domingo, 31 de dezembro de 2017

TEMPLOS

Não escondo minha irreligiosidade. Nem por isso cultivo indiferença a rituais, principalmente no período em que se comemora o nascimento do Cristo e a renovação do tempo. Se estou de frente à capelinha não evito o coro de anjos que chega até mim. Se caminho na rua do templo evangélico sou levada ao céu pela melodia gospel maravilhosa que vem na direção mundana da qual faço parte. Se escuto bater longe o tambor de Iemanjá, logo todos os terreiros tomam conta do meu corpo negro feito de mar. Porém hoje, véspera de Ano Novo, um novo e surpreendente ritual saudou logo cedo o fim do tempo consumado, fazer compras no mercadinho do bairro. O hábito de ir às compras no último dia do calendário é, talvez, o mais interessante entre todos os dias de compras no correr do ano. Interessante pela simples necessidade de matar algo, de livrar a carcaça do peso adquirido sem a reflexão de que um dia só não basta para desmanchar rochas metafísicas, nem aniquilar refugos espirituais apodrecidos na preguiça mental. Foi assim que, diferente de todos os templos conhecidos até aqui, eu descobria mais um, o mercadinho do bairro, no qual gostamos de esvaziar o saco com quem compartilhamos misérias produzidas no dia a dia do interior da casa. É puro êxtase esvaziar-se no último dia do ano, melhor ainda quando dentro do estabelecimento. Foi assim que chegamos, quase ao mesmo tempo, na gôndola das frutas tradicionais da ceia do Réveillon. Formávamos um pequeno e divertido grupo. Tagarelas alegres enchíamos as sacolas de peras importadas em promoção quando ouvi Júlia dizer alto “parece uma rapariga gorda”. Referia-se ao presidente Temer. “Kkkkkkk...”, gargalharam os demais que enchiam os sacos sem parar a conversa. “Mas Temer é magro e muito charmoso”, gritou o senhor de bengala com ares de militar da reserva e defensor do presidente. “É, mas tem o buchão de rapariga magra!” “Kkkkkk...”, gargalharam todos da analogia grotesca e politicamente incorreta da companheira de compras. O templo, ou melhor, mercadinho, acolhia seus fiéis com largo sorriso de cumplicidade e repondo as frutas macias e cheirosas. Os louvores, o gospel, as oferendas e as boas vindas ao novo tempo ali era escárnio contra o deus corrupto e mau. Júlia e grande parte dos clientes pagaram e foram embora. Os empregados mais uma vez renovam os alimentos com os preços tão altos quanto o dízimo cobrado pelos pastores das ovelhas jogadas no tempo do relógio que tictaqueia as últimas horas. “Deixe-me ir, querida!”, digo a Gracita, mulher de Antônio, meu colega na repartição. “Ainda vou pranchar os cabelos e passar o vestido... Vocês vão ver Bibi Ferreira na praça?”, pergunto encaminhando-me à porta. “Não... Vamos pra vigília da paz." E Ana Barros, tem notícia..., perguntei lembrando o primeiro nome das amigas do mercadinho que me veio à mente. "Ah, ela viajou com a turma da Terceira Idade... Réveillon em Tempo das Meninas."

Ana Barros
Natal, 31 de dezembro de 2017.

domingo, 12 de novembro de 2017

Não é dos bode


Temente a Cícero e fiel cumpridora da obrigação de visitar uma vez no ano o Juazeiro do santo padre, Moça Velha faz questão de repetir para todos que entram em seu bazar, o qual ostenta o nome da moça de 81 anos numa tábua velha de jatobá, que aquele negócio não “é dos bode”. Enquanto reflete a declaração espontânea da proprietária, o cliente conhecedor de segredos de “bode” logo percebe entre as quinquilharias da loja uma estátua de gesso branca do senhor de batina, chapéu de grandes abas e cajado na mão direita. “Mas que conversa é essa de não “é dos bode”, Moça Velha?”, perguntou certa vez o cliente alheio à senha, que entrara para comprar uma imagem de santo Antônio dos Encalhados. Este, jamais fora benevolente com os pedidos daquela moça, sequer consentiu a ela sentir o friozinho de um beijo correndo cintura abaixo. “Você não sabe?!”, ela disse em tom de assombro e incredulidade. “Sei não...”, arrastou o interessado em conluios com o santo dos solteirões. “Eu também nada sabia dessa conversa até receber aqui uns tempos atrás Antônio de Dedé, sabe? aquele...!” “Sim, sei!”, respondeu o cliente torcendo a boca de lado, gesto de quem conhece algumas intimidades de Antônio de Dedé e por elas não tem nenhuma simpatia. “Aquele poeta que as línguas sebosas”, ela carregou bem no “línguas sebosas” dando a entender que se dirigia ao cliente, “dizem receber Lampião todas as noites pra tramarem juntos a expulsão do inquilino que se apossou do cabaré da Peia Mole. Que isso morra aqui, viu!?”, diz em tom de ameaça e à boca miúda. “Pois bem, foi ele quem me contou que no Juazeiro a loja que não tem um troço de meu Padrim Ciço é tida como “dos bode”, e ali romeiro não entra!” “Explique melhor, minha linda Moça”, pediu o comprador de santo Antônio puxando o tamborete para demorar-se na prosa que corria frouxa e cabulosa. “Não sabe? Bode é o demo, o chifrudo de pata rachada!”, disse num cochicho carregado de medo como se a entidade do mal pudesse ouvi-los. “E quem é tido à imagem do bode pelos afilhados de meu Padrim Ciço? Os de lá,” disse Moça Velha apontando para o outro lado da rua, na qual se avistava espremida entre a bodega de Sebastião de Rita e a banca de jogo do bicho de Severino de Dadá, o acanhado e único templo dos evangélicos da cidade. O cliente, sem conter o espanto, se levanta do tamborete num impulso de macaco, coloca as mãos nos quadris e quase grita em tom de censura: “mas eu sempre vejo Moça Velha a caminho da Igreja aí da frente...”, observa sem entender o porquê da estátua do padre Cícero na loja de uma evangélica. “Oxe! se assunte homi!”, devolve a moça levantando-se também e com o dedo em riste. “Você acha que eu vou perder freguês? Pense comigo: se o romeiro não entra na loja que não tem alguma coisa do meu Padrim Ciço, nem mesmo um retrato do santo, por ser o negócio “dos bode”, eu aqui faço diferente. Tenho a minha imagem e não afasto ninguém, nem mesmo o senhor, meu cumpade, que de dia enche o saco de Santo Antônio com pedidos de casamento, e de noite vira Pomba Gira no terreiro de Pai Arco-Íris.

Ana Barros
Natal, 08 de novembro de 2017.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Meu amor morto

Corria entre jovens de músculos rijos sem querer ser um deles. Sabia a inutilidade do esforço em encher a pele do cotovelo. Foi por ele que você adivinhou o meu tempo: “ – 37!” Não dei valor à evidência de seu interesse sobre a parte ignorada por mim por não conhecer outra ação senão articular movimento. Aliás, completava sem pressa a segunda volta ao longo da pista quando dei de cara com você [meu amor morto] no passo dos jovens de vigor. Tão perto que ouvi sua respiração cansada e ofegante de velho. A corcunda elevara-se sob a pele enrugada assim como a minha empinara sob a pressão da gota. Paramos diante um do outro e nos olhamos com incredulidade hipócrita. Você disse “olá menina...” com o riso cínico e o olho enviesado para meu braço encoberto. “Quando vamos tomar um café?”, perguntou antes que eu dissesse “olá...”.  “Esqueceu que não tomo café...”, pensei e respondi com o frio e vazio “a gente se fala...” e o deixei para trás bem atrás dos jovens corredores. Nem bem retomei a corrida um pneu velho rodou sobre os meus pés atrapalhando a marcha. Abaixei e afastei o obstáculo com as mãos e, sem pular sobre ele, desviei para o lado.

