A
raiva que escondem o ano inteiro para mostrar longe das peias da obediência do
convívio entre homens e coisas foi rasgada no Sábado de Aleluia. Dia inventado
para minha desgraça e redenção dos que são roídos de culpa. Talhado de baixo para
cima com a faca que haviam cortado as vísceras do porco – sou estripado. Vejo cuspir
no chão os molambos que foram até ali intestinos.
O círculo de revoltados se fecha em torno da minha agonia: paulada sobe,
paulada desce, paulada zumbe no ar gritado de prazer e fúria. Marmanjos
aproveitam a inação dos membros de fiapos dos quais sou feito e descarregam urros
de vingança e ódio. Fui morto sem fugir à covardia dos que querem a vida sem
fezes: sou o espírito do pesadelo. Sou a inércia rompida quando me amarram à
estaca fincada na rua diante da turba que grita “traidor!”. Ali sou
esquartejado. Tenho a cabeça atirada longe com um pontapé do peladeiro da rua,
o mais empenhado na minha destruição que, ele não sabe, é também a sua. Arquejo
sob os dribles dos moleques quando sinto a ponta da faca entrar nas órbitas dos
meus olhos de esmeralda. Abandonado e arrastado na poeira, cego porque vi o que
é não visto, apanho algumas pontas de
linha que haviam enroscado na estaca e amarro no último molambo que restou de
mim caído. Porém, para a minha imortalidade, bruxa Cuca, que protege Judas, espantalhos
e bonecas de pano, surge diante de mim carregada de artifícios da criação. Aproxima
a mão de jacaré do pequeno retalho entrelaçado de linhas e guarda-o no couro
mágico. E, meia noite em ponto, hora do lusco fusco da danação, Cuca recompõe meu
corpo despedaçado. Com o polegar e o indicador da mão esquerda ela fecha as
fendas onde antes brilhava meus olhos e arremata com um ponto preto em forma de
cruz. Surpreso por não repor os botões de esmeralda no lugar que fora vazado, imploro
que ela faça de novo eu ser. Mas já é manhã, Domingo de Páscoa.
Não mais vestígios de ódio, nem mais pedaço de Judas. Os meus algozes estão calmos
e veneráveis nos bancos da igreja. Vestem branco e trocam a carne sangrenta por
chocolate. O padre repete: “aleluia,
aleluia, aleluia...”.
Ana
Barros
Natal,
04 de agosto de 2011.
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