Há imagem cuja força
psicológica sobre o imaginário de um povo provoca algo tão longe da razão
quanto o instante do êxtase que acende. Este, por vezes, tendo como pano de
fundo a repressão sexual, ou o espasmo místico. Exemplo maior de liberação das pulsões
na moral pagã vem da Grécia Antiga. Entregues à (in)sensatez divina, as
bacantes sobem as montanhas e, longe de pecado e culpa, entregam-se às
licenciosidades da vida, ao transe coletivo proporcionado por libações ao deus da
embriaguês na terra: Baco. É na entrega mítica que o querer profundo sem
possibilidades reais de acontecer no mundo dos homens irrompe na ação cega de
censura e condenação. A lucidez se apagada, surge o desconhecido, o estranho,
entrega ora ao aniquilamento, ora ao instinto de conservação. Aqui me detenho no
famoso fenômeno místico acontecido em Natal na década de 1960 para ilustrar o
poder que tem um ato, banal e insignificante para alguns mas, para outros,
ligados mais aos instintos que à razão, essencial no instante de nascer o
mártir. Assim foi com o assassinato de Baracho (João Rodrigues Baracho), conhecido
e temido entre os bairros de Natal, Quintas, Alecrim e Carrasco, comunidades
onde praticava assaltos, assassinatos e dava morada a várias amantes. Infeliz,
não teve a sorte de ser socorrido por uma delas quando a moral o condenou. Com
predileção por matar taxistas da noite, Baracho foi preso várias vezes e
executado após uma fuga, isso em 1962. A execução teve todos os requintes da
crônica policial capaz de permanecer meses na boca de curiosos frívolos,
sedentos de vingança escrita com sangue bandido. Porém, um detalhe. Pequeno e desprezível
detalhe para quem endurece os sentidos na hora de julgar o outro, mas que é o
essencial àqueles que são levados pela exaltação mítico-mística diante da
imagem trágica que provoca compaixão, adoração, redenção. Ferido de morte pela
polícia, Baracho esconde-se na casa de uma vizinha que, além de informar o
paradeiro do vizinho caçado, nega-lhe o copo d’água que Baracho suplica na
agonia da morte. Ele morre, para os que respeitam com o carrasco o último
pedido do condenado, não só dos ferimentos provocados pelos tiros, mas também de
sede diante da impiedade do igual, diante da indiferença pelo igual, ou seja, da
negação de outro. Entretanto, é naquele
instante nulo de dor de alguém que não enxerga o outro como si mesmo que a
comoção coletiva ajoelha-se e eleva Baracho de bandido odiado e temido à
condição de mártir. A prova desse instante continua vivificada anualmente no
Cemitério do Alecrim, onde Baracho foi sepultado. No Dia de finados o túmulo
mais visitado, seja pela curiosidade, seja pela veneração, é o do homem que
morreu suplicando um copo d’água. Instante em que as ações do indivíduo,
julgadas más, são aniquiladas diante do sublime poder da imagem que transmuta o
que é humano em divino. Para quem enxerga fanatismo e alienação nas pessoas que agiriam com amor em vez de ódio diante de um assassino que deveria ter matado a sede antes de morrer,
único e último gesto, naquele momento, da bondade que não abandona o instinto
de rebanho, lembramos Dostoiévski, autor de obras como Crime e castigo, A casa
dos mortos e Os irmãos Karamázov, cuja sensibilidade de artista faz dele grande
conhecedor e acolhedor da fraqueza humana. Outro russo, cujos personagens,
quase todos homens e mulheres à margem do aceitável, é Gorki. Ao lermos “Os mais brilhantes contos” desse psicólogo
da redenção não deixamos de amar o bêbado, o mendigo, o vagabundo, o doente
pobre, a prostituta, o presidiário, o assassino. O dois escritores, através de
seus protagonistas, ao contrário da mulher que entrega à polícia o vizinho de má
fama e nega-lhe o copo d’água na hora da morte, dariam a água na boca do
moribundo, tratariam suas feridas e o deixariam em paz.
Ana Barros
Natal, 19 de maio de
2015 (concluído em 09/11/2016)
Túmulo de Baracho - Cemitério do Alecrim - foto do portalbo.com |
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