Ana Barros

Natal, 02/07/2015 (concluída em 05/10/17).

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Tempo de rir

A crônica do cotidiano que faz rir, mesmo produzida por homens e mulheres desencantados, continua ativa e dando lucro com os novos recursos midiáticos. Basta observar a quantidade de shows de humor, sites e aplicativos de piadas, músicas de duplo sentido publicados diariamente. Porém a aparente felicidade não resiste a um olhar interessado em torno da cidade que se fecha em condomínios, grades, cerca eletrônica, câmeras, ciberespaços e vigilância 24 horas. Haveria mesmo tempo de rir numa atmosfera sem povo, na qual o medo substituiu a ousadia de ganhar a rua, uma vez que o riso requer parceiros de liberdade?

A rua é o lugar onde encontramos os dois, parceiros e liberdade, sem mais dificuldades. Basta sair pela porta da frente sem grades e, logo na calçada, encontrar aquela vizinha, ou aquele vizinho cujo “bom dia! como vai passando?” devolve a graça de ser gente e encontrar gente pela frente. Residir em bairro popular da cidade grande no qual ainda se encontram praças, calçadas, quadras e campos de futebol nos quais pessoas conversam, riem e, se encontra um livro adiante, leva, é viver no lado aberto, escancarado do mundo apesar de...

A Casa das palavras é um desses exemplos cultivados no caminho de quem não abandonou a rua. A casinha suspensa em alguma coluna à vista de quem passa, convida o transeunte curioso a se aproximar e ver o que tem lá dentro. É uma forma livre de abordar aquele que ama a rua e dela sabe tirar proveito para todas as brechas existenciais, pois é nela, a rua, que vive o povo que não se amolda e nem se deixa trancar.

E foi na corrida que faço em torno da Praça de Neópolis que, como já é hábito, parei para olhar o que tinha dentro da Casa das palavras, estrategicamente plantada pela Cosern, dona do projeto, embaixo do cajueiro sob o qual sou obrigada passar, que encontrei um exemplar de Tempo de rir, do poeta Celso da Silveira. Que prazer senti ao pegar o livrinho de 90 páginas editado pela Clima em 1984. Clima, de Carlos Lima, editor persistente que acreditou no talento e potencial de venda de todos os escritores do RN, apesar de inúmeros exemplares amarelarem nas estantes empoeiradas da editora. Duas surpresas naquele percurso tão batido e já sem surpresas: reencontrar o poeta açuense e a Clima.

Fiquei feliz mais uma vez em ter vencido a preguiça e a inércia digital, calçado os tênis e corrido à praça. Senti a brisa que vinha do mar da Ponta Negra, sentei no tronco da árvore serrado e comecei a ler o poeta cheio da graça provinciana do interior, assim como é a Praça de Neópolis e quem ali corre cheio ou procurando graça:

PARÓQUIA VIZINHA: “Antônio, fotógrafo da prefeitura de Natal viajou ao Upanema para sepultar uma filha. Na igreja um senhor informou: – Aqui tem padre, mas só veve na piroca de Augusto Severo”. Fechei o livro sorrindo e com o pensamento já a quem passaria Tempo de rir. Claro que seria para outra pessoa gorda de riso frouxo e íntima da rua como foi o poeta de Glosa Glosarum. Tirei a poeira das páginas, embrulhei e arrumei na mala do Bazar da Moça Velha. Imediatamente Tutu respondeu pelo ZapZap: “traga que eu mando daqui As aventuras de Pedro Malasartes”.

Ana Barros
Natal, 04 de setembro de 2017.


quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Linguarudas e poderosas

Um dos verbos mais repetidos na atualidade é empoderar, palavra pouco conhecida que, entre outros contextos, define o status da mulher contemporânea que se dá poder para além das reivindicações históricas: trabalho e igualdade de gênero. A mulher empoderada não reivindica, ela se dá o poder de empoderar, de desregrar. Alheias à ideologia que formou gerações de feministas entre as décadas de 1960 e de 1980, vestidas ou nuas, no grito das ruas ou no silêncio das redes sociais, jovens militantes desmantelam a arquitetura do poder – macho.

A batalha, travada no campo da fala [corpo], não mais no discurso politizado, tem causado estragos na honra e na moral daqueles que não sabem existir [nem se comportar] fora do mundo feito por e para eles. É, pois, no escárnio dessa honra e dessa moral, muitas vezes utilizando as mesmas palavras atiradas contra elas, que as mulheres encontraram a forma nem um pouco recatada de apeá-los do poder, ainda que este tenha sido conquistado numa época em que o discurso fazia parte dos mesmos argumentos defendidos por feministas e cientistas sociais no combate à desigualdade de gênero. Um exemplo recente merecedor de análise desse estranhamento de falas entre gerações é a nova música de Chico Buarque, Tua cantiga.

Fiel ao estilo que usa metáforas para falar do cotidiano de mulheres submissas, ora aos caprichos de seu macho, ora à sensualidade que condena ao tédio, à cama, pia e mesa, Chico recebeu o seu escracho via redes sociais de feministas que consideram a letra de Tua cantiga apologia ao adultério (Quando teu coração suplicar/ ou quando teu capricho exigir/ largo mulher e filhos/e de joelhos/ vou te seguir) num momento em que moças e rapazes do século XXI riscam de suas relações o termo “adultério”, bem como todos os compromissos celebrados socialmente como ideais por unir e manter sob o mesmo teto homem e mulher, mesmo infelizes. A crônica de Chico parece não dizer nada mais além da repetição dramática e vazia de um romantismo que, se vive ainda, sobrevive longe do feminismo contemporâneo no qual as vadias nada têm a ver com Geni, Teresinha, Lily Brau... tampouco com “o herói esperado por toda mulher”, “o cara certo”, celebrado por outro músico, Roberto Carlos, em Esse cara sou eu.

As redes sociais são os meios de divulgação e mobilização dessas moças que, em vez de queimar sutiãs em praça pública, usam a fala como instrumento de guerra. Libertas do pudor e obrigação de esconder o corpo exibem os seios, se pintam com frases inauditas e desatam a língua não deixando nada por dizer, mesmo que sejam chamadas de “vadias”. Aliás, apropriam-se do insulto nada civilizado, dito por um policial em Toronto, para criarem a Marcha das Vadias em 2011. Em vez de debates públicos acalorados, campanhas de conscientização, oficinas psicanalíticas com o intuito de unir homem e mulher, elas agem de imediato na destruição de uma fala e atitude que, em vez de submetê-las, provocam escárnio e revide ao usarem a mesma arma do inimigo, o verbo, para derrotar, destruir. Os exemplos vão desde a quebra de unanimidade em relação ao compositor brasileiro que mais decifrou poeticamente a subjetividade feminina, Chico Buarque, ao discurso anacrônico de um presidente da República, semelhante ao patriarca do Velho Testamento, à armadilha pronta para pegar cafajeste curtido no vício do poder da fama e da grana.

