domingo, 28 de fevereiro de 2016

Um tal de Shakespeare



Tardezinha. De repente o sol morre entre as nuvens negras e carregadas. O vento varre as ruas. Batem portas, janelas. Arrancam árvores e postes da iluminação. A noite precipita-se sobre homens, mulheres e crianças abandonados à vontade indomada do mundo. Mamãe se benze três vezes de frente para o oratório. Acende os lampiões de querosene com os quatro filhos agarrados à saia. Eu, caçula, tremo de medo. Perguntei soluçando a meu irmão mais velho se já era o começo do fim. Ele, vendo o meu espanto, aproveita para me deixar ainda mais aterrada: “claro que é. A primeira vez não foi com fogo, pois, agora é com água”, disse sem se importar com o meu coração domado nos princípios do Catecismo e do Caminho do Céu, os quais eram lembrados todas as noites antes de dormir por mamãe sentada à beira da nossa cama. Purgatório, inferno, diabos, apocalipse, ranger de dentes, palavras carregadas de certeza incontestável e do medo com o qual nossos pais nos mantinham perto deles obedientes e covardes. Mas a minha covardia teve fim quando baixou na cidade um circo cujos atores representavam as tragédias de um tal de Shakespeare. Até então eu só conhecia o filme A Paixão de Cristo, exibido na pracinha no período da Semana Santa, o qual reforçava ainda mais a minha angústia já que as imagens haviam saído dos livros sagrados, únicos na pequena estante improvisada com caixotes de maçã colhidos na feira, estavam agora ali, na tela, com som, sangue, suor, violência e todos os truques necessários à imitação do real. Em vez de ilusões e de sentenças medonhas de além mundo, os atores do circo gozavam de todos e de tudo, não poupando o padre, o rei, a polícia, os políticos, tampouco as famílias nobres, das quais copiávamos lá em casa os exemplos de conduta e castidade, pois meu pai não queria saber de filho ou filha imitando “a ralé”. Fui algumas vezes ver o espetáculo. Fui escondida de meu pai. “Moça de família não vai a circo aprender imoralidades”, dizia ele quando insistia conhecer o palco mambembe. Era ponto final. Mas quando os atores foram embora levando com eles o riso e a dúvida, deixaram em mim também o riso e a dúvida, pois foi aí que conheci um tal de Shakespeare. Paixão à primeira vista.

Ana Barros
Natal, 02 de janeiro de 2015.