Temente a
Cícero e fiel cumpridora da obrigação de visitar uma vez no ano o Juazeiro do
santo padre, Moça Velha faz questão de repetir para todos que entram em seu bazar, o qual ostenta o nome da moça de 81 anos numa tábua velha de
jatobá, que aquele negócio não “é dos bode”. Enquanto reflete a declaração
espontânea da proprietária, o cliente conhecedor de segredos de “bode” logo
percebe entre as quinquilharias da loja uma estátua de gesso branca do senhor
de batina, chapéu de grandes abas e cajado na mão direita. “Mas que conversa é
essa de não “é dos bode”, Moça Velha?”, perguntou certa vez o cliente alheio à
senha, que entrara para comprar uma imagem de santo Antônio dos Encalhados. Este,
jamais fora benevolente com os pedidos daquela moça, sequer consentiu a ela sentir o friozinho de um beijo
correndo cintura abaixo. “Você não sabe?!”, ela disse em tom de assombro e
incredulidade. “Sei não...”, arrastou o interessado em conluios com o santo dos
solteirões. “Eu também nada sabia dessa conversa até receber aqui uns tempos
atrás Antônio de Dedé, sabe? aquele...!” “Sim, sei!”, respondeu o cliente
torcendo a boca de lado, gesto de quem conhece algumas intimidades de Antônio
de Dedé e por elas não tem nenhuma simpatia. “Aquele poeta que as línguas
sebosas”, ela carregou bem no “línguas sebosas” dando a entender que se dirigia
ao cliente, “dizem receber Lampião todas as noites pra tramarem juntos a
expulsão do inquilino que se apossou do cabaré da Peia Mole. Que isso morra
aqui, viu!?”, diz em tom de ameaça e à boca miúda. “Pois bem, foi ele quem me
contou que no Juazeiro a loja que não tem um troço de meu Padrim Ciço é tida como “dos bode”, e ali romeiro não entra!”
“Explique melhor, minha linda Moça”, pediu o comprador de santo Antônio puxando
o tamborete para demorar-se na prosa que corria frouxa e cabulosa. “Não sabe?
Bode é o demo, o chifrudo de pata rachada!”, disse num cochicho carregado de
medo como se a entidade do mal pudesse ouvi-los. “E quem é tido à imagem do
bode pelos afilhados de meu Padrim Ciço?
Os de lá,” disse Moça Velha apontando para o outro lado da rua, na qual se
avistava espremida entre a bodega de Sebastião de Rita e a banca de jogo do
bicho de Severino de Dadá, o acanhado e único templo dos evangélicos da cidade.
O cliente, sem conter o espanto, se levanta do tamborete num impulso de macaco,
coloca as mãos nos quadris e quase grita em tom de censura: “mas eu sempre vejo
Moça Velha a caminho da Igreja aí da frente...”, observa sem entender o porquê
da estátua do padre Cícero na loja de uma evangélica. “Oxe! se assunte homi!”,
devolve a moça levantando-se também e
com o dedo em riste. “Você acha que eu vou perder freguês? Pense comigo: se o
romeiro não entra na loja que não tem alguma coisa do meu Padrim Ciço, nem mesmo um retrato do santo, por ser o negócio
“dos bode”, eu aqui faço diferente. Tenho a minha imagem e não afasto ninguém,
nem mesmo o senhor, meu cumpade, que
de dia enche o saco de Santo Antônio com pedidos de casamento, e de noite vira
Pomba Gira no terreiro de Pai Arco-Íris.
Ana Barros
Natal, 08 de novembro de 2017.
Natal, 08 de novembro de 2017.
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