SORORIDADE

Há hoje uma tendência de moças tão ou mais talentosas que os rapazes da mesma profissão, seus concorrentes. Não são raros os exemplos nos quais, deliberadamente, elas excluem os colegas em nome da união e aliança entre elas. O estrago é grande e ressentido. Além de perder clientes, os rapazes [machistas e não] são punidos de forma prática e sem o feminismo engajado do século XX. Entre as profissões contemporâneas podemos constatar uma adesão significativa de jovens feministas ao mercado das artes, em particular artes visuais, tatuagem e música, estas com um histórico de ocupação de espaços públicos que coincide com a quebra de barreiras entre a proteção do lar (sagrado) e o perigo da rua (profano). São as meninas que foram para a rua com os meninos quem mais assume o poder da fala. Sem complacência e leitura de teóricas clássicas que as façam questionar – palavra em desuso quando o que vale é a ação imediata e não o discurso – as condições culturais e existenciais do companheiro de “trampo”, surge um tipo de acerto de contas não com o patrão opressor, mas com o boy parceiro de visibilidade em espaços até então de domínio exclusivo dele. Apesar de ter qualidade e reconhecimento social às vezes celebrado como feminista, esse boy se vê às voltas com o mesmo e antigo drama de trabalhadoras excluídas não pela má qualidade do trabalho, mas pela condição de gênero.
  
EVA ESCONDE A MAÇÃ

Olímpia conheceu Apolo na quebrada. Empatia à primeira vista. Ele 20, ela 18. Os dois gostam de Rap e logo começam os ensaios no quarto da boy. Não demora um dia o namoro começa no meio de poesias carregadas de lirismo real e cru da periferia, onde os dois compartilham política, arte e afeto com os moradores das ruas marginalizadas. E foi no ritmo de letras surgidas no calor da raiva coletiva que o casal chegou ao primeiro ano do relacionamento sério [publicado no perfil do Facebook dos dois] sem maiores abalos, senão aqueles provenientes lá de fora. A moça agora tem 21 e o rapaz 23. Moram num pequeno apartamento de dois cômodos e já não fazem sexo nem cantam juntos. Olímpia descobriu que é feminista ao entrar num grupo do Facebook. Apolo, que até então dividiu o mundo privado apenas com a companheira, não compreendeu. Perdeu seu amor e as fãs: “feministas curtem feministas” diz ele magoado. No passar dos dias, enquanto Olímpia cumpre a agenda cada vez mais cheia, Apolo, sem agendamentos, sem parceira e ameaçado de ter os culhões cortados de tesoura a cada instante que acessa as redes sociais, nas quais Olímpia tem milhares de seguidoras e divulga vídeos, em um dos quais zomba da falta de habilidade dos homens na performance do sexo oral, cuida da casa e dos gêmeos Hermes e Afrodite.

FECHEM AS PERNAS

Nos estilhaços do poder macho cristalizado há invisível e concreto efeito dominó na queda de valores até então inabaláveis pela sociedade homem. Aqui o exemplo sai da exclusão de gênero e entra na área dos costumes. A mulher do século XX jamais esquece a exortação moral carregada de malícia repetida em seus ouvidos desde a hora em que nasce ao instante que morre: “feche as pernas! você não é macho!”. Pois bem, fomos severamente obedientes e passamos séculos de pernas fechadas enquanto machos abriram as suas e dali jorrou esperma, e ali prenderam corpos, mentes, emoções, espaços. Recentemente cidades como Madri, Filadélfia e Seattle, atendendo reivindicações das mulheres, lançaram campanhas para que homens fechassem as pernas no transporte público onde ocupam quase todo o assento deixando as passageiras encolhidas e constrangidas na parte que sobra depois do passageiro se acomodar de pernas abertas. A campanha poderia ser vista como assédio moral por algum defensor de homens incomodados em ter de imprensar o saco em nome do conforto das mulheres que resolveram ocupar o seu espaço [também] dentro do transporte urbano. O recuo no banco e o constrangimento em ver que todos no veículo leem o cartaz e censuram a postura até então aceita como “coisa de macho” fazem com que os homens trilhem dolorosa e lentamente o caminho pelo qual retornam as mulheres que conquistam a liberdade de abrir ou não as pernas dependendo do lugar ou situação em que se encontram.

MORTO VIVO

Dia Internacional da mulher, 2017: o presidente Michel Temer diz ter “absoluta convicção do quanto a mulher faz pela casa, pelo lar. Do que faz pelos filhos. E, se a sociedade de alguma maneira vai bem e os filhos crescem, é porque tiveram uma adequada formação em suas casas e, seguramente, isso quem faz não é o homem, é a mulher”. As palavras de Temer nada dizem às gerações nascidas entre final da década de 1970 e início do século 21, filhas e filhos de uma contracultua das ruas politizadas e em discussões libertárias de movimentos artísticos, feministas, ecológicos, de negros e homossexuais. Graças aos filhos dessa sociedade ainda ingênua, mas não submissa, constatamos hoje uma atitude diferente da subjetividade teórica e do desabafo psicanalítico, autoanálise recorrente daqueles doutrinados na escola do medo e da repressão sexual. Para quem, então, o presidente Temer fala se hoje o muro que separou o fazer doméstico do fazer da rua está quebrado? Para quem, se o tema já evoluiu tanto que atinge um nível de liberdade individual não mais regulada entre dois gêneros que deviam obediência a papéis antagônicos? A fala superficial de Michel Temer no Oito de março é a prova risível do poder que o fez e o mantém morto-vivo. O poder fálico e senil que finge virilidade na sociedade que descobriu que ele pode ser ela, que ela pode ser ele, ou ainda que, não existe ele, não existe ela até um ou outra [ou os dois em um só] ser afirmado.

Ainda não totalmente exorcizado o fantasma vagueia na perspectiva feminista radical que não faz concessões a discurso mentiroso tampouco sorrir ao charme cafajeste do velho galã derrotado pelo tempo e exposição impiedosa do segredo que imaginou morrer com ele, pai de família e homem de bem. Para ilustrar, recorro aqui a dois exemplos protagonizados por mulheres com atuação na televisão e independência para escancarar segredos de alcova. O primeiro caso, bem resolvido no campo da ironia, foi a resposta dada pela atriz Taís Araújo da TV Globo. Otaviano pergunta a Taís, que é negra e casada com o ator Lázaro Ramos, também negro: “qual é o seu cabelo que o Lázaro mais gosta?” Em princípio a resposta de Taís parece desnecessária diante da futilidade da pergunta. No entanto, após ver a repercussão negativa do assunto ser tratada com riso e maturidade por jovens empoderadas nas redes sociais, compreendemos a postura de Taís: “Tem isso?” Esse “tem isso?” não é para mulheres crescidas, diminuídas e envelhecidas sob o olho do macho que decide tudo, até o penteado adequado. Taís, irônica sem perder o bom-humor ao perguntar “tem isso?” expressa a educação de um grupo de mulheres que escolhe para companheiro o homem que respeita as individualidades. E com o arremate de quem não deve nada a ninguém, Taís completa o raciocínio de empoderada: "eu não sei, porque eu sempre me preocupei com o cabelo que eu mais gosto".

