quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

A lamparina de papai


Depois de dividir os pertences de nosso pai deixamos de lado a luz cega perdida no vazio ocupado por fantasmas que vicejam na escuridão dos mortos. Nenhum dos filhos teve interesse na lamparina velha, negra e com cheiro de sujo. Objeto que, mesmo desprezado pela insignificância estética e monetária, firmava ali presença do defunto apesar de fazer um ano já morto. Jogar fora aquele ser porque não apresentava valor aparente não queria dizer que tivesse perdido as qualidades que seu dono tão bem empregara. Não foi ele que todos os dias deu à luz uma atmosfera plena de religiosidade do corpo e do pensamento que morre antes da noite parir monstros? Nós, seus filhos, não tínhamos qualidades para avaliar cheiro sujo de coisa morta tão somente por exalar o outro que morria junto... Quantas vezes ao longo de décadas a lamparina fora única luz a vazar o nada nas paredes caiadas de sombras e seus espectros à espera do sol de outro dia? A lamparina continuou esquecida embaixo da pia junto aos resíduos que seriam jogados fora, entregue ao tempo que resolve acender – e apagar. Um ano e volto a encontrar a lamparina de papai ainda a guardar o pavio do qual subiram ao céu vazio espirais de corpo e alma.





Ana Barros
Natal, 26 de janeiro de 2015 (concluída em 28/02/2018).



quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Boca de Siri


Não sou dado à culpa, tampouco a arrependimento. No entanto, tem acontecimentos ordinários do dia a dia de um homem que não lhe saem da cabeça, principalmente se serviram para inflar sua vaidade e poder. Apesar de ter objetivos calculados na razão útil, isso não impede que decisões analisadas à luz da culpa e do castigo me persigam sem jamais ter pensado expiá-las. No confuso emaranhado de vozes a forçar lembranças repugnantes penso: como podem duas putas chafurdar o meu sossego com algo tão insignificante quanto uma Portaria? Pois bem, Lindalva e Lindaura conseguiram a façanha de me fazer carregá-las no sexo e no juízo apesar das ameaças de minha mulher, que jurara botar-me chifres com outro caso descobrisse vestígios de mulheres em minha vida, conhecimento esse nunca realizado. Porém, apesar de jamais ter sabido algo que manchasse o meu desempenho de esposo honrado e fiel, ela fez em idade já avançada o que mais cuidou de combater em mim a vida toda, assunto do qual falo adiante.

Mulungu tem pouco mais de cinco mil habitantes. A população decidiu me eleger prefeito, pleito que ganhei com maioria esmagadora graças o empenho do Coletivo Esposa Fiel. A fatura da nobre militância dessas senhoras altruístas veio a galope do vento e, como primeiro ato de minha administração, o Coletivo exigiu que expulsasse da cidade Lindalva e Lindaura, mãe e filha, as duas, putas odiadas por serem jovens, belas e pobres, motivos pelos quais a casinha de dois vãos da Rua das Mariposas acolhia os maridos entediados a procura de cheiro menos azedo que os de suas alcovas. Cheiro que Lindalva e Lindaura tinham nas mãos, nos cabelos e na pele rosada, poupadas que eram do sabão e do fogo, elementos ausentes nos cômodos perfumados e decorados com profusão de imagens de galãs de telenovela, santos trazidos pelas duas quando viajam em penitência ao Juazeiro do Padre Cícero, e frascos de lavanda coloridos e vazios que davam ao ambiente uma atmosfera cambiante e prazerosa aos olhos opacos e cansados dos homens de negócio que ali buscavam vigor. O trabalho delas era ficar lindas e cheirosas à noite e lânguidas no correr do dia de seus homens ocupados, mas, sobretudo ansiosos pelo prazer que desfrutariam dali a pouco junto às mulheres que tudo fazem para compreender e agradar.  Mesmo com todo dengo a mim dispensado por Lindalva e Lindaura, às quais, por economia das palavras quando trazia as duas no colo, passei chamar carinhosamente Lindu, ainda que eu quisesse não podia voltar atrás na promessa feita às senhoras de bem de Mulugum. Minha esposa encabeçara o movimento e dissera dedo em riste em direção a meu nariz: “dormirá no sofá a partir de hoje se eu encontrar aquelas putas desfrutando meu espaço!”. Sem saída, mandei Boca de Siri, cabo eleitoral de minha confiança, com 20 anos menos que eu e fiel feito um capacho, apanhar a tralha das duas putas e deixá-las nalgum lugar onde a tolerância permitisse gozar e viver de gozo. Alguns dias se passaram da decisão de mandar embora as duas mulheres quando, por meio de um mensageiro, encontrei Boca de Siri na esquina da pracinha com a Igreja, lugar insuspeito para aqueles que tramam à luz do dia. Sem que ninguém testemunhasse paguei-lhe o frete e recebi dissimuladamente o endereço que havia escrito num pedaço de papel. Antes que alguma senhora do Coletivo testemunhasse saí dali a passo largo e olhando dos lados. Deixei passar uns dois meses até o assunto esfriar na sala de jantar de minha casa e nos bancos da Igreja na qual o Coletivo se reunia, para ir ter com Lindu.  E qual foi minha surpresa ao entrar na casa de luz rosada e encontrar alguns correligionários endinheirados de Mulungu na maior algazarra com as protegidas de Comadre, nome da anfitriã, a qual todos tratavam com a reverência dispensada à madrinha de uma filha muito amada, atenção que a dona da casa sabia reconhecer ao escolher o melhor para o deleite de seus compadres. Cumprimentei todos e me juntei aos demais que bebiam na grande mesa, cada um, com a sua menina no colo. Aconcheguei Lindu, cada uma numa perna, como se fossem as minhas pombinhas recapturadas. A menina tinha os olhos baixos da virgem que protege a pureza no decote de gola alta. Mas só mais tarde soube que minha observação estava equivocada, que não havia pureza nenhuma e que Lindaura sofria por outro motivo jamais imaginado por quem quer que fosse. Motivo sabido e escondido por Lindalva desde que descobrira na filha certas preferências não convencionais de sexo quando ia com as demais companheiras de casa tomar banho de rio. Falarei disso com mais detalhes adiante, uma vez que requer tempo para chegar ao acontecido.  

