Aqui acolá eu digo: acabou!
Nada de falsa alegria, nada de riso, nem mais uma palavra inútil, nem mesmo vou
ser educada. Serei selvagem, desregrada. Vejamos por quê? Começa o dia, ligo a
TV e vejo os programas que anunciam o fim do mundo, a ira dos escolhidos contra
a rebeldia dos danados. Deixo a caixa
preta de lado e acendo o cigarro nervosa, mas com o volume alto para ouvir
da cozinha enquanto bebo a borra do café que ficou no fundo da xícara. Apago a
bituca no resto da borra e corro para a Internet... “Chega!” Desligo tudo. Pego
a vassoura atrás da porta e vou varrer a calçada, quem sabe encontro o vizinho
do lado direito e o convido para irmos ao Clube
da esquina na próxima sexta? Mas para meu desapontamento quem está lá, em
sua cadeira de balanço e com o rádio portátil ligado, é o vizinho da esquerda,
o mesmo que não me deixa dormir à tarde. “Bom dia, Seu...”, digo olhando o chão
forrado de folhas e juntando o lixo com rapidez. Evito assim a conversa enjoada
do homem de Deus, como ele mesmo
costuma se apresentar a quem passa na calçada e para quem insiste dizer
qualquer coisa, ainda que o estranho sequer responda o cumprimento antipático:
“Bom dia, Dona... Já fez a sua oração da manhã?” Ele tem o rádio permanentemente
ligado na estação Ondas do céu e,
invariavelmente, ouve as mesmas músicas e sermões condenatórios, menos para ele
e mais para mulheres como eu que, em vez de irem à Igreja no fim da semana, vão
ao clube dançar, fumar, beber, e jogar carteado. Poucas vão à procura de um
amor. Isso não quer dizer que as demais sejam invisíveis aos homens, longe
disso quando se tem o prazer do mundo e o bônus do tempo chega risonho, maduro,
sem tragédias nem fantasmas. O gozo migrou
de um ser exclusivo para uma diversidade de seres, gozos e objetos, os quais a
Igreja de Seu... atira ao fogo do inferno com a raiva dos puros. Mas a TV e a Internet não sabem, ou fingem não saber, essas
obviedades do particular que se desenvolve e morre em cada um longe dos olhos e
da ciência dos que fazem juízo. O meu vizinho da esquerda não tinha interesse
em outro mundo senão aquele repetido continuadamente na estação Ondas do céu. Ou seja, um mundo entregue
à perversão e ao crime, à catástrofe
sem fim alimentada por “velhas depravadas”, como era hábito gritar quando o
táxi parava na sexta-feira à noite já com minhas amigas V e C lindamente
maquiadas e perfumadas. Jamais respondemos ao homem de Deus com palavras. Porém, depois de fechar a porta do táxi
eram quatro línguas e dedos estirados na sua direção. De longe ainda ouvíamos
as pragas do homem de Deus, agora em
pé e brandindo a Bíblia no vazio da noite. Esqueçamos por enquanto o juízo final esperado com diligência e
discursos pelos eleitos, estes, convencidos de que o mal se esconde na
ausência de grades, como disse o repórter no jornal ao defender mais ferro e
cadeado para os marginais, e nos
pentelhos raspados das mulheres, fé inabalável de Seu... Outro dia depois de me
olhar na vertical e imaginar que raspo os meus ele, na lata: “a senhora não
toma vergonha?” “Não! tomo uísque.”, disse e levantei o vestido de algodão azul
transparente acima dos joelhos, requebrei e desviei os sentidos para o lado de cá,
o lado para o qual também basta o esquecimento, uma palavra, uma imagem, um
olhar para que a nossa percepção se dê conta de que continua, apesar de eterna
trama ao contrário, orgulhosa de si. Vejamos o exemplo: quando velhos e o
acervo do aprendizado se fez mofo, eis que o neto nos leva à reflexão espantosa:
“onde diabo esse moleque aprendeu isso?” A surpresa aumenta ainda mais se a
criança diz que não foi com a professora de religião, nem na casa dos pais, estes,
absolutamente alheios à culpa e pecado. “Mas onde mesmo, meu bem?” “Ora vó... no
pesadelo!” Fiquei sabendo assim que meu neto ressuscitara em pesadelo refugos
da cartilha dos mortos, a mesma que
eu havia revivido e que largara como trapo imprestável depois de passar por
todas as gerações das quais acreditei me desfazer esquecendo as verdades mortas.