O segundo exemplo é o mais infeliz entre os acontecimentos envolvendo gênero em redes sociais em 2017. O ator José Mayer, veterano macho alfa de novelas da TV Globo, seguro de que as garotas do meio artístico ainda granjeiam favores de galãs do porte dele para subir na vida, deu com os burros n’água ao lançar seus flácidos tentáculos sobre uma jovem figurinista contratada da emissora. 
Cansada dos assédios sexuais do senhor ator de 67 anos, Susllem Tonani, de 28, resolveu ser a primeira fêmea alfa a dizer um não bem alto ao galã que guardou a sete chaves os troféus conquistados na cama. “Vaca!” gritou Zé Mayer revoltado com a rejeição da moça para todos ouvirem no set de filmagem da novela na qual ambos trabalhavam. Ali quebrava o pacto de silêncio entre caçador e sua presa. Mais uma vez uma fêmea empoderada mostrava que o tempo presente é daquelas [e daqueles] que não têm segredos. Que esconder e sentir vergonha de homens que abusam do poder da força, do dinheiro ou status já não tem respaldo [em grupos] que os ignoram. Susllem deu o recado claro e escandaloso: “Acessei todas as pessoas, todas as instâncias. Contei sobre o assédio moral e sexual que há messes eu vinha sofrendo”, disse na ocasião ao blog Agora é que são elas, do jornal Folha de São Paulo.

VADIAS

Para concluir este apanhado de exemplos capazes de enfurecer feministas clássicas que acreditaram na possibilidade de igualdade de gênero, não podemos esquecer três acontecimentos de grande escárnio entre os internautas atentos à narrativa que vai além da igualdade de gênero. Na complexa comunhão da diversidade encontram-se as contemporâneas vadias e o LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais. Pois bem, num ambiente mix no qual atitude imediatamente vira conceito, não se aceita passivamente uma imprensa que insiste no discurso de poder exclusivo do homem hetero, branco e monogâmico. Aqui temos o primeiro caso. Este, diz respeito ao machismo adulador da revista Veja de 18 de abril de 2016 com o qual o periódico tece elogios às qualidades da primeira dama Marcela Temer logo após o marido tomar posse como presidente do Brasil em agosto de 2016: “Bela, recatada e do lar”, diz a manchete reportando-se ao modelo ideal de mulher “atrás de um grande homem”, no caso, Michel Temer. Se a revista pensou enquadrar as vadias e, em particular, a ex-guerrilheira e presidente cassada Dilma Rousseff, cuja biografia de atuação às vezes ao lado, às vezes à frente, jamais em situação inferior ou atrás de um homem, pensou errado. De novo o escracho nas redes sociais mostrava o anacronismo dos argumentos e enterrava a pretensão, não tão velada do semanário, de retorno à “casa de boneca” e à histeria como ocupação e condenação à mulher. Em uma das muitas intervenções, a feminista Nathalí Macedo escreveu em artigo no DCM – Diário do Centro do Mundo: Marcela Temer é a figura do retrocesso feminista e a Veja parece ter orgasmos com sua mera existência”, diz a jovem militante para alfinetar mais adiante na comparação, à qual usa a mesma metáfora machista que um homem utiliza quando reconhece uma mulher de poder não com igualdade social de gênero, mas com igualdade de atributos ao macho de pau duro: “Dilma é tudo que o patriarcado não quer (...) No bom e velho nordestinês: uma mulher de grelo duro”.

MOSTRE À MÃE DELE

Com a memória [do computador] cheia e a paciência também, a modelo de peças íntimas Rebecca Mcgregor, resolveu dar um basta às fotos de paus que enchiam sua página, na qual posta fotos usando acessórios de lingerie. Tomada de surpreendente iniciativa, a jovem fez um print da imagem de um desses homens pelados e disponíveis e compartilhou na página da mãe do malandro pós José Mayer verbal com a seguinte frase: “eu acho que você precisa ter uma conversa com seu filho sobre como abordar mulheres”. Mais adiante ela ensina como as amigas da rede social devem agir em casos semelhantes: “você está cansada de fotos de pênis não solicitadas mandadas por estranhos? Não quer conversas vulgares com quem você nunca falou? Faça como eu, tire um print da tela e envie para a mãe deles”. Pronto, o caso terminou diante dos olhos da mãe que – possivelmente conectada a alguma rede doutrinária da moral da família e dos bons costumes, longe das ruas e das redes sociais nas quais estão homens iguais a seu filho e vadias de todas as tendências comportamentais –, apagará o seu perfil da Internet? Tentará levar o filho até o bispo para livrá-lo do diabo vestido de calcinha e sutiã? Ou vai juntar-se às irmãs em Cristo num ritual de cura e libertação em frente à casa da modelo, onde queimarão as fotos satânicas de Rebecca, objeto de sedução do pobre rapaz? Todas as alternativas podem ser verdadeiras. A não ser que a mãe do rapaz seja empoderada e se junte às demais de tesoura na mão aos gritos de “corta o pau desse canalha!”.

SANSÃO CASTRADO

Após décadas de políticas [e instituições] criadas para o combate do machismo e suas sequelas, jamais se imaginou que a igualdade de gênero, palavra de ordem de feministas militantes, se desse pela palavra, não na retórica e outros mecanismos usados no passado no intuito de fazerem os homens entender que [socialmente] são iguais às mulheres, mas pelo uso da mesma linguagem ordinária com a qual homens sempre se dirigiram à mulher quando quiseram demonstrar seu domínio e desprezo. Em todos os fatos narrados aqui a disseminação da fala em redes sociais é a arma mais poderosa usada tanto por homens, para atacar, quanto por mulheres, para derrotar o inimigo com o mesmo ferrão. Porém, há uma grande diferença entre os dois guerreiros iguais, pelo menos na língua. Enquanto os primeiros avançam cuspindo vingança e ódio, elas, sem mais pertencimento, melodramas, nem discurso de conscientização, lançam de volta a saliva envenenada, não do mesmo ranço, mas da ironia das mesmas palavras usadas agora para castrar o inimigo. O exemplo mais simbólico no sentido de castrar o poder do macho com a língua vem da resposta da ex-namorada do deputado federal Eduardo Bolsonaro, Patrícia Lélis. Em seu status do Facebook ela dá o troco ao desabafo de macho ferido:

Eduardo Bosonaro: Eu começo a ‘entender’ a importância da figura masculina na vida de uma mulher quando minha ex-namorada que já se declara feminista é vista em uma balada LGBT acompanhada de um médico cubano, usando uma roupa vulgar e, como se não bastasse, rebolando até o chão. E ainda posta isso na internet, como se fosse uma atitude louvável. Lembrando que antes do feminismo ela andava com roupas discretas, não rebolava até o chão, e namorava comigo. #FeminismoÉDoença

Patrícia Lélis: “(...) Sabe qual foi o principal motivo que nos levou ao término? Eu descobrir que eu sou dona de mim, descobrir que sou um ‘mulherão da porra’, e quando descobri isso, você ficou com medo. Moleques não aguentam mulheres fortes. Só para terminar esse post: esse médico cubano que você tentou menosprezar nesse post, além de ser um baita ‘homão da porra’, me leva pra balada, não reclama das minhas roupas e maquiagem, dança comigo, e cá entre nós: tem uma ‘pegada’ que você nunca teve na vida. Beijo, Eduardo. E vê se para de me ligar e mandar mensagens dizendo que tá com saudades, tá chato já!”.

Patrícia é conhecida das redes sociais desde quando denunciou o deputado federal Marcos Feliciano por tentativa de estupro. Na época das denúncias, a alta cúpula do PSC, partido do deputado e do qual a jovem fazia parte, se mobilizou para abafar o caso e criminalizá-la. Patrícia chegou a receber propostas financeiras de líderes políticos e religiosos para permanecer em silêncio. Porém ela seguiu com a denúncia no Supremo Tribunal Federal, instância na qual políticos em mandato são julgados.

