segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Bibiana

Amarrava a máscara atrás das orelhas quando os três vagabundos se aproximaram de mim: “bom dia, Bibiana... tamo indo pra Tapera beber todas! ”, apressou-se em dizer o mais alegre com o sorriso picotado de cacos podres. Não respondi. Bastava ver nossos pés e cabelos para adivinhar que a palavra era desnecessária.  Porém a cumplicidade não ia além do visual e da camaradagem que tinha com aqueles homens roídos por pulgas e em busca de prazer. Diferente deles eu tinha família, pesadelos e medo de morrer. O trio continuou no caminho da felicidade e eu em direção à Rua da Pedra onde encontraria algo para comer. Voltei rápido: mamãe me vigiava de olhos duros e frios da janela eternamente aberta. “Beber todas!...”, repetia minha cabeça tomada daquele desejo vadio. Abri o armário e avancei na garrafa de uísque de mamãe. Tomei o primeiro trago. O segundo. O terceiro...
“Suba! ” “Agora não! ”, respondo com raiva à voz que me dá ordens suspensa na parede de frente para a escada. Saio apressada e atravesso a rua em direção à feira. Três vagabundos passam por mim bêbados e felizes. Pedem dinheiro: “Vamos beber no Pássaro Azul”. Só pelo nome, “Pássaro Azul! ”, estendo uma nota de 10 reais e me afasto com o pensamento no que eles carregam no saco imundo e cheio até à boca: “só pode ser alguma coisa que promete felicidade sem hora de acabar”. Volto com a bolsa cheia e infeliz. Ao pegar a caçarola no armário para cozinhar as batatas dou de cara com a garrafa de uísque de mamãe, que não mais acordou do último porre... peguei um copo e tomei a primeira dose, a segunda e a terceira. Senti uma cócega abaixo do umbigo... “Alexia, toca um sambinha pra nós! ” Dancei acompanhada da quinta dose. “Por que nunca bebi? ”, pergunto a mamãe, que me observa com os olhos desbotados do retrato. “Se insistir interno você!”, ela me ameaça enquanto bebo a sexta dose acompanhada do refrão “Ser feliz no vão, no triz, é força que me embala” ...
Eu vou com vocês! ”, gritei descendo atrás dos vagabundos. “Bora! ”, respondeu o mais atrevido passando o braço coçado no meu pescoço. Deixei-me levar... O uísque secou mal demos dois goles: “essa merda é água, quero cachaça! ”, exigiu o líder do grupo espatifando a garrafa vazia no poste. Comprei um litrão. Meus companheiros tinham sede. Eu também. De repente o pensamento desapareceu e o mundo encheu-se de grandes bocas banguelas e bêbadas. Foi assim que entramos na festa e nos juntamos a outros vagabundos no que restou da casa abandonada em que costumávamos nos reunir para “beber todas”. Um dos homens acendeu a fogueira e despejou o saco de cheiro podre no chão, agarrou uma tripa branca de vermes e sapecou no fogo. Comemos os pedaços ainda crus com cachaça compartilhada no gargalo. Eu era a única vagabunda naquele banquete em que beber na garrafa e comer carnes podres nos levava ao paraíso. O dia havia amanhecido já ia dar sete horas. O celular repetia sem parar “vagabundo também ama” quando uma garrafa se espatifou nos meus pés. Assustada peguei o papel amarelo de velho no bolso da saia que dizia, “VOLTE NO TREM DAS SETE!", escrito assim mesmo. Faltavam cinco minutos. Corri levando um pedaço de tripa feito tornozeleira pelos rapazes que ficaram para trás entre alucinações e sobressaltos de felicidade...
“Bom dia, menina!, disse o homem quase beijando a minha orelha. “Tem um fósforo que me arranje? ” “Oh, não! ”, lamentei com a vaga impressão de que conhecia aquela voz. Parecia estar à espera de alguém há muito tempo, percebia-se pelo travesseiro e o cobertor dobrados sobre uma mala de couro muito grande. Junto dela, um livro de filosofia oriental que eu tinha visto em algum lugar...  A mala estava tão cheia que o fecho havia se partido e o dono arranjado um jeito de fechá-la com um fino colar de Pedras da Lua que eu jurava ter um igual. Tentei adivinhar o que tinha ali dentro: parecia carregar equipamentos de pintor, mas podia ser livros, roupas... roubos? “Será outro vagabundo? ”, sorri satisfeita já encontrando qualidades no desocupado de barbas longas, roupas muito velhas e óculos de grau grandes demais para o rosto ossudo. De repente, porém, mudei de ideia: “não será carne roubada para uma festa? ”, pensei sem desviar os olhos da mala e de seu dono, que acabava de encontrar o fósforo e tragava de pernas cruzadas um cigarro atrás do outro. Contei cinco antes do trem apitar. Corri para alcançar o vagão deixando para trás o homem e a mala. Ao me acomodar na poltrona, qual foi minha surpresa ao encontrá-lo já sentado bem do meu lado. Sorri para ele, mas ele não correspondeu. “É doido! ” Gostei ainda mais da ideia e fiquei feliz em dividir a poltrona com um doido já que alguma coisa me fazia sentir mais prazer a seu lado do que na companhia dos amigos bêbados. “Será a mala? ”, pensei tomada da agonia em adivinhar o que fazia com que ele continuasse ausente e de cabeça erguida no presente trepidante do trem. Cansada de fazer e desfazer suposições terminei adormecendo ao som triste e longo da buzina ...
“Raul! ”, gritaram vozes agudas vindas do alpendre para recepcionar meu companheiro de viagem. Contei seis mulheres. Ele entregou a mala a uma delas com um “bom dia, meninas! ”, em meio a beijos e afagos. Alguns minutos depois das boas-vindas elas perceberam a minha presença: “Bibiana, até que enfim! ”, disseram entre beijos e com a alegria de quem não me via há muito tempo. “Elas sabem meu nome! ”, pensei surpresa. A casa era coberta com telhas brancas e tinha sete ipês na frente. O movimento de um galho me pareceu esconder algo. Agachei-me para ver o que tinha ali além das árvores, mas nada havia senão folhas e galhos nutridos de verde. Na sala, uma mesinha com uma xícara me esperava: “é para você! ”, disse Raul me entregando o líquido verde com sabor de besouro que bebi de um gole só. Depois de alguns minutos senti meu corpo diminuir e duas asinhas rasgarem as costas. As outras mulheres também tomaram o líquido e passaram pela mesma transformação. Ficamos de frente para a mala aberta. E o que tinha lá dentro? Apitos! Nada mais que apitos.  A mala, que pensei carregar livros, telas, roupas ou carne roubada, estava cheia daqueles objetos barulhentos que desapareceram tão rápido quanto as cigarras nos galhos dos ipês. O sol já era das 17 horas quando começou o concerto, que não durou dez minutos de som estridente. Veio então o silêncio com os apitos mudos e as ninfas que se enfiaram terra adentro...
“Vicente! ”, eu disse abrindo os olhos algumas horas depois. Beijei os lábios do homem feliz e me aconcheguei em seu peito magro. Ele segurou minha cabeça e disse baixinho: “Você voltou...”. Nesse momento o trem ganhou velocidade e desapareceu montanha acima...

Ana Barros
Natal, 30 de maio de 2021.