Mas como o menino jamais ouvira falar
dentro de casa em anjos e demônios, onde ou com quem aprendera o
que não tinha mais força moral para aqueles com quem vivia e verdade incontestável
para aqueles que se mantêm no repouso dos séculos? O pesadelo! Fora o pesadelo
o responsável pela lição do menino que, na imediata contradição e mudança de
assunto disse ao pular da cadeira vestido de Homem Aranha: “vó, eu tenho três
qualidades.” Passados alguns segundos de espera para que eu perguntasse “quais,
meu herói?”, ele disse contando nos dedinhos da mão espalmada: “eu sou
inteligente, tenho estilo e sou engraçado”.
Dias depois, final de semana e hora de limpar a casa, eu dava a meu neto lições de como lavar o banheiro. Antes, porém, perguntei se queria “trabalhar” ouvindo música. “Quero ouvir rap.” De luvas e escovão em punho, logo começou a cantar e esfregar a cerâmica como se estivesse no show da banda K. “E aí boy, precisa de ajuda?”, perguntei enfiando a cabeça na porta entreaberta. Sem responder ele disse: “Vó, que dia feliz... sou um artista! Parece que estou grafitando uma parede na rua”, disse simulando as latas de spray com as duas escovas deslizando sobre os azulejos ao ritmo compassado da música negra. Pensei aumentar a alegria dele e disse: “isso se chama orgulho de si...”. Imediatamente ele parou os movimentos, fechou o sorriso, atirou as escovas longe, pôs as mãos na cintura e disse olhando para mim, que fingi ser tomada de medo pela raiva sincera de menino: “orgulho é pecado! É o quarto pecado capital!”, retrucou fazendo com que me lembrasse do pesadelo e do desenho Bob Esponja e os sete pecados capitais que eu havia comprado tinha uma semana, não porque quisesse ensinar moral a meu neto, mas por insistência dele, influenciado pelo comercial da TV. Agora, visitado por Bob Esponja em sonho, cujo enredo esqueceu ou não quis contar, ele acabava de resgatar o cristal da memória há muito em mim derretido.
Mais alguns meses e eu faço oito décadas. No meio das zombarias dos meus filhos sobre o que valeu e o que não valeu ter vivido até aqui, na esperança inútil de que eu diga “ter casado com seu pai e ter tido vocês”, digo que um só motivo vale carregar oitenta anos. “Qual então, mamãe?”, quis saber o do meio, o mais estranho à minha existência. “Ora ora... se você desse importância saberia que é viver,” respondo com a ironia da velha que jamais vestiu preto nem lamentou o destino, cujo desfecho o pai logo cedo disse ser exclusividade dela. Mesmo assim, conhece as regras. E por conhecê-las e nunca ter deixado o encanto ou desencanto seduzir sequer um dia, diz segura de si: “sou inteligente, tenho estilo e sou engraçada,”, ou seja, “dirijo o meu teatro”.
M acabou de chegar. Peço que aguarde enquanto calço o sapato amarelo. “Cadê o meu vestido preto?” “Pronto, só falta o colar e o perfume”, digo recebendo a dose de uísque preparada por M. Acendo o cigarro sem pressa e digo soltando a fumaça para cima: “chame o táxi!”. Enquanto aguardamos, converso com M. Ele é muito mais jovem que eu... Mas a diferença de idade não o impede de se queixar o tempo todo de sentir dor. Acho até que é pura invenção, só para aparentar mais idade e poder estar bem comigo. Digo que também sinto dores, mas só revelo isso ao médico. Aborrecido com a minha falta de compaixão, M retrucou certo de que me enquadrava em sua verdade mesquinha e covarde: “quero que todos saibam!”. Tomo o último gole de uísque, trago o final do cigarro e respondo fingindo não perceber as segundas intenções de M, que eu sei, me acha uma velha cínica: “Meu caro, eu quero é viver, com dor ou não tanto faz. Então, para que dizer?” “O táxi chegou, vó!”, grita da porta meu neto.
