Na semana que antecede o Dia
dos pais me vem a frase tantas vezes dita com amargura por aqueles senhores
pais de família que se sentem traídos: “o
pai é o último a saber”. Os motivos do desgosto tardio variam dos mais
sérios aos mais insignificantes acontecimentos do dia a dia de jovens
impulsivos que, temerosos da ira paterna, aprendem a arte da dissimulação. A mãe, submissa ao rancor e
inacessibilidade do marido, raras vezes não ficou do lado do filho, sozinha,
com as confidências e a angústia da inação. Não obstante a culpa, chega por
vezes relaxar, e até sentir prazer em ser cúmplice da mentira do filho se esta
nada mais for que um inocente meio de ganhar um pouco de liberdade longe dos
olhos de fogo e da chibata do dono da
casa. Porém, quando o assunto é de caráter complexo, que exige reflexão e
boa dose de autoridade, a mãe padece terrível pesadelo ao lado do marido que,
enquanto ela vara noites de insônia, ele ronca o sono morto dos alienados. Na
dúvida, basta observar o semblante das mães velhas para enxergar as profundas
marcas de perturbação adquiridas ao longo dos anos ao esconder do marido confissões
do filho. Por seu lado, o pai e marido ignorante da história corrida debaixo de
seus olhos, envelheceu como patriarca poderoso, dono absoluto da mulher e dos
filhos improdutivos. Ele envelheceu
imaginando-se respeitado e rodeado dos bens que acumulou com trabalho árduo e
indiferença à vida ordinária, esta, administrada pela mulher. A rotina do
patriarca limita-se à tarefa nobre de
expandir o patrimônio.
Carta ao pai, de
Kafka, é talvez o mais contundente registro de ignorância paterna vista como poder absoluto e incontestável. Tímido,
sensível e temente ao extremo à figura potente do pai, Kafka jamais confiou a
este as inquietações de alma. Enquanto o patriarca judeu e comerciante
pragmático cobrava a presença do filho na loja da família, o rapaz se refugiava
na subjetividade que produzia personagens tão complexos quanto à sua própria
existência. Como dizer ao homem autoritário e poderoso que não deseja seu posto
tampouco seu lucro monetário? Como fazer o pai aceitar a sua indiferença à
ideia viril de herança? Em vez de uma atitude objetiva de enfrentamento e
ruptura, Kafka, que era graduado em Direito e funcionário de uma companhia de
seguros, prefere viver entre imagens e pesadelos de uma profunda inadequação objetiva.
Porém um dia, cansado das cobranças nem um pouco educadas do pai, Kafka resolve
escrever-lhe uma carta, na qual relata sua insatisfação de filho por não
conseguir ser o homem de negócios idealizado por um pai bem sucedido, autoconfiante
e vazio de imaginação. A carta é longa e ressentida, 112 páginas de letra
magoada. Na dúvida se manda ou não ao pai, procura alguém a quem possa confiar
o segredo e que o ajude a tomar uma decisão sensata. E quem, na visão de filho
educado na moral de culpa e castigo, merecia conhecer a sua intimidade? Ora, só
podia ser a mãe. Ela lê o texto e, antecipando a tragédia anunciada, convence
Kafka desistir da ideia.
Se
um jovem do século XXI, desconhecedor dos dramas existenciais característicos de
gerações que o antecederam, incluindo aí a época do escritor de A metamorfose
e O processo, lesse Carta ao pai, talvez dissesse: “Porra é isso... Tô fora! Esse omi é um
otário!” Possivelmente esse jovem raciocinasse de acordo com a elasticidade
moral dos costumes e consequente amplidão das vontades individuais do seu tempo.
Realidade impossível na primeira metade do século XX do jovem Kafka, cuja saída
foi retratar o indivíduo prisioneiro de um poder tirano, invisível e fatal. Infelizmente
poder que ainda pode. Porém, cada vez mais jovens o enfrentam com o
desregramento e a desconstrução da arquitetura do segredo, do sagrado, do
privado, da família. Para comprovar basta ir às ruas de qualquer lugar, grande
ou pequeno, e observar as meninas e os meninos em suas tribos diversas, para quem as angústias kafkianas soam como risível
impotência e medo exagerado de guerrear contra pesadelos reais. Essas meninas e
meninos rasgam na pele, no verbo e na rua, sua vontade mais íntima, mais pessoal,
mais coletiva. Exibem (não representam) a performance do corpo que deixou de
ser binário para assumir vários.
Voltemos,
pois, ao pai de Kafka. Será que ele desapareceu da História como patriarca envergonhado
pelo escancaramento de todos os segredos da
sala de jantar? Será que a mãe de Kafka também sumiu da subjetividade masculina
na qual simboliza menos cumplicidade de igual do que uso em benefício próprio
da fragilidade materna, do medo do marido e da proteção da cria? Na ausência de
certeza, ou na ignorância de sua existência, basta acompanharmos atentos a
crônica cotidiana das ruas e das redes sociais para avistarmos Kafka e os pais
de Kafka nas casas que cultivam através dos séculos o retrato amarelo de
família. Esta mantém e protege a herança como valor maior a filhos educados nos
princípios do capital. O nome dessa família continua o mesmo desde o final do século
XVIII: pequeno burguês.
Mas...
e os jovens, cada vez em número maior, que afirmam vontade e destino, este, eterna
guerra contra os valores burgueses, sem a bênção ou maldição dos pais? Olhemos,
pois, esses jovens rebelados,
prestemos a atenção às suas afirmações de mundo. Elas e eles são, em sua
maioria, filhos de pais separados, ou de mãe só, que trabalham o dia todo como autônomos, assalariados no
comércio, indústria ou na prestação de serviços. Para estes não há segredos nem
hierarquia patriarcal. Não há vida dupla: uma, representação pública; outra, reclusão
marginal. Deserdado desde a origem, longe dos bolsos cheios e da superioridade fria de um pai julgador que ignora os desejos do filho, este estende a
sua existência para além de uma herança, para além da cumplicidade de
mãe e filho da qual, muitas vezes, padecem os dois de profundo rancor sobre o
entulho recalcado e dissimulado na mentira. Mas também o bordão “o pai é o último a saber”, que só
permanece onde há segredo entre mãe e filho, dá lugar à verdade, à ausência do labirinto
subjetivo.
Ana
Barros
Natal,
05 de agosto de 2017.
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