Ao fazer doze anos fui enfático: “quero morrer aos cinquenta". Ontem fiz cinquenta e o que me
incomodou não foi ainda estar vivo, mas o silêncio do celular que não
surpreendeu com a voz feliz dos amigos, “vai
comemorar”? Talvez tenham lembrado, porém, conhecia o desprezo deles por
tudo que era convenção. E não era por que fazia cinquenta anos que ia ser
diferente. Eu é que sou convencional e cheio de entusiasmo pueril, valor
desprezível, reconheço, cultivado ao longo de décadas como artifício para
tê-los em torno de mim, não por serem meus semelhantes
ou coisa parecida, mas por ser, cada um deles, uma vaidade necessária à busca neurótica
por discussões intermináveis sobre a mais elementar perturbação que me deixasse
com a percepção alterada. Há pessoas que nascem com alguma deficiência e são obrigadas
a conviver bem ou mal com as limitações a elas impostas. Pois bem, sou portador
de uma deficiência. Apesar de ser
física ela é invisível, subjetiva, só
eu a conheço, e trato com métodos dialéticos que chegaram a causar mágoas
profundas em Ana, tão dócil, mas tão vazia nas horas de argumentar alguma ideia
que eu jogava para ela com uma mistura de genialidade e sadismo. Ana calava. Os
demais, ao contrário do que agora reconheço como maturidade daquela que soube
silenciar o ruído, tomavam a discussão à margem da sensatez e a desconstruíam
com requintes de crueldade. Quantas
vezes não contendo a histeria gritei e abandonei a conversa aos prantos. Pouco
do que dissera achando ser original e merecedor de consideração por fazer parte
da nossa história teve sucesso. Houve um tempo em que não esquecia sequer uma
data que achasse interessante para algum de nós. Cheguei a aniversariar duas
vezes no ano apenas com o intuito de juntar a turma em torno de vinis de Pink Floyd, garrafas de vinho chileno,
maços de Hollywood e das longas conversas
provocadas por mim. Em razão do meu orgulho afirmativo, característica
detestada por todos que me ouviam, terminava inferiorizando alguém ao redor da
mesa. Era quando me faziam frear a língua debaixo de insultos e palavrões. “Vai tomar no cu!”, ouvi muitas vezes
tomado de torpor e desespero. Saía magoado e com a certeza de nunca mais encontrá-los.
No entanto, foi graças a esses encontros sem afinidades, nos quais por mais que
me enturmasse continuava só, que cheguei aos cinquenta e não me matei como
planejei ainda menino. “O temperamento ácido
te conserva”, dizia meu tio Fidelis para quem o amor joga contra e não a
favor. E foi mergulhado no ácido dos
egoístas que me deparei com a meia idade e o sumiço dos amigos. Todos desaparecidos.
Teriam se cansado do meu hábito deseducado de fuçar entranhas? Enquanto zombei
de mim, ateu irônico e sem futuro, meus amigos aderiam à esperança num mundo feliz. Eu estava excluído desse mundo
tanto por eles como por mim mesmo. Confesso que fiquei desapontado no início da
debandada, tentei esquecê-los. Houve, contanto, uma coincidência dos fatos. Há
alguns anos, acho que depois dos quarenta e cinco, passei a não dar mais tanta importância
a datas. Talvez o cansaço de sempre ouvir o timbre antipático da minha voz
dominando as conversas, reforçando os mesmos conceitos na tentativa vã se
atingir os demais, as mesmas impressões que descobria em mim e nas centenas de
livros que lia e deles tirava assunto para as discussões febris nas quais somente
eu afundava, a descoberta frustrante
de que nenhum dos meus amigos, além de não prestar atenção ao que a descoberta representava para nós e de
fazerem gozações nas minhas costas, fez com que percebesse que o verdadeiro
sentido daquelas reuniões não era a amizade, mas tão somente beber um bom vinho,
fumar cigarros importados e provar a comida que eu mandava trazer na Cantina do Português. Não nego as perturbações
noturnas nem a vontade de procurá-los e dizer o que pensava de cada um quando
percebi que as noites haviam se acalmado e o celular calado, que ninguém mais
me procurava, nem mesmo para saborear de graça o rango burguês. “Seria tão bom se me ligassem... São cinquenta
anos...”, pensei magoado. Eu era o último a entrar na maturidade. O
penúltimo, Antônio, esqueceu que havia nascido só para não lembrar que
envelhecera. Porém eu não aguentando o silêncio respeitoso do amigo felicitei-o
no dia em que ele resolveu esquecer que havia nascido: “Já encomendou o Viagra?” Ele, óbvio, não ouviu. Não só Antônio,
mas Beatriz, a mais velha do grupo, deixou de dizer a idade e fingimos não mais
lembrar. Mas comigo foi diferente. Desistido de morrer antes dos cinquenta
passei a festejar meu aniversário com o copo de vinho, o cigarro e o silêncio
da noite que chega melancólico depois de um dia sem o sinal de quem gostaríamos
ouvir bater nossa porta. “Por que não
inventei uma festa?” Quis me culpar: “Porra!”
