─ Criar nosso próprio negócio foi motivo de riso e satisfação na cozinha lá de casa. Riso e satisfação por ter o que comer na mesa rodeada de meninas e meninos de olhos grandes e famintos sobre as artimanhas do dono da casa: “mamãe, pai é um ladrão?”, perguntei ao ver o homem empurrá-lo porta a fora e gritar: “cabra safado!, ladrão filho da puta!”. Minha mãe torceu-me as orelhas com a raiva de quem acompanha de perto os negócios do marido e gritou com o dedo em riste: “seu pai é um santo, ouviu?”, berrou antes de jogar-me porta a fora. São muitas as crônicas retornadas no tempo de barriga cheia e olhos diminuídos na gordura da saciedade. É disso que mantenho o contentamento no bucho magro da invariável mistura “feijão com arroz” carregada no lombo do burro por meu pai graças à sua sagacidade para o negócio. Antes de contar algumas histórias de vizinhos semelhantes à nossa na arte da trapaça, cujo personagem central é o estômago, conto a minha engendrada por um homem dedicado a multiplicar níqueis dos outros, contudo, com talento nada desprezível para seus desregramentos monetários. Pois bem, sobrevivemos não dos trocados recebidos pelos serviços extenuantes prestados a senhores de grandes negócios, mas tão somente dos rolos que papai empreendia. Não à toa o chamavam de “enrolão”, “trambiqueiro”, “gatuno” e outros adjetivos não menos injustos com o homem cujo único desejo era encher a pança dos filhos. Foi assim que acompanhei dos seis aos doze anos ele tanger o burro carregado de dois sacos. Um, bem menor, era o pagamento em farinha pelo trabalho de forneiro noite adentro na Usina de mandiocas. O outro, três vezes maior, disfarçado num lençol velho para não dar na vista, “a recompensa merecida”, dizia-me com a voz amaciada na sua moral de educar. Eu respondia ao gesto agarrando-lhe a mão quente e gretada do rodo gigante, cujo vaivém havia torrado 100 quilos de farinha. Andávamos um quilômetro até o Armazém da prima Socorro onde arriávamos a carga. Conhecedora dos trambiques do primo ela aproveitava a oportunidade para lhe passar um pequeno sermão: “nada de cachaça, viu? Só comida pros meninos. Deus tá vendo!”, e olhava para cima com olhos de terror. Papai, em sinal de respeito, tirava o chapéu, inclinava a cabeça, benzia-se, balbuciava algo que nunca compreendi, e partíamos carregados de mantimentos: uma rosca doce pra mamãe e dois embrulhos de açúcar que meu pai, tão logo se afastava dos olhos bondosos da prima, trocava um deles pela garrafa de cachaça que o esperava na esquina. Mas vamos aqui a outras cozinhas semelhantes à da minha casa paterna na saciedade do estômago e esperteza de como enchê-lo:
─ Certa vez Zezão, filho do vendedor de mel de abelhas a quem mamãe recorria sempre que gripávamos, respondeu depois de minhas suspeitas anos depois sobre se o produto era realmente “puro”: “que nada! Desde papai colocamos calda de açúcar da metade pra baixo do frasco”, disse ele sorrindo ao abrir a garrafinha do provador: “tome... é puro... pra enganar!...”. Com a morte do velho, Zezão e os três irmãos passaram a gerir o negócio. Soube recentemente que o mais novo deles comprou um jipe importado e passou a distribuir mel em várias quitandas pelo interior do estado. Para despistar os fiscais, o empreendedor de mel, como agora é chamado pelos homens de negócios da moda, pega a estrada a meia noite com a mulher sentada ao lado que, vigilante feito um soldado louco, olha o tempo todo para trás e dos lados, grita e atira pragas ao marido quando este joga o carro em buracos, atola em charcos, foge de suspeitos que muitas vezes não passam de mendigos esfomeados: "Ah, maldito,... que o diabo te carregue numa encruzilhada seu eu ainda voltar contigo!", dizia ela. Tão logo, porém, o empreendedor falsificasse outras garrafas de mel, lá estava ela de volta ao mesmo caminho incumbida da segurança da carga e do alerta caso avistasse ao longe o carro do fiscal.
─ “Jamais papai”, disse Rosinha batendo os olhos, "aceitou que nos chamassem de ralé." “Você sabia, Vicente, que temos tios ricos na Europa?” “Verdade?” “Sim!”, disse ela olhando para os lados. Como não avistasse ninguém prosseguiu na mentira: “papai era filho de francês!”. Pois bem, o pai de Rosinha arrebatava corações com a gabolice e a mala estufada de panos de seda, lenços, calcinhas de renda, meias finas, pós de arroz, colônias... A malandragem do caixeiro viajante era conhecida de todos, motivo pelo qual viajava a grandes distâncias da própria casa. Para se ter ideia de suas artimanhas, havia um comentário de que seu Quinino, como era chamado, estava de casamento marcado a alguns quilômetros e só foi impedido da aventura graças à visita repentina da mulher, grávida de Rosinha, a sétima flor – as filhas tinham todas nome de flor. Pois bem, o simpático senhor vendia perfumes e ruges para moças e senhoras que acreditavam nas fórmulas manipuladas na cozinha da família. “Aquilo é um safado”, disse mamãe à comadre ao lhe mostrar a caixa de pó facial comprada ao pai de Rosinha. Entretanto, esquecia ela que meu pai era igualmente um “safado”. De posse de incensos, corantes e farinhas encontradas em qualquer venda, seu Quinino enchia potes, vidros e latinhas com produtos cheirosos que seduziam até homens ansiosos por gomas para fixar os cabelos. As filhas o ajudavam a dar o toque final às gosmas à base de araruta, colorau e gotas do incenso conseguido no terreiro de dona Alexandrina (falo desta senhora mais adiante). Graças às vendas seu Quinino pode ver as filhas formadas em especialidades desenvolvidas na cozinha ou em algum cômodo da casa. Não obstante o ciúme das mulheres casadas, jamais se ouviu falar sobre o que faziam de verdade as flores de seu Quinino...
