Depois de dividir os
pertences de nosso pai deixamos de lado a luz cega perdida no vazio ocupado por
fantasmas que vicejam na escuridão dos mortos. Nenhum dos filhos teve interesse
na lamparina velha, negra e com cheiro de sujo. Objeto que, mesmo desprezado
pela insignificância estética e monetária, firmava ali presença do defunto
apesar de fazer um ano já morto. Jogar fora aquele ser porque não apresentava valor aparente não queria dizer que tivesse
perdido as qualidades que seu dono tão bem empregara. Não foi ele que todos os
dias deu à luz uma atmosfera plena de religiosidade do corpo e do pensamento
que morre antes da noite parir monstros? Nós, seus filhos, não tínhamos
qualidades para avaliar cheiro sujo de coisa morta tão somente por exalar o
outro que morria junto... Quantas vezes ao longo de décadas a lamparina fora única
luz a vazar o nada nas paredes caiadas de sombras e seus espectros à espera do
sol de outro dia? A lamparina continuou esquecida embaixo da pia junto aos
resíduos que seriam jogados fora, entregue ao tempo que resolve acender – e apagar.
Um ano e volto a encontrar a lamparina de papai ainda a guardar o pavio do qual
subiram ao céu vazio espirais de corpo e alma.
Ana Barros
Natal, 26 de janeiro de
2015 (concluída em 28/02/2018).
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