Amarrava a máscara atrás das orelhas quando os três vagabundos
se aproximaram de mim: “bom dia, Bibiana... tamo indo pra Tapera beber todas!
”, apressou-se em dizer o mais alegre com o sorriso picotado de cacos podres.
Não respondi. Bastava ver nossos pés e cabelos para adivinhar que a palavra era
desnecessária. Porém a cumplicidade não
ia além do visual e da camaradagem que tinha com aqueles homens roídos por
pulgas e em busca de prazer. Diferente deles eu tinha família, pesadelos e medo
de morrer. O trio continuou no caminho da felicidade e eu em direção à
Rua da Pedra onde encontraria algo para comer. Voltei rápido: mamãe me
vigiava de olhos duros e frios da janela eternamente aberta. “Beber
todas!...”, repetia minha cabeça tomada daquele desejo vadio. Abri o
armário e avancei na garrafa de uísque de mamãe. Tomei o primeiro trago. O
segundo. O terceiro...
“Suba! ” “Agora não! ”, respondo com raiva à voz que me dá ordens suspensa na parede de frente para a escada. Saio apressada e atravesso a rua em direção à feira. Três vagabundos passam por mim bêbados e felizes. Pedem dinheiro: “Vamos beber no Pássaro Azul”. Só pelo nome, “Pássaro Azul! ”, estendo uma nota de 10 reais e me afasto com o pensamento no que eles carregam no saco imundo e cheio até à boca: “só pode ser alguma coisa que promete felicidade sem hora de acabar”. Volto com a bolsa cheia e infeliz. Ao pegar a caçarola no armário para cozinhar as batatas dou de cara com a garrafa de uísque de mamãe, que não mais acordou do último porre... peguei um copo e tomei a primeira dose, a segunda e a terceira. Senti uma cócega abaixo do umbigo... “Alexia, toca um sambinha pra nós! ” Dancei acompanhada da quinta dose. “Por que nunca bebi? ”, pergunto a mamãe, que me observa com os olhos desbotados do retrato. “Se insistir interno você!”, ela me ameaça enquanto bebo a sexta dose acompanhada do refrão “Ser feliz no vão, no triz, é força que me embala” ...
“Eu vou com vocês! ”, gritei
descendo atrás dos vagabundos. “Bora! ”, respondeu o mais atrevido
passando o braço coçado no meu pescoço. Deixei-me levar... O uísque secou mal
demos dois goles: “essa merda é água, quero cachaça! ”, exigiu o líder
do grupo espatifando a garrafa vazia no poste. Comprei um litrão. Meus
companheiros tinham sede. Eu também. De repente o pensamento desapareceu e o
mundo encheu-se de grandes bocas banguelas e bêbadas. Foi assim que entramos na
festa e nos juntamos a outros vagabundos no que restou da casa abandonada em
que costumávamos nos reunir para “beber todas”. Um dos homens acendeu a
fogueira e despejou o saco de cheiro podre no chão, agarrou uma tripa branca de
vermes e sapecou no fogo. Comemos os pedaços ainda crus com cachaça
compartilhada no gargalo. Eu era a única vagabunda naquele banquete em
que beber na garrafa e comer carnes podres nos levava ao paraíso. O dia
havia amanhecido já ia dar sete horas. O celular repetia sem parar “vagabundo
também ama” quando uma garrafa se espatifou nos meus pés. Assustada
peguei o papel amarelo de velho no bolso da saia que dizia, “VOLTE NO TREM DAS
SETE!", escrito assim mesmo. Faltavam cinco minutos. Corri levando um
pedaço de tripa feito tornozeleira pelos rapazes que ficaram para trás entre
alucinações e sobressaltos de felicidade...
