domingo, 12 de novembro de 2017

Não é dos bode


Temente a Cícero e fiel cumpridora da obrigação de visitar uma vez no ano o Juazeiro do santo padre, Moça Velha faz questão de repetir para todos que entram em seu bazar, o qual ostenta o nome da moça de 81 anos numa tábua velha de jatobá, que aquele negócio não “é dos bode”. Enquanto reflete a declaração espontânea da proprietária, o cliente conhecedor de segredos de “bode” logo percebe entre as quinquilharias da loja uma estátua de gesso branca do senhor de batina, chapéu de grandes abas e cajado na mão direita. “Mas que conversa é essa de não “é dos bode”, Moça Velha?”, perguntou certa vez o cliente alheio à senha, que entrara para comprar uma imagem de santo Antônio dos Encalhados. Este, jamais fora benevolente com os pedidos daquela moça, sequer consentiu a ela sentir o friozinho de um beijo correndo cintura abaixo. “Você não sabe?!”, ela disse em tom de assombro e incredulidade. “Sei não...”, arrastou o interessado em conluios com o santo dos solteirões. “Eu também nada sabia dessa conversa até receber aqui uns tempos atrás Antônio de Dedé, sabe? aquele...!” “Sim, sei!”, respondeu o cliente torcendo a boca de lado, gesto de quem conhece algumas intimidades de Antônio de Dedé e por elas não tem nenhuma simpatia. “Aquele poeta que as línguas sebosas”, ela carregou bem no “línguas sebosas” dando a entender que se dirigia ao cliente, “dizem receber Lampião todas as noites pra tramarem juntos a expulsão do inquilino que se apossou do cabaré da Peia Mole. Que isso morra aqui, viu!?”, diz em tom de ameaça e à boca miúda. “Pois bem, foi ele quem me contou que no Juazeiro a loja que não tem um troço de meu Padrim Ciço é tida como “dos bode”, e ali romeiro não entra!” “Explique melhor, minha linda Moça”, pediu o comprador de santo Antônio puxando o tamborete para demorar-se na prosa que corria frouxa e cabulosa. “Não sabe? Bode é o demo, o chifrudo de pata rachada!”, disse num cochicho carregado de medo como se a entidade do mal pudesse ouvi-los. “E quem é tido à imagem do bode pelos afilhados de meu Padrim Ciço? Os de lá,” disse Moça Velha apontando para o outro lado da rua, na qual se avistava espremida entre a bodega de Sebastião de Rita e a banca de jogo do bicho de Severino de Dadá, o acanhado e único templo dos evangélicos da cidade. O cliente, sem conter o espanto, se levanta do tamborete num impulso de macaco, coloca as mãos nos quadris e quase grita em tom de censura: “mas eu sempre vejo Moça Velha a caminho da Igreja aí da frente...”, observa sem entender o porquê da estátua do padre Cícero na loja de uma evangélica. “Oxe! se assunte homi!”, devolve a moça levantando-se também e com o dedo em riste. “Você acha que eu vou perder freguês? Pense comigo: se o romeiro não entra na loja que não tem alguma coisa do meu Padrim Ciço, nem mesmo um retrato do santo, por ser o negócio “dos bode”, eu aqui faço diferente. Tenho a minha imagem e não afasto ninguém, nem mesmo o senhor, meu cumpade, que de dia enche o saco de Santo Antônio com pedidos de casamento, e de noite vira Pomba Gira no terreiro de Pai Arco-Íris.

Ana Barros
Natal, 08 de novembro de 2017.