Não
sou dado à culpa, tampouco a arrependimento. No entanto, tem acontecimentos
ordinários do dia a dia de um homem que não lhe saem da cabeça, principalmente
se serviram para inflar sua vaidade e poder. Apesar de ter objetivos calculados
na razão útil, isso não impede que decisões analisadas à luz da culpa e do
castigo me persigam sem jamais ter pensado expiá-las. No confuso emaranhado de
vozes a forçar lembranças repugnantes penso: como podem duas putas chafurdar o meu sossego com algo
tão insignificante quanto uma Portaria? Pois bem, Lindalva e Lindaura conseguiram
a façanha de me fazer carregá-las no sexo e no juízo apesar das ameaças de
minha mulher, que jurara botar-me chifres com outro caso descobrisse vestígios
de mulheres em minha vida, conhecimento esse nunca realizado. Porém, apesar de
jamais ter sabido algo que manchasse o meu desempenho de esposo honrado e fiel, ela fez em idade já avançada o que mais cuidou de combater em
mim a vida toda, assunto do qual falo adiante.
Mulungu
tem pouco mais de cinco mil habitantes. A população decidiu me eleger prefeito,
pleito que ganhei com maioria esmagadora graças o empenho do Coletivo Esposa Fiel. A fatura da nobre
militância dessas senhoras altruístas
veio a galope do vento e, como primeiro ato de minha administração, o Coletivo exigiu que expulsasse da cidade
Lindalva e Lindaura, mãe e filha, as duas, putas odiadas por serem jovens,
belas e pobres, motivos pelos quais a casinha de dois vãos da Rua das Mariposas
acolhia os maridos entediados a procura de cheiro menos azedo que os de suas alcovas. Cheiro que Lindalva e Lindaura tinham
nas mãos, nos cabelos e na pele rosada, poupadas que eram do sabão e do fogo, elementos
ausentes nos cômodos perfumados e decorados com profusão de imagens de galãs de
telenovela, santos trazidos pelas duas quando viajam em penitência ao Juazeiro
do Padre Cícero, e frascos de lavanda coloridos e vazios que davam ao ambiente
uma atmosfera cambiante e prazerosa aos olhos opacos e cansados dos homens de
negócio que ali buscavam vigor. O trabalho delas era ficar lindas e cheirosas à
noite e lânguidas no correr do dia de seus homens ocupados, mas, sobretudo ansiosos
pelo prazer que desfrutariam dali a pouco junto às mulheres que tudo fazem para
compreender e agradar. Mesmo com todo
dengo a mim dispensado por Lindalva e Lindaura, às quais, por economia das
palavras quando trazia as duas no colo, passei chamar carinhosamente Lindu, ainda
que eu quisesse não podia voltar atrás na promessa feita às senhoras de bem de Mulugum. Minha esposa
encabeçara o movimento e dissera dedo em riste em direção a meu nariz: “dormirá
no sofá a partir de hoje se eu encontrar aquelas putas desfrutando meu espaço!”. Sem saída, mandei Boca de Siri, cabo
eleitoral de minha confiança, com 20 anos menos que eu e fiel feito um capacho,
apanhar a tralha das duas putas e deixá-las nalgum lugar onde a tolerância
permitisse gozar e viver de gozo. Alguns dias se passaram da decisão de mandar
embora as duas mulheres quando, por meio de um mensageiro, encontrei Boca de
Siri na esquina da pracinha com a Igreja, lugar insuspeito para aqueles que
tramam à luz do dia. Sem que ninguém testemunhasse paguei-lhe o frete e recebi
dissimuladamente o endereço que havia escrito num pedaço de papel. Antes que
alguma senhora do Coletivo testemunhasse
saí dali a passo largo e olhando dos lados. Deixei passar uns dois meses até o
assunto esfriar na sala de jantar de minha casa e nos bancos da Igreja na qual o
Coletivo se reunia, para ir ter com Lindu. E qual foi minha surpresa ao entrar na casa
de luz rosada e encontrar alguns correligionários endinheirados de Mulungu na
maior algazarra com as protegidas de Comadre,
nome da anfitriã, a qual todos tratavam com a reverência dispensada à
madrinha de uma filha muito amada, atenção que a dona da casa sabia reconhecer
ao escolher o melhor para o deleite
de seus compadres. Cumprimentei todos
e me juntei aos demais que bebiam na grande mesa, cada um, com a sua menina no colo. Aconcheguei Lindu, cada
uma numa perna, como se fossem as minhas pombinhas recapturadas. A menina tinha
os olhos baixos da virgem que protege a pureza
no decote de gola alta. Mas só mais tarde soube que minha observação estava
equivocada, que não havia pureza
nenhuma e que Lindaura sofria por outro motivo jamais imaginado por quem quer
que fosse. Motivo sabido e escondido por Lindalva desde que descobrira na filha
certas preferências não convencionais de sexo quando ia com as demais
companheiras de casa tomar banho de rio. Falarei disso com mais detalhes
adiante, uma vez que requer tempo para chegar ao acontecido.
