segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Odin

A Alysson N. Barros

Segurando o espelho perto do rosto enquanto encenava
o olhar de peixe morto que você disse ser mais civilizado
que esse farol que trago acesso, herança
de saqueadores e horror dos homens disciplinados,
olhei-me demoradamente e não gostei do que vi e
chamei você no canto da sala de jantar onde eram servidos peixes
de olhos contemplativos iguais aos olhos do Cristo
Segurei a sua mão e fiz você sentar na cadeira de frente à travessa
diante da qual os convidados agradeciam de mãos postas e ar sublime
indiferentes a mim que, exilado entre os mortos, quebrei o espelho e
saltei sobre a mesa erguendo a lança em direção às guelras que
se desmancharam em lama Todos inclusive você
tinham os olhos virados para o alto e clamaram à descida do Raio
E antes de ser levado pela correnteza montei o
meu cavalo de oito patas e sangrei o Cordeiro

Ana Barros

domingo, 23 de outubro de 2011

Confidências de um tagarela


Ao fazer doze anos fui enfático: “quero morrer aos cinquenta". Ontem fiz cinquenta e o que me incomodou não foi ainda estar vivo, mas o silêncio do celular que não surpreendeu com a voz feliz dos amigos, “vai comemorar”? Talvez tenham lembrado, porém, conhecia o desprezo deles por tudo que era convenção. E não era por que fazia cinquenta anos que ia ser diferente. Eu é que sou convencional e cheio de entusiasmo pueril, valor desprezível, reconheço, cultivado ao longo de décadas como artifício para tê-los em torno de mim, não por serem meus semelhantes ou coisa parecida, mas por ser, cada um deles, uma vaidade necessária à busca neurótica por discussões intermináveis sobre a mais elementar perturbação que me deixasse com a percepção alterada. Há pessoas que nascem com alguma deficiência e são obrigadas a conviver bem ou mal com as limitações a elas impostas. Pois bem, sou portador de uma deficiência. Apesar de ser física ela é invisível, subjetiva, só eu a conheço, e trato com métodos dialéticos que chegaram a causar mágoas profundas em Ana, tão dócil, mas tão vazia nas horas de argumentar alguma ideia que eu jogava para ela com uma mistura de genialidade e sadismo. Ana calava. Os demais, ao contrário do que agora reconheço como maturidade daquela que soube silenciar o ruído, tomavam a discussão à margem da sensatez e a desconstruíam com requintes de crueldade.  Quantas vezes não contendo a histeria gritei e abandonei a conversa aos prantos. Pouco do que dissera achando ser original e merecedor de consideração por fazer parte da nossa história teve sucesso. Houve um tempo em que não esquecia sequer uma data que achasse interessante para algum de nós. Cheguei a aniversariar duas vezes no ano apenas com o intuito de juntar a turma em torno de vinis de Pink Floyd, garrafas de vinho chileno, maços de Hollywood e das longas conversas provocadas por mim. Em razão do meu orgulho afirmativo, característica detestada por todos que me ouviam, terminava inferiorizando alguém ao redor da mesa. Era quando me faziam frear a língua debaixo de insultos e palavrões. “Vai tomar no cu!”, ouvi muitas vezes tomado de torpor e desespero. Saía magoado e com a certeza de nunca mais encontrá-los. No entanto, foi graças a esses encontros sem afinidades, nos quais por mais que me enturmasse continuava só, que cheguei aos cinquenta e não me matei como planejei ainda menino. “O temperamento ácido te conserva”, dizia meu tio Fidelis para quem o amor joga contra e não a favor. E foi mergulhado no ácido dos egoístas que me deparei com a meia idade e o sumiço dos amigos. Todos desaparecidos. Teriam se cansado do meu hábito deseducado de fuçar entranhas? Enquanto zombei de mim, ateu irônico e sem futuro, meus amigos aderiam à esperança num mundo feliz. Eu estava excluído desse mundo tanto por eles como por mim mesmo. Confesso que fiquei desapontado no início da debandada, tentei esquecê-los. Houve, contanto, uma coincidência dos fatos. Há alguns anos, acho que depois dos quarenta e cinco, passei a não dar mais tanta importância a datas. Talvez o cansaço de sempre ouvir o timbre antipático da minha voz dominando as conversas, reforçando os mesmos conceitos na tentativa vã se atingir os demais, as mesmas impressões que descobria em mim e nas centenas de livros que lia e deles tirava assunto para as discussões febris nas quais somente eu afundava, a descoberta frustrante de que nenhum dos meus amigos, além de não prestar atenção ao que a descoberta representava para nós e de fazerem gozações nas minhas costas, fez com que percebesse que o verdadeiro sentido daquelas reuniões não era a amizade, mas tão somente beber um bom vinho, fumar cigarros importados e provar a comida que eu mandava trazer na Cantina do Português. Não nego as perturbações noturnas nem a vontade de procurá-los e dizer o que pensava de cada um quando percebi que as noites haviam se acalmado e o celular calado, que ninguém mais me procurava, nem mesmo para saborear de graça o rango burguês. “Seria tão bom se me ligassem... São cinquenta anos...”, pensei magoado. Eu era o último a entrar na maturidade. O penúltimo, Antônio, esqueceu que havia nascido só para não lembrar que envelhecera. Porém eu não aguentando o silêncio respeitoso do amigo felicitei-o no dia em que ele resolveu esquecer que havia nascido: “Já encomendou o Viagra?” Ele, óbvio, não ouviu. Não só Antônio, mas Beatriz, a mais velha do grupo, deixou de dizer a idade e fingimos não mais lembrar. Mas comigo foi diferente. Desistido de morrer antes dos cinquenta passei a festejar meu aniversário com o copo de vinho, o cigarro e o silêncio da noite que chega melancólico depois de um dia sem o sinal de quem gostaríamos ouvir bater nossa porta. “Por que não inventei uma festa?” Quis me culpar: “Porra!” Imediatamente, porém, me repreendi por tentar repetir malogros. Afinal, completava meio século e isso era motivo a ser comemorado no porão em que eu me encontrava agora com o tempo vazio e estendido dos ociosos.
