sábado, 21 de julho de 2012

O enforcado


E eu a saltar fora do laço antes do aperto fatal ri da malandragem diante da morte e mais uma vez dava uma chance à mentira que equilibra para mais adiante balançar a corda e de novo jogar à terra o fardo humilhado. O fardo fez um nó nas costas e o pescoço grosso solta o enforcado que, feito um cão velho e pulguento, ergue-se das cinzas já nem um pouco desprezíveis, sacode o pelo e deixa cair os carrapatos. Até gostaria de novo pranto... Força um choro, esfrega os olhos, geme... Mas é tarde e as costas doem no lugar das crateras calcinadas lembrando que devo levantar, pois um resfriado me levaria ao buraco raso. Ergo-me e vou tomar o meu copo de café com leite. O jornal velho e amarelo de antes de... Oh, perdi os óculos e os jornais esquentam o forro do meu quarto. Os jornais, o café com leite quente, a pinga depois de todos e nada mais me tira a atenção a não ser de novo a lembrança de que não lembro mais. Por que não sentar-me à mesa do Café e lamentar com algum daqueles homens matinais que sentam ali todos os dias com o mesmo bocejo e o cheiro de suor da noite? Dizer que o sol abriu meu crânio e queimou o labirinto. Mas esqueci quando vi os dois camaradas de frente um para o outro calados olhando para nada. E eu tenho nada nos miolos. Entornei o copo de pinga e senti as lágrimas quentes e chorei porque queimava dentro e eu estava vivo e sentia o que além de mim é vento

Ana Barros

2 comentários:

  1. querida, seu surreal desenha o cotidiano do desespero da impossibilidade de mudar o equívoco. Desculpe a verborreia ensandecida...a culpa é da leitura do seu belo (belo?) texto, minha Kafkaniana amiga!!!

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  2. Obrigada, Percival! Fico feliz e orgulhosa de sua leitura: "desespero da impossibilidade de mudar o equívoco."
    Beijos,
    Ana

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