Para
compensar a frieza da filha apoiada em meus joelhos como uma pedra de gelo, a
mãe alisava meus cabelos e dava tapinhas na minha mão atrevida que,
incontinente, buscava dois peitos que saltavam do sutiã armado de aspas metálicas.
Ah, o sutiã de aspas de Lindalva... Não foi
o pudor de anjo raivoso flagrado no semblante infeliz de Lindaura, nem a boca vermelha
de Lindalva que me fizeram estremecer. Ao tocar de leve a ponta dura do sutiã
da minha amante tive a louca impressão de que era Quitéria quem estava ali nos
meus braços. Quitéria, a puta mais antiga e mimada de Mulungu. Seu rico
protetor havia dado a ela a casa na qual morava sozinha, recebia seu homem a
qualquer hora do dia ou da noite, tanto só como na companhia de comerciantes e autoridades
do lugar. Aliás, padre Ambrósio era viciado em tomar xícaras e mais xícaras de
café com biscoitos finos trazidos de João Pessoa pelo amante de Quitéria, a
quem os homens invejavam a riqueza e a linda mulher de peitos empinados.
Contava
17 anos, muitas espinhas no rosto e punhetas fantásticas em intenção daqueles
frutos duros presos no acessório mais depravado de Mulungu. Quantas vezes passei
prá lá e prá cá em frente à janela estreita que emoldurava a moça de cabelos
pretos e descidos em caracóis só para apreciar aqueles peitos em ponta? Mas só
um homem tinha o privilégio de fazer o que os meus pensamentos de menino
imaginavam debaixo do chuveiro. O homem de Quitéria chama-se Jeremias Fortuna,
dono da mais sortida loja de tecidos de Aroeiras, cidade de comércio próspero e
de tradição católica, que não admitia um homem da estirpe de Jeremias manter em
seu território uma teúda e manteúda,
no caso, Quitéria. Distante de Mulungu 50 quilômetros e com a remota possibilidade
da esposa descobrir sua infidelidade, Jeremias Fortuna instalou a menina em Mulungu, cidade com a qual
mantinha relações comerciais e de grande respeito junto aos políticos, ao clero
e ao populacho cujos filhos davam por afilhados ao casal de amancebados,
alcunha com a qual as beatas se referiam aos dois amantes na hora de batizar as
crianças com a conveniência do padre. “Psiu!”, fazia este de olho arregalado e
indicador nos lábios em direção às carolas que tentavam repreender a concessão do
religioso ao casal de excomungados. Aliás,
a Igreja de Santa Madalena foi toda reconstruída com doações generosas de
Jeremias Fortuna que, por ser rico, pertencer à maçonaria e colecionar amizades
importantes, impôs o respeito que a sociedade de Mulungu devota a Quitéria,
igualando-a às senhoras de bem. Até
mesmo minha mulher, primeira dama e idealizadora da campanha para expulsar Lindu,
o que, reconheço, me levou a ocupar a cadeira de prefeito, admirava e invejava
os tecidos florais e as sedas importadas exibidas pela puta de Jeremias Fortuna. “Puta não!”, gritava indignada minha
senhora a quem duvidasse da reputação de Quitéria. “Puta são aquelas vagabundas
que botei pra correr daqui. Quitéria é uma mulher digna, de família humilde,
que soube conquistar um homem rico e bom.” No fundo eu sabia que a minha mulher
era também uma “Quitéria”, suspeita que, confesso, jamais parei para averiguar as
possibilidades. Aliás, ela fora sempre tão virtuosa... Mas deixemos isso pra
lá, o que importava naquele momento era manter as meninas longe dos eleitores, longe do Coletivo. Apesar de não ser possível apagar da memória o meu
primeiro ato administrativo, tinha a consciência tranquila em relação ao bem
estar das duas protegidas. Dei um cargo de confiança a Boca de Siri, cujo salário
de seis mil reais, ordenei, dividisse com as duas mulheres até o dia em que eu
fosse prefeito. Porém uma história que começa às escondidas tem tudo para se desdobrar
noutros esconderijos. E foi justamente no quarto mais escondido da casa de Comadre que vi a história de Lindaura recomeçar
de um novo ângulo. O ângulo imposto pela natureza indefinida que se abre
inteira e amoral.