FIM DO “HOMÃO DA PORRA”

A resposta ferina e bem humorada de Patrícia é arma eficaz no abate do inimigo em tela digital. Não há notícias de revanchismo do namorado magoado. O silêncio nas redes sociais após o ocorrido pode ser sinal de recuo do macho ferido, sem, no entanto, recuar da postura dominadora perante a próxima namorada [vítima].  Porém, da mesma sociedade que vem a jovem feminista, também vem o jovem com a mesma necessidade de negação de um poder viril e opressor que não educa homens nem mulheres para serem como são. Cansados de reproduzirem a dureza afirmativa do macho, homens sensíveis a uma existência distanciada de estratégias de guerras insanas de homem contra mulher, começam a debandar da nau de paus. Basta acompanhar as postagens nas quais elas e eles compartilham as mesmas opiniões, a mesma negação de um poder que foi derrotado tanto na vida de um quanto na vida do outro. Não encontrei ilustração melhor para complementar o escracho carregado de ironia e realismo de Patrícia Lélis do que o artigo A masculinidade que não queremos, de Fábio Mariano da Silva, publicado no blog Justificando. Fábio conclui seu texto com o gesto suave e agônico do macho em seu crepúsculo: “Homens precisam descentralizar o olhar sobre suas práticas cotidianas e saber que comportamentos que foram social e culturalmente construídos precisam ser revistos em todos os âmbitos e de maneira interseccional de forma a desnaturalizá-los com vistas à construção da igualdade como fonte de benefício para todos e todas. Como disse no início você talvez já tenha visto esse texto, mas mais do que isso, o que temos visto é o tal homão da porra e isso não queremos mais”.                                 

Ana Barros                                        
Natal, 02/07/2017



quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Não mais mentiras

Na semana que antecede o Dia dos pais me vem a frase tantas vezes dita com amargura por aqueles senhores pais de família que se sentem traídos: “o pai é o último a saber”. Os motivos do desgosto tardio variam dos mais sérios aos mais insignificantes acontecimentos do dia a dia de jovens impulsivos que, temerosos da ira paterna, aprendem a arte da dissimulação. A mãe, submissa ao rancor e inacessibilidade do marido, raras vezes não ficou do lado do filho, sozinha, com as confidências e a angústia da inação. Não obstante a culpa, chega por vezes relaxar, e até sentir prazer em ser cúmplice da mentira do filho se esta nada mais for que um inocente meio de ganhar um pouco de liberdade longe dos olhos de fogo e da chibata do dono da casa. Porém, quando o assunto é de caráter complexo, que exige reflexão e boa dose de autoridade, a mãe padece terrível pesadelo ao lado do marido que, enquanto ela vara noites de insônia, ele ronca o sono morto dos alienados. Na dúvida, basta observar o semblante das mães velhas para enxergar as profundas marcas de perturbação adquiridas ao longo dos anos ao esconder do marido confissões do filho. Por seu lado, o pai e marido ignorante da história corrida debaixo de seus olhos, envelheceu como patriarca poderoso, dono absoluto da mulher e dos filhos improdutivos. Ele envelheceu imaginando-se respeitado e rodeado dos bens que acumulou com trabalho árduo e indiferença à vida ordinária, esta, administrada pela mulher. A rotina do patriarca limita-se à tarefa nobre de expandir o patrimônio.

Carta ao pai, de Kafka, é talvez o mais contundente registro de ignorância paterna vista como poder absoluto e incontestável. Tímido, sensível e temente ao extremo à figura potente do pai, Kafka jamais confiou a este as inquietações de alma. Enquanto o patriarca judeu e comerciante pragmático cobrava a presença do filho na loja da família, o rapaz se refugiava na subjetividade que produzia personagens tão complexos quanto à sua própria existência. Como dizer ao homem autoritário e poderoso que não deseja seu posto tampouco seu lucro monetário? Como fazer o pai aceitar a sua indiferença à ideia viril de herança? Em vez de uma atitude objetiva de enfrentamento e ruptura, Kafka, que era graduado em Direito e funcionário de uma companhia de seguros, prefere viver entre imagens e pesadelos de uma profunda inadequação objetiva. Porém um dia, cansado das cobranças nem um pouco educadas do pai, Kafka resolve escrever-lhe uma carta, na qual relata sua insatisfação de filho por não conseguir ser o homem de negócios idealizado por um pai bem sucedido, autoconfiante e vazio de imaginação. A carta é longa e ressentida, 112 páginas de letra magoada. Na dúvida se manda ou não ao pai, procura alguém a quem possa confiar o segredo e que o ajude a tomar uma decisão sensata. E quem, na visão de filho educado na moral de culpa e castigo, merecia conhecer a sua intimidade? Ora, só podia ser a mãe. Ela lê o texto e, antecipando a tragédia anunciada, convence Kafka desistir da ideia.

Se um jovem do século XXI, desconhecedor dos dramas existenciais característicos de gerações que o antecederam, incluindo aí a época do escritor de A metamorfose e O processo, lesse Carta ao pai, talvez dissesse: “Porra é isso... Tô fora! Esse omi é um otário!” Possivelmente esse jovem raciocinasse de acordo com a elasticidade moral dos costumes e consequente amplidão das vontades individuais do seu tempo. Realidade impossível na primeira metade do século XX do jovem Kafka, cuja saída foi retratar o indivíduo prisioneiro de um poder tirano, invisível e fatal. Infelizmente poder que ainda pode. Porém, cada vez mais jovens o enfrentam com o desregramento e a desconstrução da arquitetura do segredo, do sagrado, do privado, da família. Para comprovar basta ir às ruas de qualquer lugar, grande ou pequeno, e observar as meninas e os meninos em suas tribos diversas, para quem as angústias kafkianas soam como risível impotência e medo exagerado de guerrear contra pesadelos reais. Essas meninas e meninos rasgam na pele, no verbo e na rua, sua vontade mais íntima, mais pessoal, mais coletiva. Exibem (não representam) a performance do corpo que deixou de ser binário para assumir vários.

Voltemos, pois, ao pai de Kafka. Será que ele desapareceu da História como patriarca envergonhado pelo escancaramento de todos os segredos da sala de jantar? Será que a mãe de Kafka também sumiu da subjetividade masculina na qual simboliza menos cumplicidade de igual do que uso em benefício próprio da fragilidade materna, do medo do marido e da proteção da cria? Na ausência de certeza, ou na ignorância de sua existência, basta acompanharmos atentos a crônica cotidiana das ruas e das redes sociais para avistarmos Kafka e os pais de Kafka nas casas que cultivam através dos séculos o retrato amarelo de família. Esta mantém e protege a herança como valor maior a filhos educados nos princípios do capital. O nome dessa família continua o mesmo desde o final do século XVIII: pequeno burguês.