Logo que fiz trinta anos, com uma calvície já acentuada e alguns fios brancos, descobri como saída honrosa para o meu fracasso estético entregar-me nas mãos do barbeiro Gabriel, que passou a raspar minha cabeça uma vez a cada quinze dias. Descobri no pequeno intervalo que separa aventura de moral que a fatalidade me atraía e que era impossível conhecer os seus encantos na juventude, quando prazer se limita à ignorância e sexo. “Se algum deles ligasse... Ainda dava tempo de comprar o vinho e a linguiça azeitada do portuga... Bobagem!”, considerei voltando à reflexão de solitário afundado no porão. Percebi aí a vantagem de rastejar com as pulgas na interferência positiva do meu bom humor. Pode ser que o que diga pareça blasfêmia aos ouvidos daqueles que têm horror à banalidade. Pois bem, não saberia existir fora da banalidade. Paulo e Teresa não entenderam a minha escolha cretina e suspeitaram que eu fosse gay. As conjecturas do casal de amigos vieram à memória ao reencontrar minha primeira namorada alguns dias atrás. Ela, divorciada. Eu, solteiro. Se quisesse dar uma resposta à dúvida dos dois seria a chance de afirmar de uma vez por todas a minha virilidade. Aliás, estava velho e ainda só. No entanto, foi aí que entendi por que não casei.
Conservada debaixo de cosméticos e dos disfarces da costura que prolonga a vaidade madura, ela frequentava a Igreja e tinha um casal de filhos a caminho dos trinta. “Que fazer ao lado dela, feliz e sincera, com o meu cinismo? Não e não!” Deixei como estava. Não incomodava nada a dúvida de Paulo e Teresa sobre com quem eu trepava. Até porque, se fosse verdade a suposição dos dois, eu já teria adormecido as pulsões nas noites de insônia nas quais me entreguei aos questionamentos, deles me soltando apenas quando encontrava uma resposta plausível para as inquietações do espírito. Sem me importar com o que pensavam de mim, preocupei-me, sim, com a distância que surgiu entre nós. Algo do tamanho daquela ponte sobre o rio que não temos coragem de atravessar. Não pela extensão desafiadora, mas por receio do que vamos encontrar do lado de lá. E, como eu sei o que tem , todos também sabem o que tem . Assim, melhor desistir.
Nu e de frente para o espelho ergui o saco com a mão e compreendi que as palavras perdem o vigor na mesma corrida que o corpo perde o tesão. Ali estava o exemplo: meus culhões caídos. O consolo era saber que estávamos igualmente com as palavras gastas e os culhões caídos. Isso não queria dizer que meus amigos aceitassem a ruína com a qual passei a ter laços de amor. Melhor mesmo a distância. Evitamos além de percepções constrangedoras indagações inúteis: “vai morrer solteiro?”, “continua pesquisando assuntos inúteis?”,ainda recebe a pensão de teu pai?”, “por que não faz o concurso pra juiz? O salário é 30 mil”...  Mas seria bom ouvir a voz do lado de lá: “vamos comemorar”? Tantas vezes ontem olhei o celular que não vibrou. Sabia que não ligariam. Mesmo assim esperei o dia todo.
Soube que Mauro e Alice se aposentaram do cargo de procurador. Soube ainda que estão sempre viajando pela Europa. Quando não, compram no Shopping onde são vistos carregando sacolas com livros de padre Fábio de Melo e Augusto Cury, garrafas de vinho do Porto e roupas da mesma grife que veste o ministro K. e a esposa Y. Confesso que quando soube pelo Facebook do sucesso de Mauro e Alice senti inveja. Quase adoeci de inveja. Fui ao Shopping em seguida. Queria a felicidade que os dois apresentavam nas fotos da página. Queria a vida jovem e alegre que os dois exibiam no sorriso de dentes perfeitos, sem uma só manchinha senil. Depois de andar pra lá e pra cá, de olhar vitrines e moças em bandos silenciosos de celular em punho, senti os olhos míopes inchados de fadiga, pois havia escondido os óculos na intenção de abordar alguma garota interessada em bater um papo enquanto tomássemos um... “Mas, o que bebe uma garota hoje na companhia de um... velho?”, pensei me sentindo um velho ridículo preso na armadilha daquele templo de pessoas jovens, lindas e maravilhadas. Diminui o passo já sem o menor interesse em encontrar quem quer que fosse para seduzir com as minhas ideias completamente fora de sentido naquele espaço fechado de likes, emojis e kkk. Bastante entediado e louco pra sair correndo dali, estanquei no começo do corredor da praça de alimentação contra a multidão que deixara o celular de lado e corria para os fast food. Foi aí que vi Mauro e Alice numa das filas. Gelei da cabeça aos pés e corri em direção à saída.

