segunda-feira, 8 de março de 2021

Cocada

 

Havia algum tempo não via Cocada, aliás, Dr. Geraldo. Entramos na faculdade no mesmo ano. Ele, psicologia. Eu, Letras. Com o diploma na mão desaparecemos no mundo dos normais e não mais nos vimos. Naquele dia, porém, esbarrei nele no corredor da clínica em que tinha consulta marcada para tratar uma úlcera: café e cigarro em dose alta. Tomei o cuidado de não chamá-lo “Cocada”. Ficaria furioso, por motivos óbvios. Ficamos felizes com o encontro e terminei levado por meu amigo à sala em que atendia: era psicoterapeuta. Havia quinze pacientes à espera. Depois de uma hora sentado na recepção, me fez entrar. A conversa correu rápida, longa e maçante ao ponto de eu bocejar algumas vezes e, involuntariamente, procurar o cigarro deixado de lado enquanto cuidava da ferida no estômago. Mas meu amigo estava satisfeito. Falava altivo e confiante. Transpirava perfume caro e testosterona no corpo malhado em máquinas. Porém, antes de qualquer fala, fez questão de aniquilar algum vestígio de vaidade que porventura ainda houvesse em mim. Olhou meus dedos manchados de nicotina e a fraqueza muscular ao me sentar à sua frente e disparou: “nossa, meu velho, você está uma desgraça... Mas pode melhorar com análise”. Achei melhor sorrir e guardar comigo os psicólogos com quem eu mantinha longas análises página à frente de página. Todos com vícios mais nojentos que os meus. E eram - psicólogos. Depois de alguns segundos em silêncio analítico sobre meus dedos sujos, desatou a falar com o conhecimento de homem bem sucedido. De minha parte, quase nada tinha a dizer ao amigo realizado. “E aí, Antônio, em quantas escolas você dá aulas?”, perguntou girando na cadeira atrás de uma bancada sobre a qual se destacavam duas fotografias: uma com a mulher em frente à torre Eiffel e outra com um casal de adolescentes na casa do Mickey. “Em duas”, eu disse sem interesse em levar o assunto adiante. Achei que fosse o suficiente para satisfazer a sua curiosidade em desnudar meu fracasso. “Como sobrevive só com isso? Casou também?”. “Sim. Também tenho mulher e filhos”, eu disse sem responder como sobrevivo. “Acabei de chegar da Europa. Veja que fotos maravilhosas...”, acrescentou exibindo o álbum no celular no qual ele e a mulher vestem grifes famosas. Ora em parques e museus, ora em restaurantes. “Já fez uma viagem ao exterior, Antônio?”“ Oh, não...”, respondi devolvendo o telefone. “Pois é amigo”, observou jogando-se para trás na cadeira de encosto imperial, “se continuar só com as aulinhas em duas escolas jamais irá à Europa.” Abanei as mãos num gesto de desprezo e fiz menção de levantar-me. Ele, num pulo sobre os meus ombros, me fez sentar outra vez e continuou com a superioridade dos vencedores: “Tenho muitos pacientes. Trabalho aqui e mais duas clínicas. Atendo 45 pessoas todos os dias.” “É mesmo? Até à noite você tem sessões”, perguntei espantado. “Sim, tenho. Ralo muito, meu velho... Se não, como pagar condomínio, prestação do carro que acabei de trocar, escola dos garotos, restaurantes, férias na Europa?...”, ele disse e fechou o álbum. “Graças aos 30 minutos de análise posso faturar um bocado”, acrescentou regulando o tempo no monitor para o próximo que entraria com a minha saída. Pensei no que eu diria numa sessão de meia hora e perguntei se ele tinha resultados positivos numa terapia de tempo tão curto. “Isso não importa, meu velho. Sou contratado para cumprir metas. E cumpro”, disse jogando mais uma vez o tronco para trás no encosto imperial. Foi então que percebi que ele vestia jaleco azul com o nome do plano de saúde para o qual trabalhava bordado de amarelo junto ao seu, Dr. GERALDO, assim mesmo, em caixa alta, na gola. Mas o quê, Cocada era um empregado e tinha patrão? Não era ele dono do próprio negócio? Cocada era um servidor e tinha obrigações como qualquer servidor obediente: não feder, não ter vícios e manter o nome da empresa no alto da gola. Não consegui conter o riso... “Qual o motivo?”. “Oh, nada em especial...”, respondi e mudei o assunto: “Você tem notícias de Geórgia?” “Ah, pobre Geórgia... Abriu uma loja de designer... Você não conheceu?”, perguntou estupefato com a minha ignorância sobre interiores no período das “vacas gordas”, do qual guardava lembranças de alto padrão.  A Casa VerdeamarEla foi um luxo na Av. Saissem Riaj. Frequentada só pela nata. Tive a felicidade de contratar os serviços dela e decorei meu apartamento com peças de R. B., top entre as celebridades. Você conhece R. B., não?”, perguntou com a ênfase dos endinheirados de bom gosto. “Sim, conheço...”, eu disse sem emitir juízo de valor sobre o artista cafona cujas reproduções podiam ser encontradas em qualquer esquina.  Sem dar importância à minha resposta, franziu a testa e lamentou: “Depois da crise ela teve que fechar as portas. Agora, se eu quiser um objeto diferenciado, tenho que mandar vir de Miami.” “Bela menina… Trocamos carinhos naquela escadinha da faculdade de arquitetura...” Tomava gosto em falar com Cocada: “pensei em me casar com ela, mas jamais Geórgia quis algo sério comigo”, lembrei procurando o cigarro ausente no bolso. “Tu lembras do fusca rosa que ganhou do pai e que nos levava pra cima e pra baixo nas festas dos bacanas?” De repente veio à tona o porquê de ela não me querer: “Ai, Antônio... Se me casar com você serei sempre pobre... morar na periferia... andar de ônibus...”, disse ao mostrar-lhe um par de alianças de prata que eu havia roubado de um hippie peruano. “Sabe por onde ela anda?” “Ah, nem vai acreditar...”, ele disse cheio de pena. “Depois de falida, abriu duas lojinhas de bugigangas no Bairro do Mircela,” acrescentou com tristeza. Porém, imediatamente disse alto e sem qualquer constrangimento: “Não compro essas bostas da China. Que faça o favor de não vir aqui me oferecer essas merdas. Detesto comprar porcarias por compaixão”, disse batendo três vezes a palma de uma mão na outra palma e concluiu: “Que fique longe de mim.” Levantou de supetão. Fiz o mesmo. Abriu a porta e quase me jogou para fora: “adeus, Cocada!”, gritei com a ferida do estômago.

Ana Barros 

Natal, 14 de dezembro de 2019.