“Bom dia,
menina! ”, disse o homem quase beijando a minha orelha. “Tem um
fósforo que me arranje? ” “Oh, não! ”, lamentei com a vaga impressão de que
conhecia aquela voz. Parecia estar à espera de alguém há muito tempo,
percebia-se pelo travesseiro e o cobertor dobrados sobre uma mala de couro muito
grande. Junto dela, um livro de filosofia oriental que eu tinha visto em algum
lugar... A mala estava tão cheia que o
fecho havia se partido e o dono arranjado um jeito de fechá-la com um fino
colar de Pedras da Lua que eu jurava ter um igual. Tentei adivinhar o
que tinha ali dentro: parecia carregar equipamentos de pintor, mas podia ser
livros, roupas... roubos? “Será outro vagabundo? ”, sorri satisfeita já
encontrando qualidades no desocupado de barbas longas, roupas muito
velhas e óculos de grau grandes demais para o rosto ossudo. De repente, porém,
mudei de ideia: “não será carne roubada para uma festa? ”, pensei sem
desviar os olhos da mala e de seu dono, que acabava de encontrar o fósforo e
tragava de pernas cruzadas um cigarro atrás do outro. Contei cinco antes
do trem apitar. Corri para alcançar o vagão deixando para trás o homem e a
mala. Ao me acomodar na poltrona, qual foi minha surpresa ao encontrá-lo já
sentado bem do meu lado. Sorri para ele, mas ele não correspondeu. “É doido! ”
Gostei ainda mais da ideia e fiquei feliz em dividir a poltrona com um doido
já que alguma coisa me fazia sentir mais prazer a seu lado do que na
companhia dos amigos bêbados. “Será a mala? ”,
pensei tomada da agonia em adivinhar o que fazia com que ele continuasse ausente
e de cabeça erguida no presente trepidante do trem. Cansada de fazer e desfazer
suposições terminei adormecendo ao som triste e longo da buzina ...
“Raul! ”, gritaram
vozes agudas vindas do alpendre para recepcionar meu companheiro de viagem.
Contei seis mulheres. Ele entregou a mala a uma delas com um “bom dia, meninas!
”, em meio a beijos e afagos. Alguns minutos depois das boas-vindas elas
perceberam a minha presença: “Bibiana, até que enfim! ”, disseram entre
beijos e com a alegria de quem não me via há muito tempo. “Elas sabem meu nome!
”, pensei surpresa. A casa era coberta com telhas brancas e tinha
sete ipês na frente. O movimento de um galho me pareceu esconder algo.
Agachei-me para ver o que tinha ali além das árvores, mas nada havia senão
folhas e galhos nutridos de verde. Na sala, uma mesinha com uma xícara me
esperava: “é para você! ”, disse Raul me entregando o líquido
verde com sabor de besouro que bebi de um gole só. Depois de alguns minutos
senti meu corpo diminuir e duas asinhas rasgarem as costas. As outras mulheres
também tomaram o líquido e passaram pela mesma transformação. Ficamos de frente
para a mala aberta. E o que tinha lá dentro? Apitos! Nada mais que apitos. A mala, que pensei carregar livros, telas,
roupas ou carne roubada, estava cheia daqueles objetos barulhentos que
desapareceram tão rápido quanto as cigarras nos galhos dos ipês. O sol já era
das 17 horas quando começou o concerto, que não durou dez minutos de som
estridente. Veio então o silêncio com os apitos mudos e as ninfas que se
enfiaram terra adentro...
“Vicente! ”, eu disse abrindo os olhos algumas horas
depois. Beijei os lábios do homem feliz e me aconcheguei em seu peito magro.
Ele segurou minha cabeça e disse baixinho: “Você voltou...”. Nesse momento o
trem ganhou velocidade e desapareceu montanha acima...
“Suba! ” “Agora não! ”, respondo com raiva à voz que me dá ordens suspensa na parede de frente para a escada. Saio apressada e atravesso a rua em direção à feira. Três vagabundos passam por mim bêbados e felizes. Pedem dinheiro: “Vamos beber no Pássaro Azul”. Só pelo nome, “Pássaro Azul! ”, estendo uma nota de 10 reais e me afasto com o pensamento no que eles carregam no saco imundo e cheio até à boca: “só pode ser alguma coisa que promete felicidade sem hora de acabar”. Volto com a bolsa cheia e infeliz. Ao pegar a caçarola no armário para cozinhar as batatas dou de cara com a garrafa de uísque de mamãe, que não mais acordou do último porre... peguei um copo e tomei a primeira dose, a segunda e a terceira. Senti uma cócega abaixo do umbigo... “Alexia, toca um sambinha pra nós! ” Dancei acompanhada da quinta dose. “Por que nunca bebi? ”, pergunto a mamãe, que me observa com os olhos desbotados do retrato. “Se insistir interno você!”, ela me ameaça enquanto bebo a sexta dose acompanhada do refrão “Ser feliz no vão, no triz, é força que me embala” ...
Ana Barros
Natal, 30 de maio de 2021.
Natal, 30 de maio de 2021.
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