Imediatamente, porém, me repreendi por tentar repetir malogros. Afinal,
completava meio século e isso era motivo a ser comemorado no porão em que eu me encontrava agora com
o tempo vazio e estendido dos ociosos.
Logo que fiz trinta anos, com uma calvície já acentuada e
alguns fios brancos, descobri como saída honrosa para o meu fracasso estético
entregar-me nas mãos do barbeiro Gabriel, que passou a raspar minha cabeça uma
vez a cada quinze dias. Descobri no pequeno intervalo que separa aventura de moral
que a fatalidade me atraía e que era impossível conhecer os seus encantos na
juventude, quando prazer se limita à ignorância
e sexo. “Se algum deles ligasse... Ainda
dava tempo de comprar o vinho e a linguiça azeitada do portuga... Bobagem!”, considerei
voltando à reflexão de solitário afundado no porão. Percebi aí a vantagem de rastejar com as pulgas na interferência
positiva do meu bom humor. Pode ser
que o que diga pareça blasfêmia aos ouvidos daqueles que têm horror à
banalidade. Pois bem, não saberia existir fora da banalidade. Paulo e Teresa
não entenderam a minha escolha cretina e suspeitaram que eu fosse gay. As conjecturas do casal de amigos vieram
à memória ao reencontrar minha primeira namorada alguns dias atrás. Ela, divorciada.
Eu, solteiro. Se quisesse dar uma resposta à dúvida dos dois seria a chance de
afirmar de uma vez por todas a minha virilidade. Aliás, estava velho e ainda só.
No entanto, foi aí que entendi por que não casei.
Conservada debaixo de cosméticos e dos disfarces da costura
que prolonga a vaidade madura, ela frequentava a Igreja e tinha um casal de
filhos a caminho dos trinta. “Que fazer
ao lado dela, feliz e sincera, com o meu cinismo? Não e não!” Deixei como
estava. Não incomodava nada a dúvida de Paulo e Teresa sobre com quem eu trepava.
Até porque, se fosse verdade a suposição dos dois, eu já teria adormecido as
pulsões nas noites de insônia nas quais me entreguei aos questionamentos, deles
me soltando apenas quando encontrava uma resposta plausível para as
inquietações do espírito. Sem me importar com o que pensavam de mim, preocupei-me,
sim, com a distância que surgiu entre nós. Algo do tamanho daquela ponte sobre
o rio que não temos coragem de atravessar. Não pela extensão desafiadora, mas
por receio do que vamos encontrar do lado de lá. E, como eu sei o que tem lá, todos também sabem o que tem cá. Assim, melhor desistir.
Nu e de frente para o espelho ergui o saco com a mão e compreendi que as palavras perdem o vigor na mesma
corrida que o corpo perde o tesão. Ali estava o exemplo: meus culhões caídos. O consolo era saber que estávamos
igualmente com as palavras gastas e os culhões
caídos. Isso não queria dizer que meus amigos aceitassem a ruína com a qual passei
a ter laços de amor. Melhor mesmo a distância. Evitamos além de percepções
constrangedoras indagações inúteis: “vai
morrer solteiro?”, “continua
pesquisando assuntos inúteis?”, “ainda
recebe a pensão de teu pai?”, “por
que não faz o concurso pra juiz? O salário é 30 mil”... Mas seria bom ouvir a voz do lado de lá: “vamos comemorar”? Tantas vezes ontem olhei
o celular que não vibrou. Sabia que não ligariam. Mesmo assim esperei o dia todo.
Soube que Mauro e Alice se aposentaram do cargo de
procurador. Soube ainda que estão sempre viajando pela Europa. Quando não,
compram no Shopping onde são vistos carregando sacolas com livros de padre
Fábio de Melo e Augusto Cury, garrafas de vinho do Porto e roupas da mesma
grife que veste o ministro K. e a esposa Y. Confesso que quando soube pelo Facebook do sucesso de Mauro e Alice
senti inveja. Quase adoeci de inveja. Fui ao Shopping em seguida. Queria a
felicidade que os dois apresentavam nas fotos da página. Queria a vida jovem e
alegre que os dois exibiam no sorriso de dentes perfeitos, sem uma só manchinha
senil. Depois de andar pra lá e pra cá, de olhar vitrines e moças em bandos
silenciosos de celular em punho, senti os olhos míopes inchados de fadiga, pois
havia escondido os óculos na intenção de abordar alguma garota interessada em bater um papo enquanto tomássemos um...
“Mas, o que bebe uma garota hoje na
companhia de um... velho?”, pensei me sentindo um velho ridículo preso na armadilha
daquele templo de pessoas jovens, lindas e maravilhadas. Diminui o passo já sem o menor interesse em encontrar
quem quer que fosse para seduzir com as minhas ideias completamente fora de
sentido naquele espaço fechado de likes,
emojis e kkk. Bastante entediado e louco pra sair correndo dali, estanquei no
começo do corredor da praça de alimentação contra a multidão que deixara o
celular de lado e corria para os fast
food. Foi aí que vi Mauro e Alice numa das filas. Gelei da cabeça aos pés e
corri em direção à saída.
Ana Barros
Natal, 23 de outubro de 2011.
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