Quinze
anos se passaram dos meus três mandatos de prefeito. Depois de passar o cargo à
minha mulher, que já conta com dois mandatos, concorri à Câmara de Deputados em
Brasília. Já estou no segundo mandato, trabalho distante de Mulungu, o que toma
todo o meu tempo com recepções a prefeitos e vereadores do meu partido não
deixando folga para os prazeres com Lindu, as quais fazia questão de mantê-las
como minhas meninas na casa de Comadre. Não as esqueci nem um só dia, mesmo
sob a vigilância do Coletivo que se
tornara sistemática ao ponto de todas as minhas senhas nas redes sociais serem controladas
por minha mulher, que continuava, há décadas, presidente do grupo. Mas graças a
Boca de Siri, que levei comigo para assessorar assuntos de ordem íntima,
triplicando o salário de seis mil para 15 mil reais, o que dava uma mesada
generosa de 10 mil reais para as duas protegidas que mandei esconder em Aroeiras,
quis fazer uma surpresa às meninas depois
de quase dois anos sem pisar o chão da casa de Comadre. Isso não quer dizer que não a recebesse em meu gabinete na
companhia de suas afilhadas em longas
audiências regadas a gargalhadas,
carícias e uísque falso comprado por Boca de Siri, com minha ordem, na feira do
Paraguai.
Meu
jatinho sobrevoou primeiro Mulungu. Queria ver minha casa, sondar de cima se as
senhoras do Coletivo rondavam as
cercanias. Ou seja, não queria correr o risco de ver minha candidatura cair em
desgraça por causa de duas putas. “Estranho, nenhuma janela aberta... Será que
minha mulher viajou... mas sem me avisar? Está a me esconder algo, Boca de
Siri?” Pergunta inútil uma vez que dali não saía nada, mesmo se soubesse. Deixei
de lado a preocupação com o deserto da minha casa e seguimos em direção a
Aroeiras. Dei um jeito de me aproximar sem ser visto. Escondemos o jatinho num
matagal conhecido de colegas deputados pelo pouso clandestino ali aberto por
jagunços e entrei pela porta dos fundos que dava para o quarto escondido,
construído por ordem minha à Comadre,
no qual era certo encontrar Lindu à minha espera. E foi naquela noitinha de
muitos cuidados e saudade que a história entre mim e as duas rolinhas, que estavam agora mais pra
galinha que rola, tomou rumo diferente. Abri a porta do quarto e dei de cara
com a minha mulher, nua e enroscada numa pessoa que eu não sabia se era homem
ou se era mulher. “Que diabo é isso?”, gritei acendendo as lâmpadas. As duas
criaturas, sem pressa nem constrangimento, me olharam de mãos dadas, como a
proteger uma a outra, e disseram que dali em diante eu estava fora daquela cama.
“Mas quem é você? Como se atreve botar galhos em minha cabeça?”, perguntei
sacando a pistola, ao que Boca de Siri, Comadre
e Lindalva, que ouviram os gritos e correram até o quarto, me dominaram fazendo
a arma rolar pra debaixo da cama. “Não me reconhece painho?”, perguntou com requintes de ironia e deboche o rapaz de
fala fina que parecia ter uns 30 anos menos que a mulher de peitos e bunda sumidos
em sacos de pele seca. “Você!...” “Sim, agora me chamo Luis!”.
O
quarto tinha cortinas rosa descidas até o piso, o que dava uma atmosfera
feminina tranquilizante, almofadas de oncinha em toda a extensão da cama e um
cheiro familiar de Malbec que me fez acordar e sentir que estava em casa. Um
alívio tomou conta de mim ao perceber que estava vivo... “Boa tarde, meu deputado! Que bom que acordou...
Trouxe o café com tudo o que sua excelência
gosta.” Reconheci a voz quente e rouca e fiquei feliz por não ser nem da minha
esposa nem de Lindalva ou Lindaura, aliás, Luis... “Meu Deus, Luis!” Comecei a
soluçar de desgosto e raiva. Boca de Siri, delicado e amoroso como a amante que
disputa com as demais a atenção exclusiva de seu homem, trouxe imediatamente o
estetoscópio, que eu havia lhe dado de presente quando fizera o curso prático de
enfermeiro, e verificou a minha pressão. “Doze por oito... Melhor não pode
estar!”, disse sorrindo meu assessor para
assuntos íntimos. Já que estava em excelente estado físico, pedi para que
colocasse a peruca vermelha e o maiô rosa Pink. “Pois não, meu deputado”, disse Boca de Siri simulando uma gazela em seu
físico musculoso e grande ao se dirigir ao guarda-roupa que eu havia mandado
fazer especialmente para ocasiões como aquela em que eu ficava muito deprimido.
“Quero que você me dê uma daquelas massagens na sauna... Não temos pressa pra
terminar... A Câmara que espere!” “Uau!”, fez Boca de Siri já de peruca e estremecendo
de cima a baixo diante do grande espelho em frente à nossa cama.
Ana
Barros
Natal,
11 de fevereiro de 2018.
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