Para compensar a frieza da filha apoiada em meus joelhos como uma pedra de gelo, a mãe alisava meus cabelos e dava tapinhas na minha mão atrevida que, incontinente, buscava dois peitos que saltavam do sutiã armado de aspas metálicas. Ah, o sutiã de aspas de Lindalva...  Não foi o pudor de anjo raivoso flagrado no semblante infeliz de Lindaura, nem a boca vermelha de Lindalva que me fizeram estremecer. Ao tocar de leve a ponta dura do sutiã da minha amante tive a louca impressão de que era Quitéria quem estava ali nos meus braços. Quitéria, a puta mais antiga e mimada de Mulungu. Seu rico protetor havia dado a ela a casa na qual morava sozinha, recebia seu homem a qualquer hora do dia ou da noite, tanto só como na companhia de comerciantes e autoridades do lugar. Aliás, padre Ambrósio era viciado em tomar xícaras e mais xícaras de café com biscoitos finos trazidos de João Pessoa pelo amante de Quitéria, a quem os homens invejavam a riqueza e a linda mulher de peitos empinados.

Contava 17 anos, muitas espinhas no rosto e punhetas fantásticas em intenção daqueles frutos duros presos no acessório mais depravado de Mulungu. Quantas vezes passei prá lá e prá cá em frente à janela estreita que emoldurava a moça de cabelos pretos e descidos em caracóis só para apreciar aqueles peitos em ponta? Mas só um homem tinha o privilégio de fazer o que os meus pensamentos de menino imaginavam debaixo do chuveiro. O homem de Quitéria chama-se Jeremias Fortuna, dono da mais sortida loja de tecidos de Aroeiras, cidade de comércio próspero e de tradição católica, que não admitia um homem da estirpe de Jeremias manter em seu território uma teúda e manteúda, no caso, Quitéria. Distante de Mulungu 50 quilômetros e com a remota possibilidade da esposa descobrir sua infidelidade, Jeremias Fortuna instalou a menina em Mulungu, cidade com a qual mantinha relações comerciais e de grande respeito junto aos políticos, ao clero e ao populacho cujos filhos davam por afilhados ao casal de amancebados, alcunha com a qual as beatas se referiam aos dois amantes na hora de batizar as crianças com a conveniência do padre. “Psiu!”, fazia este de olho arregalado e indicador nos lábios em direção às carolas que tentavam repreender a concessão do religioso ao casal de excomungados. Aliás, a Igreja de Santa Madalena foi toda reconstruída com doações generosas de Jeremias Fortuna que, por ser rico, pertencer à maçonaria e colecionar amizades importantes, impôs o respeito que a sociedade de Mulungu devota a Quitéria, igualando-a às senhoras de bem. Até mesmo minha mulher, primeira dama e idealizadora da campanha para expulsar Lindu, o que, reconheço, me levou a ocupar a cadeira de prefeito, admirava e invejava os tecidos florais e as sedas importadas exibidas pela puta de Jeremias Fortuna. “Puta não!”, gritava indignada minha senhora a quem duvidasse da reputação de Quitéria. “Puta são aquelas vagabundas que botei pra correr daqui. Quitéria é uma mulher digna, de família humilde, que soube conquistar um homem rico e bom.” No fundo eu sabia que a minha mulher era também uma “Quitéria”, suspeita que, confesso, jamais parei para averiguar as possibilidades. Aliás, ela fora sempre tão virtuosa... Mas deixemos isso pra lá, o que importava naquele momento era manter as meninas longe dos eleitores, longe do Coletivo. Apesar de não ser possível apagar da memória o meu primeiro ato administrativo, tinha a consciência tranquila em relação ao bem estar das duas protegidas. Dei um cargo de confiança a Boca de Siri, cujo salário de seis mil reais, ordenei, dividisse com as duas mulheres até o dia em que eu fosse prefeito. Porém uma história que começa às escondidas tem tudo para se desdobrar noutros esconderijos. E foi justamente no quarto mais escondido da casa de Comadre que vi a história de Lindaura recomeçar de um novo ângulo. O ângulo imposto pela natureza indefinida que se abre inteira e amoral.

