terça-feira, 20 de julho de 2010

Além dos hormônios e da cultura

Conheci Alice na sala de espera do consultório da ginecologista. Naquele dia ela me contou sua história, como fazem todas as mulheres em sala de espera. Estava perto dos 50 e, há três anos, se preparou psicologicamente para o tão esperado momento. Começou a sentir pesadelos, palpitações, agitações. Lamentava-se às amigas. Menopausa era o tema preferido para explicar qualquer dorzinha. Aquele assunto foi ficando recorrente e chato. Apesar de todos os sintomas evidenciarem a fase temerosa, Alice continuou menstruando normalmente. Aquilo não era ainda menopausa.
Mas o que seriam então os transtornos que mulheres da sua idade diziam sentir? E foi durante esse período que passou por experiências pessoais e familiares muito complexas em cujo mergulho pode rever a vida que havia levado até então. Nesse processo de autoconhecimento compreendeu que a angústia e os transtornos, desde a primeira menstruação, faziam parte de uma personalidade sensível, humana e reprimida que havia se deixado levar, ora inconsciente ora conscientemente, pelas situações do momento.
A claridade interna fez com que Alice desenvolvesse um processo de superação das frustrações de filha e das culpas inculcadas socialmente, passando a uma maior aceitação de si mesma. Com o eu profundo descoberto e puxado, não sem muita dor e renúncia, para a realidade, o que restava enfim da Alice que acabava de entrar na temida menopausa? O que restava, me disse com alegria, era tão somente um corpo desperto e uma vontade que exigia se objetivar. E como as noites de Alice passaram a ser suaves a partir daqueles dias de descobertas. Desapareceram os “sintomas da menopausa” e ela se surpreendeu com a serenidade, com a ausência de medo da solidão, com o poder que ela não imaginava ter para enfrentar situações complexas como a morte e a separação de uma pessoa querida. Com o coração aquietado, pois a mente agia agora sob a magia das reminiscências que devolvem o ser a ele mesmo, com a ausência dos estrógenos que, possivelmente, associados à sua rígida educação, agiram de forma patológica sobre o seu corpo, podia dizer que estava bem na menopausa, ou... será mesmo menopausa? Será que o que chamamos menopausa não é outra coisa senão a determinação da morte do feminino pela ciência?
Façamos uma breve retrospectiva e veremos que a grande maioria das mulheres ainda vive sob a dominação ora da cultura, ora da ciência. Num passado bem recente, o valor da mulher estava ligado exclusivamente à reprodução e ao casamento. Após essa etapa, era velhice e morte. Hoje, com a maternidade sob controle, com a independência física e financeira, a mulher ainda continua amordaçada, desta vez, por um controle cientificista de seu corpo, com os sintomas da menopausa assumindo o lugar de todos os sintomas e comportamentos adquiridos ao longo dos anos de vida reprodutiva, de filha, de esposa, de mãe, de irmã, de trabalhadora, de ...aposentada.
Apesar de emancipada de uma feminilidade associada à maternidade, a grande maioria das mulheres não consegue vivenciar a sua objetivação no mundo. Passou do sonho do casamento ao pesadelo da menopausa. Passou de um corpo sem sentido, para um corpo (ainda sem sentido) manipulado pela ciência, a indústria de cosméticos e as academias de ginástica. Onde enfim encontrar a mulher que se fez no labirinto tecido pelas próprias experiências? A mulher que se auto-enxerga deixa de existir por existir, cria peso, sofre ainda, mas de outra espécie de sofrimento, pois não acredita mais nas fórmulas mágicas de eterna juventude, de eterno marido, de uma família e de um Deus que a protegerão na doença e na velhice. É nesse estágio doloroso do conhecimento, que coincide com a chegada da menopausa, ou melhor dizendo, da maturidade, que a mulher se descobre sujeito
Os homens também experimentam esse processo, só que com menos publicidade, uma vez que pertencem a um mundo mais racional e fechado, já assumindo culturalmente sua posição na história como sujeito. Em Lembranças do Subsolo, Dostoievski narra esse processo humano de forma angustiante, com o personagem central, um funcionário público, vivendo entre o limite das sensações e da razão, a qual ele duvida o tempo todo justamente por ser sempre surpreendido pelos sentidos, que são ele mesmo. Em Busca do Tempo Perdido, Proust faz a viagem para trás a partir de sensações como cheiros, sons, paisagens que ativam a memória e o levam a descobertas pessoais como lampejos, saltos na clarividência da individuação.
Mas no mundo feminino é Freud, no começo do século vinte, quem vai tentar curar a histeria feminina, esta, nada mais do que sintoma do silêncio das sensações e da mordaça subjetiva impostos ao corpo da mulher desde o começo da cultura. Um dos maiores “psicólogos” da vontade, Schopenhauer, dizia que toda força natural deve ser apreendida intuitivamente antes de poder chegar, pela razão, à consciência refletida. As “histéricas” não seriam um exemplo da vontade aprisionada no limite da loucura?
O que chama a atenção nesse assunto é que, de Freud para cá, a existência material da mulher melhorou inegavelmente sendo até uma ofensa hoje falar em histéricas. Mas será que o fundo da questão, ou seja, o domínio sobre o ser feminino não continua inalterado mudando apenas de nome? No passado, o patriarcado. Hoje, uma sociedade hedonista alimentada por um controle cientificista da fisiologia feminina, como bem analisa Ana Maria Furtado no artigo um corpo que pede sentido: um estudo psicanalítico sobre mulheres na menopausa, que vê a atual fase também como uma mordaça à individuação feminina. Ela escreve, citando J. Kristeva: restringir o desconforto somato-psíquico a um puro “desequilíbrio hormonal”, equiparando-o a uma doença, é repetir uma fórmula de controle sobre a mulher, presente na modernidade, que amordaça a singularidade da produção de sentido.
É justamente essa mulher, conhecedora de seu poder e de suas ações no mundo, que Affonso Romano de Sant’Anna tão belamente descreve no conto A Mulher Madura. Poetisa ele: “O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.”

Ana Barros
Natal, 12/11/08

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