Dias depois, final de semana e hora de limpar a casa, eu dava a meu neto lições de como lavar o banheiro. Antes, porém, perguntei se queria “trabalhar” ouvindo música. “Quero ouvir rap.” De luvas e escovão em punho, logo começou a cantar e esfregar a cerâmica como se estivesse no show da banda K. “E aí boy, precisa de ajuda?”, perguntei enfiando a cabeça na porta entreaberta. Sem responder ele disse: “Vó, que dia feliz... sou um artista! Parece que estou grafitando uma parede na rua”, disse simulando as latas de spray com as duas escovas deslizando sobre os azulejos ao ritmo compassado da música negra. Pensei aumentar a alegria dele e disse: “isso se chama orgulho de si...”. Imediatamente ele parou os movimentos, fechou o sorriso, atirou as escovas longe, pôs as mãos na cintura e disse olhando para mim, que fingi ser tomada de medo pela raiva sincera de menino: “orgulho é pecado! É o quarto pecado capital!”, retrucou fazendo com que me lembrasse do pesadelo e do desenho Bob Esponja e os sete pecados capitais que eu havia comprado tinha uma semana, não porque quisesse ensinar moral a meu neto, mas por insistência dele, influenciado pelo comercial da TV. Agora, visitado por Bob Esponja em sonho, cujo enredo esqueceu ou não quis contar, ele acabava de resgatar o cristal da memória há muito em mim derretido.
Mais alguns meses e eu faço oito décadas. No meio das zombarias dos meus filhos sobre o que valeu e o que não valeu ter vivido até aqui, na esperança inútil de que eu diga “ter casado com seu pai e ter tido vocês”, digo que um só motivo vale carregar oitenta anos. “Qual então, mamãe?”, quis saber o do meio, o mais estranho à minha existência. “Ora ora... se você desse importância saberia que é viver,” respondo com a ironia da velha que jamais vestiu preto nem lamentou o destino, cujo desfecho o pai logo cedo disse ser exclusividade dela. Mesmo assim, conhece as regras. E por conhecê-las e nunca ter deixado o encanto ou desencanto seduzir sequer um dia, diz segura de si: “sou inteligente, tenho estilo e sou engraçada,”, ou seja, “dirijo o meu teatro”.
M acabou de chegar. Peço que aguarde enquanto calço o sapato amarelo. “Cadê o meu vestido preto?” “Pronto, só falta o colar e o perfume”, digo recebendo a dose de uísque preparada por M. Acendo o cigarro sem pressa e digo soltando a fumaça para cima: “chame o táxi!”. Enquanto aguardamos, converso com M. Ele é muito mais jovem que eu... Mas a diferença de idade não o impede de se queixar o tempo todo de sentir dor. Acho até que é pura invenção, só para aparentar mais idade e poder estar bem comigo. Digo que também sinto dores, mas só revelo isso ao médico. Aborrecido com a minha falta de compaixão, M retrucou certo de que me enquadrava em sua verdade mesquinha e covarde: “quero que todos saibam!”. Tomo o último gole de uísque, trago o final do cigarro e respondo fingindo não perceber as segundas intenções de M, que eu sei, me acha uma velha cínica: “Meu caro, eu quero é viver, com dor ou não tanto faz. Então, para que dizer?” “O táxi chegou, vó!”, grita da porta meu neto.
Ana Barros
Natal, 03 de julho de
2016.
Ual! De tirar o fôlego.
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