sábado, 4 de março de 2017

Arrebol dos impulsos

Há um dito popular tão justificado quanto negado por aquele que observa a vida ordinária de um ângulo psicológico, na perspectiva intuitiva mesmo: pau que nasce torto morre torto, dizem os deterministas daquele cuja índole, já na velhice, é idêntica à da infância dos impulsos. Há quem diga não existir a pessoa velha, que o velho é o mesmo indivíduo desde o dia em que nasce até o dia em que morre. Que envelhecer é o processo obrigatório de quem veio sem pedir e de quem volta também sem pedir. Que envelhecer é a impressão das horas na superfície de quem estendeu os limites de ser à ausência do limite do qual é feito. Envelhecer, enfim, é manusear o mesmo caderno cujas folhas, em branco no começo, são marcadas e passadas pelos dedos calmos e cruéis do tempo. Aqui teríamos não a pessoa velha, mas o indivíduo estendido ao ilimitado de suas possibilidades, só interrompidas pela morte, instante último no qual é feita a clara distinção entre aquele que entendeu a sua condição de gente e o que existiu alheio ao passar do tempo sobre as folhas ora amassadas, ora rasgadas, permanecendo assim no princípio da vontade. Para este, amadurecer é esquecer, é fixar os sentidos não no que angustia e move em direção a nada, mas no presente vivo e cheio de promessas de felicidade. A razão, ensimesmada no mundo dos sátiros, desdenha o aprendizado que a moral determina como adequado àquele que joga luz no submundo dos impulsos. Ser de agora: este que atravessa o tempo em atenção apenas à criança que foi sem nunca deixar de ser.  Muitos com esse perfil são engraçados na infância, cômicos na juventude e debochados na velhice. É comum familiares e amigos não respeitarem o velho debochado, não levarem a sério o que ele diz e o que faz. Apesar do físico devastado e da memória falha, basta um instante para reencontrar neles os impulsos para os quais a idade avançada, segundo os manuais dos bons costumes, deve moldar. Mas este que não se deixa carimbar com o selo do conhecimento, representa sem pudor no palco que os demais, lúcidos e reflexivos, sobrepõem máscara sobre máscara. Viram as costas à luz de Platão, para quem a maturidade desenvolve o conhecimento que adquirimos ao sair da caverna. O observador que compreendeu a máxima do filósofo que separa a vida entre o mundo dos sentidos [inferior] e o mundo das ideias [superior] vê a si mesmo sem compaixão e aprendeu a se esconder dos menos atentos aos vícios da vergonha invisível, ou seja, da paixão impulsiva. É este conhecedor da escuridão [dentro] e da luminosidade [fora] da caverna quem sustenta que pau que nasce torto morre torto. “Então todos nascemos torto?”, quer saber o homem sensato para quem a prática da disciplina alinha o troncho. Mas o observador, irônico pela experiência de jogar as cartas marcadas, olha o homem sensato e responde: “claro que não. Mas também não nascemos reto”.

Ana Barros
Natal, 23 de fevereiro de 2017.





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