Ana Barros
Natal, 23 de outubro de 2011.


sábado, 8 de outubro de 2011

O anjo caído

Para aquele que é atento às contingências do aqui e agora, qualquer objeto, real, imaginário ou abstrato, que cause impacto, ou “espanto,” como quer Ferreira Gullar, logo se transforma em imagens fantásticas do mundo circundante e, conseqüentemente, libertação. A arte representa essa magia do movimento em direção à redenção do trágico, do drama existencial, do caos contínuo e atemporal da condição humana. O vídeo Sampa Graffiti (http://www.youtube.com/watch?v=-IAX1iDoBgk&feature=related), do artista de rua paulistano Cavera, nos gratifica com uma dessas raras demonstrações em arte. “O anjo caído,” stencil aplicado na parede interna de uma ruína da grande São Paulo, é a promessa do gozo dos falidos, dos oprimidos e excluídos de toda sorte. O anjo caído é a Pietá de Cavera. Como ele diz, nem sempre o anjo é uma coisa boa, mas às vezes é a representação da tristeza, do desamparo. O local e atmosfera encontrados pelo artista para deixar a sua inquietação em busca de resposta não podiam ser diferentes das ruínas de casarões onde perambulam os falidos das grandes cidades. O anjo caído de Cavera repete as grandes intuições que falam do mito da hora extrema. Intuição máxima e causadora do mais profundo sentimento de paixão pela dor do homem. Aqui o artista andarilho e cheio de mundo, que vadiou e sentiu todos os lugares e soube bem definir o que elevaria ao máximo da estética, dá um corte, faz sua escolha e transmuta com ela. É um bailado da vida contra a morte. Um bailado do anjo caído contra a negação desse mesmo anjo. O artista, com apenas vinte e três anos, já sabe o que quer da arte: uma afirmação além de qualquer um dos anjos – bom e mau.

Ana Barros

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O amante

A inquietação dá à luz o objeto em si encarnado
Ser vagabundo que surge na figura do amante
Expansão desenhada nas fibras tensas do engano
que ao mais leve movimento é desmonte:
dorme à saciedade do sonho
até o instante da necessidade desejar de novo o
encontro com o filho extraviado

Ana Barros