─ Outro dia Júlia estava furiosa com a vendedora de açafrão da terra: “vou denunciar no Zap-Zap”, ela me confidenciou depois de fazer o teste e comprovar que o produto tinha mais pó de tijolo do que açafrão. “Hei?... pare! Esqueceu as safadezas de sua mãe pra encher o bucho de vocês?”, perguntei como quem sabe o valor real de um saquinho de açafrão misturado a alguma pozinho vermelho. “Outro dia vi você vomitar com o cheiro podre das galinhas que sua mãe vendia.” Cuspi longe e continuei: “Depois de mortas e sem as penas, você esfregava a bucha com sabão na pele fedida, escaldava em água fervendo, pilava os temperos e transformava as aves em iguaria disputada no Bar da Tetê”.
─ Perto de nós morava um casal simpático, dona Tânia e seu Humberto, que havia adquirido um grande terreno no entorno da casa. Ali plantaram dezenas de pés de caju cuja carga era abundante em dezembro. Eles deixavam que chupássemos os frutos contanto devolvêssemos as castanhas: “Valem ouro”, ele dizia. Seu Humberto, assim como meu pai, vendia a mercadoria no armazém da prima Socorro. Certo dia, ao entrar de supetão na casa do casal pra devolver as castanhas, encontrei-o misturando um saco de pedras ao produto que seria pesado na mesma balança que pesava a farinha de meu pai. Seu Humberto deixava o armazém carregado de mantimentos sem que a prima Socorro, feliz por fazer negócio com alguém “tão distinto e sério!”, como fazia questão de lançar na cara humilhada de meu de pai, averiguasse o produto do homem de camisa de linho e cruz de ouro pendurada no pescoço.
─ À beira do caixão de dona Alexandrina perguntei a Totonho por que sua mãe tinha os pés inchados. “Não sabe?”, perguntou surpreso. “Não, não se!", respondi cinicamente. “Mãe ficou com os pés deformados de tanto pisotear no Terreiro. Castigo!”, julgou ele esquecendo ter sobrevivido graças aos trabalhos da Mãe de Santo, cujas performances, possuída por entidades, a enterravam aleijada e descalça uma vez que os pés não cabiam nos sapatos. Pois bem, entre os serviços oferecidos por dona Alexandrina a costura da boca do sapo era o mais requisitado por esposas ou amantes, no intuito de amarrar o seu homem. “Meu pai era encarregado de capturar sapo no mato, trazia o bicho e mãe cosia a boca dele depois de enfiar lá dentro a foto, cabelo, sangue, ou outro pertence dos amantes. O cururu era abandonado pra morrer longe... Dias depois, o resultado... A madame sempre ganhava da puta!”, lembrou com a saudade de quem foi agraciado por esposas de empresários ricos satisfeitas com o negócio: “Recebemos muitos presentes pelas amarrações...”. As sobras do dinheiro a boa senhora investiu na construção de imóveis para os “meninos”, como chamava carinhosamente os filhos. Soube, porém, que os malandros haviam feito negócio com o pastor recém-chegado do Rio de Janeiro. Apressado em acolher suas “ovelhas” num grande rebanho, o religioso demoliu as casinhas e ergueu ali o primeiro templo dos moradores que, até aquele momento, conheciam apenas os poderes da magia da “velha macumbeira”, como passou a ser chamada a mãe de Totonho pelos antigos clientes, agora irmãos e fiéis do pastor: “Só ele tem poder pra afastar o demônio!”, disse em voz alta irmã Rosinha ao passar em frente à casa de dona Alexandrina, onde Totonho e os dois irmãos voltaram a morar depois de vender suas casas ao pastor. Os clientes, agora todos irmãos, voltaram-se contra a captura de sapos e as imagens de mãe Alexandrina, como a chamavam carinhosamente. Diante do novo empreendimento, os três irmãos voltaram-se para outro negócio mais lucrativo do que costurar boca de sapo que é coletar o dízimo no templo. A última vez que os vi estavam felizes por destruir com chutes, na presença da ira do pastor, os santos e patuás de dona Alexandrina: “aquilo era coisa de satanás!”, disse-me irmão Totonho com a Bíblia debaixo do braço. “Se vocês venderam as casas, quebraram as imagens, destruíram o terreiro... como vivem agora?”, perguntei. “Ora, ora!... esqueceu-se dos dois sacos de farinha de seu pai?” “Kkkkk...” “Kkkkk...” Nossa gargalhada ecoou na igreja lavada com os incensos de dona Alexandrina...
Ana Barros
Natal, 23 de março de 2021.
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