Mas... e os jovens, cada vez em número maior, que afirmam vontade e destino, este, eterna guerra contra os valores burgueses, sem a bênção ou maldição dos pais? Olhemos, pois, esses jovens rebelados, prestemos a atenção às suas afirmações de mundo. Elas e eles são, em sua maioria, filhos de pais separados, ou de mãe , que trabalham o dia todo como autônomos, assalariados no comércio, indústria ou na prestação de serviços. Para estes não há segredos nem hierarquia patriarcal. Não há vida dupla: uma, representação pública; outra, reclusão marginal. Deserdado desde a origem, longe dos bolsos cheios e da superioridade fria de um pai julgador que ignora os desejos do filho, este estende a sua existência para além de uma herança, para além da cumplicidade de mãe e filho da qual, muitas vezes, padecem os dois de profundo rancor sobre o entulho recalcado e dissimulado na mentira. Mas também o bordão “o pai é o último a saber”, que só permanece onde há segredo entre mãe e filho, dá lugar à verdade, à ausência do labirinto subjetivo.

Ana Barros
Natal, 05 de agosto de 2017.









terça-feira, 6 de junho de 2017

As precatas



Durabilidade sem descarte já foi sinônimo de sobrevivência de costureiras e artesãos. Infelizmente, vergonha dos meninos que eram obrigados a usar a mesma calça de fustão até virar pano de prato ou cueiro de menino novo. As precatas, depois de muitas idas e voltas à oficina para repor a meia-sola, finalmente transformadas em molambo, viravam rabicho para pendurar chaves no prego da sala ou coleira pra prender o gato ladrão. Assim mesmo: precatas. Foi dessa forma, do verbo precatar [prevenir, acautelar], que o popular, para proteger os pés de picadas de inseto e furada de espinhos, passou a chamar chinelo de dedo, aquele de uso diário que faz “lepe-lepe” no soalho de tijolos. Ao nascer, a meninada já se apresentava de precatas nos pés. A vizinhança com algum artesão facilitava o acesso até ele que, de tanto tirar medida e bater sola, acabava sem enxergar os centímetros da escala. O ofício de décadas era enfim abandonado, ou na melhor das hipóteses, passado de pai para filhos se estes também fossem artistas.  

Pobres e numerosas, as famílias passavam longe das lojas, em número pequeno e exclusivas da cidade grande, quando a roupa encolhia e a sandália deixava o calcanhar de fora. E, diante da falta de dinheiro e da impossibilidade de copiar a moda urbana, a ordem era passar o que não cabia mais ao irmão da frente, cujo manequim tinha que se adequar ao sexo e ao tamanho da herança. Muitas vezes a saída era empurrar pano molhado para aumentar, ou arranjar calços para diminuir o calçado. Não havia outra escolha. Era ficar nu e descalço se invejasse a roupa e os sapatos dos filhos de...

A indústria com a sua peculiar multiplicação dos objetos só apareceria décadas mais tarde quando os artesãos já haviam desaparecido por morte ou abandono dos clientes, uma vez que estes passaram a comprar sandálias mais em conta, de um tipo de material barato e abundante: o plástico. Este substituiu a manufatura do couro e, consequentemente, das precatas. Roídos de despeito, os filhos do pobre olhavam os pés de quem chegava da capital com as suas “chinelas japonesas” tão ao gosto dos orientais em seu costume milenar de alpercatas de dedo. Em sentido contrário as nossas precatas, resistentes, artísticas no estilo cangaço, confortáveis no arrastar sensual do nordestino, adequadas ao clima e vegetação áridos, eram abandonadas em nome da variedade, da cor e do preço. Foi assim que [do nada] apareceu à porta da rua o caixeiro viajante, vendedor ambulante da época, a abrir a enorme mala de madeira apinhada de chinelas de todas as cores. O preço é irrisório comparado com o valor cobrado pelas precatas feitas à mão e sob medida. Mas agora todos podiam ter uns três pares no correr do ano. E cada irmão com os seus. A abundância do plástico, que daí em diante substituiria acessórios, utensílios e uma infinidade de quinquilharias, não quer dizer que a situação financeira das famílias tivesse melhorado: continuavam pobres e numerosas.

Além de ser objeto de vida curta, a nova sandália não tinha conserto, não havia meia sola nem oficina de reparo para ela que, em vez de rabicho ou coleira, jogava-se em algum terreno por perto. As precatas [duráveis] davam passagem à moda das coisas efêmeras cuja produção em massa obedece a preço, imitação barata e quantidade de acordo com a pressa que cada um tem em se desfazer do que não dá mais prazer ou do que quebrou antes mesmo de ser pago ao mascate, que reaparece um mês depois para cobrar trazendo na mala mais cores e novidades. E foi a partir do despertar de que as precatas haviam perdido a condição de objeto único e durável que a crença, agora, estava na multiplicação e infinita mudança das coisas.  


O plástico, em sua diversidade de formas e utilitários, contribuiu [e ainda contribui] na conquista de mãe e filhas da libertação dos utensílios domésticos cujo manuseio significa fadiga, cansaço e não prazer. Por ser desde sempre domínio das mulheres, os afazeres da casa, bem como pequenos mandados, eram invisíveis ou desprezados como “coisa de mulher” pelos homens: pai e filhos. Até mesmo as precatas esquecidas debaixo de um móvel qualquer, ou num canto de parede, levavam os homens de casa a gritar: “Rosinha, ô Rosinha, traga aí minhas precatas...!”.

Ana Barros
Natal, 25 de abril de 2017.


quarta-feira, 19 de abril de 2017

Relações naturais

olhei em redor de mim 

o chorume descia doce desde que beijei a boca do lixo
mas não tarda o fim amarga
abre a ferida metafísica que rói
a sem-razão no mundo que alimenta sombra
guerra? então é guerra!
o corpo doído doido desprega
das dobras tantas vezes chama
tantas vezes dobra
porém esqueceu de olhar [cadáveres assombram]
e outra vez repousa débil
na lama
                  
Ana Barros

Natal, 28 de setembro de 2015 (concluída em abril/2017)

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Retorno de Judas

A raiva que escondem o ano inteiro para mostrar longe das peias da obediência do convívio entre homens e coisas foi rasgada no Sábado de Aleluia. Dia inventado para minha desgraça e redenção dos que são roídos de culpa. Talhado de baixo para cima com a faca que haviam cortado as vísceras do porco – sou estripado. Vejo cuspir no chão os molambos que foram até ali intestinos. O círculo de revoltados se fecha em torno da minha agonia: paulada sobe, paulada desce, paulada zumbe no ar gritado de prazer e fúria. Marmanjos aproveitam a inação dos membros de fiapos dos quais sou feito e descarregam urros de vingança e ódio. Fui morto sem fugir à covardia dos que querem a vida sem fezes: sou o espírito do pesadelo. Sou a inércia rompida quando me amarram à estaca fincada na rua diante da turba que grita “traidor!”. Ali sou esquartejado. Tenho a cabeça atirada longe com um pontapé do peladeiro da rua, o mais empenhado na minha destruição que, ele não sabe, é também a sua. Arquejo sob os dribles dos moleques quando sinto a ponta da faca entrar nas órbitas dos meus olhos de esmeralda. Abandonado e arrastado na poeira, cego porque vi o que é não visto, apanho algumas pontas de linha que haviam enroscado na estaca e amarro no último molambo que restou de mim caído. Porém, para a minha imortalidade, bruxa Cuca, que protege Judas, espantalhos e bonecas de pano, surge diante de mim carregada de artifícios da criação. Aproxima a mão de jacaré do pequeno retalho entrelaçado de linhas e guarda-o no couro mágico. E, meia noite em ponto, hora do lusco fusco da danação, Cuca recompõe meu corpo despedaçado. Com o polegar e o indicador da mão esquerda ela fecha as fendas onde antes brilhava meus olhos e arremata com um ponto preto em forma de cruz. Surpreso por não repor os botões de esmeralda no lugar que fora vazado, imploro que ela faça de novo eu ser. Mas já é manhã, Domingo de Páscoa. Não mais vestígios de ódio, nem mais pedaço de Judas. Os meus algozes estão calmos e veneráveis nos bancos da igreja. Vestem branco e trocam a carne sangrenta por chocolate. O padre repete: “aleluia, aleluia, aleluia...”.