Quinze anos se passaram dos meus três mandatos de prefeito. Depois de passar o cargo à minha mulher, que já conta com dois mandatos, concorri à Câmara de Deputados em Brasília. Já estou no segundo mandato, trabalho distante de Mulungu, o que toma todo o meu tempo com recepções a prefeitos e vereadores do meu partido não deixando folga para os prazeres com Lindu, as quais fazia questão de mantê-las como minhas meninas na casa de Comadre. Não as esqueci nem um só dia, mesmo sob a vigilância do Coletivo que se tornara sistemática ao ponto de todas as minhas senhas nas redes sociais serem controladas por minha mulher, que continuava, há décadas, presidente do grupo. Mas graças a Boca de Siri, que levei comigo para assessorar assuntos de ordem íntima, triplicando o salário de seis mil para 15 mil reais, o que dava uma mesada generosa de 10 mil reais para as duas protegidas que mandei esconder em Aroeiras, quis fazer uma surpresa às meninas depois de quase dois anos sem pisar o chão da casa de Comadre. Isso não quer dizer que não a recebesse em meu gabinete na companhia de suas afilhadas em longas audiências regadas a gargalhadas, carícias e uísque falso comprado por Boca de Siri, com minha ordem, na feira do Paraguai.

Meu jatinho sobrevoou primeiro Mulungu. Queria ver minha casa, sondar de cima se as senhoras do Coletivo rondavam as cercanias. Ou seja, não queria correr o risco de ver minha candidatura cair em desgraça por causa de duas putas. “Estranho, nenhuma janela aberta... Será que minha mulher viajou... mas sem me avisar? Está a me esconder algo, Boca de Siri?” Pergunta inútil uma vez que dali não saía nada, mesmo se soubesse. Deixei de lado a preocupação com o deserto da minha casa e seguimos em direção a Aroeiras. Dei um jeito de me aproximar sem ser visto. Escondemos o jatinho num matagal conhecido de colegas deputados pelo pouso clandestino ali aberto por jagunços e entrei pela porta dos fundos que dava para o quarto escondido, construído por ordem minha à Comadre, no qual era certo encontrar Lindu à minha espera. E foi naquela noitinha de muitos cuidados e saudade que a história entre mim e as duas rolinhas, que estavam agora mais pra galinha que rola, tomou rumo diferente. Abri a porta do quarto e dei de cara com a minha mulher, nua e enroscada numa pessoa que eu não sabia se era homem ou se era mulher. “Que diabo é isso?”, gritei acendendo as lâmpadas. As duas criaturas, sem pressa nem constrangimento, me olharam de mãos dadas, como a proteger uma a outra, e disseram que dali em diante eu estava fora daquela cama. “Mas quem é você? Como se atreve botar galhos em minha cabeça?”, perguntei sacando a pistola, ao que Boca de Siri, Comadre e Lindalva, que ouviram os gritos e correram até o quarto, me dominaram fazendo a arma rolar pra debaixo da cama. “Não me reconhece painho?”, perguntou com requintes de ironia e deboche o rapaz de fala fina que parecia ter uns 30 anos menos que a mulher de peitos e bunda sumidos em sacos de pele seca. “Você!...” “Sim, agora me chamo Luis!”.

O quarto tinha cortinas rosa descidas até o piso, o que dava uma atmosfera feminina tranquilizante, almofadas de oncinha em toda a extensão da cama e um cheiro familiar de Malbec que me fez acordar e sentir que estava em casa. Um alívio tomou conta de mim ao perceber que estava vivo... “Boa tarde, meu deputado! Que bom que acordou... Trouxe o café com tudo o que sua excelência gosta.” Reconheci a voz quente e rouca e fiquei feliz por não ser nem da minha esposa nem de Lindalva ou Lindaura, aliás, Luis... “Meu Deus, Luis!” Comecei a soluçar de desgosto e raiva. Boca de Siri, delicado e amoroso como a amante que disputa com as demais a atenção exclusiva de seu homem, trouxe imediatamente o estetoscópio, que eu havia lhe dado de presente quando fizera o curso prático de enfermeiro, e verificou a minha pressão. “Doze por oito... Melhor não pode estar!”, disse sorrindo meu assessor para assuntos íntimos. Já que estava em excelente estado físico, pedi para que colocasse a peruca vermelha e o maiô rosa Pink. “Pois não, meu deputado”, disse Boca de Siri simulando uma gazela em seu físico musculoso e grande ao se dirigir ao guarda-roupa que eu havia mandado fazer especialmente para ocasiões como aquela em que eu ficava muito deprimido. “Quero que você me dê uma daquelas massagens na sauna... Não temos pressa pra terminar... A Câmara que espere!” “Uau!”, fez Boca de Siri já de peruca e estremecendo de cima a baixo diante do grande espelho em frente à nossa cama.

Ana Barros                                  
Natal, 11 de fevereiro de 2018.