro e ver que os cabelos caíram... ou que ficaram brancos? É neste ponto que a diferença entre estes e aqueles parece mais acentuada.

A revolução científica iniciada àquela época e aprofundada ao longo dos anos mostra hoje talvez não velhos, mas homens e mulheres que desejam a eterna juventude, o eterno prazer, enfim, a eternidade... A medicina, a farmácia, as academias, os cosméticos, os produtos naturais, a moda rompida com o conservadorismo e a moral dos bons costumes, a indústria cultural, do turismo e do entretenimento mais as leis de proteção ao idoso dão uma dimensão positivista e feliz dos velhos e velhas de hoje.

Vendo o momento com os olhos pessimistas de um Tchékhov, não estaríamos vivendo a falsa realidade de ausência de limitações, do falso convívio harmonioso entre jovens e idosos, da liberdade e do hedonismo mundanos para todos quando é sabido que por trás das imagens de velhos sorridentes, enérgicos, felizes e sem rugas nem carecas nem cabelos brancos, há uma realidade, esta sim, concreta, de velhos, que podem até escolher ser felizes e viver bem com a vida, que driblam a existência dura e cada vez mais precária já que é sabido o limite do tempo do homem?

Há uma ideia propagada do velho de hoje, diferente do velho de Tchékhov, que esquece que é mortal, que não pensa sequer que é velho, que usa o eufemismo de melhor idade. E se pensa no passado não é com a intenção de se olhar no espelho do tempo, mas de enterrá-lo de vez evitando assim que reapareça para incomodar. Porém, é esse passado, tão bem cimentado, que saltita impregnado no velho. Este, achando-se eterno, carrega pendurados todos os vícios que o fizeram imaginar poder sobre a vida, o tempo e a morte. Aqui podemos ilustrar com A morte de Ivan Ilitch, de Tolstoi, cuja personagem, o juiz Ivan Ilitch, burocrata fútil, fechado no mundo privado da família, da sociedade e das aparências, enxerga na hora da morte o quanto a sua existência havia sido ridícula.

Voltemos, pois, ao velho advogado de Tchékhov. Lúcido e cínico, e por isso mesmo real e interessante, diz a Uzielkóv: Antigamente eu era de fato um sujeito astuto, um tipo arteiro, ninguém se chegasse... mas agora estou mais quieto que a água, mais baixo que a grama; envelheci, tornei-me homem de família... tenho filhos. É tempo de morrer!

Ana Barros

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Sem personalidade

A caixa de sapatos vazia na estante chamou a minha atenção
para o tempo em que caixa tinha personalidade
E o que guardava uma caixa...
O chapéu de fundo marrom e macio de vovô Chiquinho
ou a camisa de festas de tio Dedé comprada na Casa Sem Nome em Cuité
A do chapéu, alta, redonda e branca, vivia na parte de cima do guarda-roupas
A da camisa, vazia, retangular e colorida, servia de porta-jóia da família
Ter oito... dez... vinte anos era ser eterno...
Ilusão que dava poder aos objetos comprados com o dinheiro da colheita do milho
E a moda passou longe da eternidade dos homens da minha casa...
Mas a caixa em movimento com ou sem o chapéu dentro
mudou de dono, mudou de cor, mudou de forma...
Ao infinito rasgada

Ana Barros

domingo, 15 de janeiro de 2012

(In) corrupto

Sou um egoísta. Não me corrompo nem quando trapaço. O meu valor está lacrado até a sedução amolecer e querer falsamente o outro valor: nem corrupto nem corruptor, porém, um aniquilamento não espontâneo de entendimentos arranjados.
Sou um egoísta orgulhoso. No entanto, um em torno anarco-fluido-mecânico que não quer o outro absorve quem passa... e eu vou e me misturo aos vários e passo a ser dois, três, quatro... Então olho para dentro... a casa está intacta.

Ana Barros

domingo, 8 de janeiro de 2012

Duas

Quis afogar a aura no charco do quintal da minha casa e ali misturar-me ao podre do subsolo, porém, por mais que adentrasse era a aura e não a cloaca que eu procurava com os olhos e as mãos sôfregas, eu, metade abjeta, metade deusa forjada na luz falsa de antes de conhecer o meio escuro e vazio de substância do aro que circunda cabeças ocas como a minha que, sem a ilusão da metáfora que cria coisas, se perde até de novo encontrar a cabeça que feito um grande ímã adere de novo à aura e juntos soçobram no mar de ondas negras movidas por sátiros que riem e dão pulos e formam a espuma que fantasia de palhaço o meu ser sério e ridículo que cambaleia na lama por confiar em demasia em fábulas e sonhos

Ana Barros

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Volúpia

Tremores
e um vocabulário pobre
pra dizer o que em mim é mudo:
Penso com a pele...
Devaneio por lugares múltiplos
objetos quaisquer sem os ver pois a
minha alma vagabunda em repouso olha a
espera do espasmo acontecer
E eis que a mente se transforma
em filme perfumado povoado
de gestos cheiros e sutilezas
que vão eriçar os pelos

Ana Barros

O muro

Quando você me procurou manso e delicado eu maligna e de alma escovada escondi a tristeza que me abria os poros e convidei-o a sentar no monturo da minha sorte. Você nem percebeu que eu jogava com armas dissimuladas: polidez na voz, riso amplo e a falsidade em todos os recantos. Estávamos prontos para o espetáculo do faz de conta quando meu veneno vermelhou seu sangue. Um recuo, uma censura e nós dois em lados opostos: é mau, você disse. Eu disse, não é bom nem mau uma vez que não há. E deixei cair as máscaras odiadas. Com as mãos nos olhos cegos você bateu em retirada sem perceber que eu fundava.

Ana Barros