Ana Barros
Natal, 04 de agosto de 2011.


sábado, 4 de março de 2017

Arrebol dos impulsos

Há um dito popular tão justificado quanto negado por aquele que observa a vida ordinária de um ângulo psicológico, na perspectiva intuitiva mesmo: pau que nasce torto morre torto, dizem os deterministas daquele cuja índole, já na velhice, é idêntica à da infância dos impulsos. Há quem diga não existir a pessoa velha, que o velho é o mesmo indivíduo desde o dia em que nasce até o dia em que morre. Que envelhecer é o processo obrigatório de quem veio sem pedir e de quem volta também sem pedir. Que envelhecer é a impressão das horas na superfície de quem estendeu os limites de ser à ausência do limite do qual é feito. Envelhecer, enfim, é manusear o mesmo caderno cujas folhas, em branco no começo, são marcadas e passadas pelos dedos calmos e cruéis do tempo. Aqui teríamos não a pessoa velha, mas o indivíduo estendido ao ilimitado de suas possibilidades, só interrompidas pela morte, instante último no qual é feita a clara distinção entre aquele que entendeu a sua condição de gente e o que existiu alheio ao passar do tempo sobre as folhas ora amassadas, ora rasgadas, permanecendo assim no princípio da vontade. Para este, amadurecer é esquecer, é fixar os sentidos não no que angustia e move em direção a nada, mas no presente vivo e cheio de promessas de felicidade. A razão, ensimesmada no mundo dos sátiros, desdenha o aprendizado que a moral determina como adequado àquele que joga luz no submundo dos impulsos. Ser de agora: este que atravessa o tempo em atenção apenas à criança que foi sem nunca deixar de ser.  Muitos com esse perfil são engraçados na infância, cômicos na juventude e debochados na velhice. É comum familiares e amigos não respeitarem o velho debochado, não levarem a sério o que ele diz e o que faz. Apesar do físico devastado e da memória falha, basta um instante para reencontrar neles os impulsos para os quais a idade avançada, segundo os manuais dos bons costumes, deve moldar. Mas este que não se deixa carimbar com o selo do conhecimento, representa sem pudor no palco que os demais, lúcidos e reflexivos, sobrepõem máscara sobre máscara. Viram as costas à luz de Platão, para quem a maturidade desenvolve o conhecimento que adquirimos ao sair da caverna. O observador que compreendeu a máxima do filósofo que separa a vida entre o mundo dos sentidos [inferior] e o mundo das ideias [superior] vê a si mesmo sem compaixão e aprendeu a se esconder dos menos atentos aos vícios da vergonha invisível, ou seja, da paixão impulsiva. É este conhecedor da escuridão [dentro] e da luminosidade [fora] da caverna quem sustenta que pau que nasce torto morre torto. “Então todos nascemos torto?”, quer saber o homem sensato para quem a prática da disciplina alinha o troncho. Mas o observador, irônico pela experiência de jogar as cartas marcadas, olha o homem sensato e responde: “claro que não. Mas também não nascemos reto”.

Ana Barros
Natal, 23 de fevereiro de 2017.





quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

LUCI

                                                                               
                                                                                                    
Ninguém percebe o alheamento dela às conversas dos adultos nem o convite a conhecer o espaço encontrado ao entrar na casa da tia velha e cega na manhã de domingo. Num piscar de olhos a menina desligada colhe para sempre os detalhes de duas vidas cercadas de outras vidas, todas, animadas pelo ritmo fatal do grande relógio da parede da sala, que já tiquetaqueou quatro gerações. Faz um ano que eu comprei a pequena propriedade onde Luci viveu com os pais até se mudar para São Paulo levando na mala os manuscritos que escrevera na infância solitária e povoada dos seres com os quais mantém intimidade desde cedo. Mas a nenhum editor interessou publicar: “tolos!”, disseram ao devolver a pasta com os escritos. Com a autoconfiança da escritora que gosta do que escreve apesar do mundo inteiro achar medíocre, ela guarda os originais para mais tarde publicar com recursos próprios. Mas a história termina aqui. Há meio século ninguém sabe dizer nada da menina nem que fim levou sua família, tampouco do acervo de Luci que, se viver ainda, já passa dos 90. Antes de entrar na intimidade da antiga moradora eu também não sabia nada da mulher que me levou à leitura de vinte cadernos em menos de três dias. Pois bem, o meu interesse por ela nasceu ali quando, pisando onde antes era o seu quarto, percebi algo semelhante à tampa de um baú coberto por restos das ruínas do que foi a residência da família. Provavelmente naquele ambiente no qual me encontrava, a menina, a adolescente e a moça, escreveram boa parte da produção que eu, possivelmente, seria o primeiro a ler. Ao tocar o objeto semienterrado penso primeiro ser uma botija cheia de ouro e moedas antigas, o que não era raro acontecer no meio rural no qual pessoas avarentas tinham o hábito de esconder da família dinheiro e joias debaixo da terra. Aqui acolá um parente malicioso e sabedor do segredo “sonha” com o defunto apontando o local do tesouro por ele deixado, consequência da sua estada no Purgatório, cuja tormenta só terá fim quando o escolhido arrancar a botija. Porém, ao enfiar uma estaca ao lado da arca e esta ceder com facilidade, tenho duas reações: a primeira, grande decepção por ver que ali só tem papel velho e, a segunda, uma felicidade indizível quando descobri tratar-se de manuscritos. Abaixo-me e arranco do meio do entulho o baú de um metro de comprimento por uns 60 centímetros de largura. Uma arca pequena que acomoda os originais de Luci, material para cinco livros entre romance, crônica e poesia [todos] rejeitados pelos editores e esquecidos ali ninguém jamais soube dizer por quem, uma vez que era desejo de Luci publicar quando pudesse pagar pela edição. A mim essa questão era menor que o interesse em tocar os cadernos e ler o que ela escrevera num tempo já apagado, porém, atualizado a partir do momento em que nele eu entrasse guiado pela leitura. Deixei a curiosidade me conduzir e entrego-me ali mesmo às folhas amarelas, mas bastante legíveis devido o cuidado que Luci teve em proteger os papéis ao vedar o baú com resina de goiabeiras, das quais ainda se viam alguns pés completamente queimados no entorno da tapera. Leio e, diferente da crítica dos editores, gosto de todos. Porém um, o menor entre eles, apenas cinco folhas escritas com a calma de quem conhece o Paraíso, me traz a sensação de que sou figurante naquela história. Leio e releio muitas vezes a narrativa em forma de monólogo.
                                                           
"Ela é alta, loura, magra e mansa: chamamos de tia. É o único parente que conheço com essas características entre os negros e pardos de onde venho. A exclusividade no meio mestiço em que nasci faz com que eu ache a senhora de olhos azuis e longas tranças douradas a menina do conto de fadas do meu livro de português, cujos pais a abandonam na mata por ser diferente dos outros filhos. Sempre que a visitamos ela está asseada e cheirosa a lavanda dentro do vestido longo de saia franzida, mangas três quartos e gola redonda. Um xale de lã crua, no qual enxuga a secreção dos olhos azuis, envolve o longo pescoço da mulher que caminha para os oitenta. As cores claras das estampas florais se harmonizam com os olhos translúcidos e a postura aristocrática da velha senhora. Demoro em me convencer de que ela não vê nada com aqueles olhos límpidos e interessados na conversa de cada um. Enquanto somos convidados a sentar nas cadeiras Luis XV, e o marido nos servir com chá de canela e biscoitos de maisena, ela relaxa os braços na espreguiçadeira de imbuia coberta de lona listrada já desbotada, no entanto, de uma beleza esmaecida pelo uso cujo prazer em ver dá ao conjunto a impressão de uma tela de Renoir. Ao lado direito da entrada o porta-chapéus que, além de acomodar nossas sombrinhas, serve de suporte para os biscuits de porcelana e a estrela de pano, escultura que alguém fez diligentemente usando os retalhos dos vestidos da dona da casa, os quais acendem a minha imaginação propensa ao devaneio.  O marido, a quem ela chama “Vós” e ele, por sua vez, dirige a ela o mesmo pronome “vós” carregado da formalidade aprendida, dizem, de um parente português que viveu entre eles, é quem administra a casa e cozinha para os dois. Um empregado, jovem e robusto, dirige a velha Pick Up, cuida dos animais e da terra.  Sinto um calmo prazer em pisar o campo verde e bem cuidado que cerca a casa, tão branca em sua majestosa localização no ponto mais alto da terra dos dois velhos solitários e rodeados das coisas com as quais vou manter por muito tempo relações de magia, uma vez que aos olhos da infância as coisas adquirem proporções, cor, cheiro e sabor jamais repetidos na vida adulta a não ser pelo instante da lembrança descolada do tempo. Ali tudo é grande e luminoso: a sala com três tipos de cadeira, o alpendre com uma dezena de armadores de madeira nos quais não se vê há anos vestígios de rede armada, os quartos, três ao todo, que eles chamam de alcova, com duas camas de solteiro também estilo Luis XV, o fogão de lenha que vai de um canto a outro da cozinha retangular, a mesa de madeira enegrecida e lustrada pela gordura das carnes tantas vezes servidas tem dois bancos em cada lado, nos quais sentavam doze pessoas e agora servem de cama para os gatos e passeio, quando estes estão longe, das rolas que vêm catar os grãos deixados cair propositadamente por minha tia cega.
                                                          
Tenho sete anos. Desde os cinco acompanho minha mãe nas visitas que faz aos parentes enfermos. Promessa a São Lázaro, de quem é devota, de visitar os “fragilizados” da família enquanto ela viver e tiver saúde. Nem meu pai nem meus irmãos a acompanham nessas obrigações piedosas: “quem deve suas promessas que vá só. Eu não vou!”, dizia meu pai zangado. “Eu também, não!”, completava a minha irmã mais velha agarrada à mão do caçula, o qual tinha por ela amor de filho. Assim terminava a discussão já conhecida de todos um dia antes da visita. Quanto a mim, pendurada no pescoço de minha mãe durante a frustrada tentativa de convencer todos a acompanhá-la, vou feliz e com o único intuito de ver as coisas, senti-las e cheirar os aromas que perfumam a estrada até a casa dos tios velhos. É desses passeios caridosos que faço meu lazer e libero a imaginação ansiosa. Há, no entanto, aqueles passeios dos quais eu não sinto outra coisa senão repulsa. Mesmo assim, não abro mão de nenhum. Penso: “quem sabe lá encontro algo diferente!” Lembro particularmente de uma dessas obrigações de minha mãe que ainda hoje me deixa de estômago revirado: A casa é de pau-a-pique, escura e miserável. Permanecemos duas horas no quarto com cheiro de urina dos lençóis do homem derrubado por uma gripe há mais de um mês. Mal nos despedimos do doente corro a cuspir até não lembrar mais das bolhas de catarro que ele, deitado, arremessava na parede colada à cama. Com o tempo, a demora na recuperação e a falta de higiene, os escarros dão à parede efeito luminoso semelhante a papel celofane dourado colado ali com o intuito de encobrir as imperfeições do barro jogado entre as varas que seguram a casa. Os reflexos da lamparina sobre a sujeira seca me acompanham até o dia da visita ao casal de tios aristocrata. Aí as impressões sombrias do quarto insalubre desaparecem para dar lugar à luminosidade aberta que me deixa de ânimo revigorado e esquecida do outro parente, também só, mas ensimesmado na sua impotência senil [desconfio que ele jogue catarro na parede como ação deliberada de vingança]. Já o fato de visitar o casal pela manhã, hora que expande a luz no interior da casa [se há doença ou recantos frios são incendiados pelo brilho matinal], provoca em mim a primeira sensação de belo que tenho guardada, o que mais tarde, ao contemplar o que sobrou da casa, seria desfeito diante da surpresa em constatar que aquele espaço da minha infância havia encolhido, perdido o brilho. Compreendi desde então que as coisas têm o fim de seus donos, que tudo se torna fragmento, entulho no espaço morto. Não sei precisar, mas, pela destruição causada pelo tempo e o abandono, o casal morreu faz muitos anos. E, Junto com eles, todas as vidas com quem e para quem viveram. Apenas uma, a lagartixa que me deixava transida de medo quando me encarava a balançar afirmativamente a cabeça do meio da touceira de lírios do quintal, deixou seus ovos nos escombros: sou apresentada a mais nova geração de lagartixas. Mas a amplitude ilimitada da minha infância havia encolhido no remanso do corpo sem a luz matinal que acende a chama da inquietação.                                              
                                                                   
Os velhos morreram, as visitas cessaram. Além de eu ter crescido e encontrado outros seres e outros espaços, meus pais são agora os velhos da história. Os jovens, incluindo meus irmãos e eu, se mudaram para a cidade. Os poucos que de início resistem à tentação da rua, logo abandonam a herança adquirida e esquecem de vez a terra que eu guardei intacta com a solidez das coisas que viram cristais. Mas a morte do que fica velho, e os chamados insistentes das comodidades da vida na cidade transformam o que viveu em estorvo para os que continuam. Sem guarda, a porta se abre não mais ao sol e às visitas de domingo, mas ao mofo, ao cupim e às ervas daninhas. A casa branca e imponente encolhe e imprime o ar sombrio de filme noir. Nada mais da brancura da cal encontra-se nela. Nada de humano se mexe no silêncio triste da casa velha sem dono. Sento no tronco do que restou da árvore atacada pelo enorme cupinzeiro que ali fixou morada e contemplo a ruína com o mesmo interesse com o qual me olho no caco de espelho grudado no resto de parede: temos, a ruína e eu, o limite anunciado. Do meu lado, envelheci e diminuí alguns centímetros como acontece a todas as coisas gastas, inclusive à casa grande e branca da minha infância, agora velha também, porém, diferente de mim que guardo imagens, a casa está vazia de tudo, não só dos móveis e dos corpos que deram vida ao ambiente, mas daquilo que vi como grande e belo nas longas visitas que fiz na companhia de minha mãe à casa na qual mantive diálogos com o não verbo. Ali, diante do silêncio cinza da natureza morta, livre da plástica que mascara o entendimento, encontrei o Tempo do relógio parado."

Ana Barros
Natal, 21 de janeiro de 2017.



         Ilustração: Binho Duarte