sábado, 9 de abril de 2011

O céu ainda está cheio

Tenho admiração por leitores disciplinados que frequentam livrarias e costumam adquirir os lançamentos de ocasião. No entanto, leio aleatoriamente o que vou encontrando pela frente, principalmente se já foi lido e comentado por algum leitor. E esse hábito me leva a frequentar bibliotecas e sebos a procura de livros que chamam a atenção pelo excesso de manuseio e por quem escreveu o quê. Quanto mais velho, amarelado e marcado por manchas de dedo, mais me atrai.

Guardo na estante algumas raridades que conservo com cuidado para reler quando o tempo pede. Hoje terminei de ler, pela terceira vez, Thais, de Anatole France. O volume, de bolso e impressão vagabunda, está tão velho que fede e dá nojo manuseá-lo pelo aspecto seboso em que se encontra. Porém, aquele livro me encanta do jeito que é e jamais desejaria outro, novo e com edição de luxo, pois tem marcas de várias leituras e anotações de quarenta anos. Foi neste volume pequenino e amarelo que descobri Thais, personagem que dá nome ao título, paradoxalmente livre, trágica e ironicamente presa ao dogmatismo religioso, tratado por Anatole com grande sarcasmo e crueldade. Onde já se viu o corpo vencer a alma de um cristão? Pois é com esse intuito que ele vai mandar ao nada uma cultura de crenças arraigadas.

Reli Thais desta vez depois de muitas discussões com meu filho sobre outro tema que se irmana com o dogmatismo, a hipocrisia. Hoje, de cima dos meus cinqüenta anos e conversando com um jovem de vinte, pude iluminar por completo as nuvens que manchavam minha consciência a respeito dos dois temas. E, sem surpresa, percebi que ainda não passamos da transição moderna; que nos afogamos ainda na lama obscura da hipocrisia e do dogmatismo. Por mais informação, conhecimento, tecnologia, pós-modernidade ou hipermodernidade, continuamos patinando entre o medo, o dogma e o salto para o silêncio e vazio do céu.

Este texto nasceu há mais de vinte anos e só agora tenho a compreensão necessária para escrevê-lo, pois me dei conta do limbo dogmático em que patinava. Pois bem, este texto começou há mais de vinte anos quando descobri que a família mais unida, mais encantadora e feliz que eu conhecia era uma mentira amparada em dogmas. Como sentia inveja daquela família risonha, sem problemas, unida na dor e na alegria, nas camaradagens e no sigilo de suas fraquezas: o lacre classe média pequeno burguês cristão impedia que soubéssemos algo feio germinado no seu interior. E eu, nascida de uma família sem educação nem princípios cristãos sérios, completamente explosiva e sem sigilo, sem nenhuma cerimônia com o privado, vinha de um ambiente onde rasgávamos as confidências na mesa, na hora das refeições, nada ficando para o dia seguinte. Resolvíamos os conflitos no instante em que o fato se consumava. Aquele jeito selvagem de ser da minha família me deprimiu e levou à negação de uma cultura que só agora descubro, dava mostras de poder do corpo contra a alma.

Pois bem, um dia, o filho caçula daquela linda família se matou jogando-se de cima do viaduto. Recebi a notícia com espanto. Como, um jovem tão feliz?... universitário, classe média, branco, católico, boa pinta e com uma namorada linda e rica? Como?... Fiz esta pergunta durante anos e, na limitação conceitual de minha consciência não encontrei reposta convincente. Mas não desisti de levar a questão adiante. E nesse meio tempo meu filho cresceu e se tornou um furacão de ideias, rebeldia e ação. Mas aquele modelo de família equilibrada, pacífica, sem conflitos dormitava no meu mais vergonhoso medo e covardia. Quis impor o modelo ao meu filho. Ele gritou não! E aí começamos a longa jornada conflito adentro.

Frenquentei muitas vezes ainda aquela família e cada vez vi algo feio que me atirava para longe do mundo limpo e feliz que eu conhecera. Mais para frente soube que naquele reduto sagrado sondava o incesto, a loucura, tentativa de homicídio, alcoolismo e homossexualidade velada. Quase perdi a razão ao me reconhecer tão idiotamente ingênua. Entretanto, é problemático jogar fora um couro cultural que curtimos ao longo de uma existência. Quando nos dispomos a fazer isso não basta só vontade. Tem que ter completa abertura para um mundo múltiplo e sem fronteiras entre o ser e o devir.

O germe da tortura estava implantado e dei início à quebra de valores que já não proporcionavam outra coisa senão medo. Mas medo... de quê!? Ora, foi no medo que nossos pais foram buscar regras para nos controlar, fonte esgotada e vazia de sentido num mundo contemporâneo pautado pela ausência de regras e de limites que não sejam construção da autonomia do indivíduo. Quando meu filho gritou não! ele negava com veemência o medo e queria experimentar, aprofundar ou não, os riscos dos quais toda a minha geração fora poupada em nome da honra, da virtude e da moral copiada da cartilha cristã/burguesa.

Quem tem hoje entre quarenta e sessenta anos é cria do medo e, paradoxalmente, já que são herdeiros também de toda uma cultura moderna, querem reproduzir o medo. Medo inculcado por fraqueza e covardia para assumir a existência real como se expressa através de nossos impulsos, corpos e sexualidade que, mesmo reprimidos, continuam vivos e expostos ao conhecimento de uma percepção aguda que, ao deter os olhos sobre a miséria dissimulada, logo dá conta do selvagem submerso. Após muito tempo e chegada a maturidade, enxerguei enfim o oceano de má consciência em que insistimos boiar.

E foi com a compreensão de algo que só a insistência do germe da perturbação nos leva a afundar no lodaçal, que conclui recentemente a leitura de Thais. E o que mais me impressionou no romance foi o final, quando o abade de Antinoé, Paphnucio, tem enfim a alma vencida pelo corpo e aqueles que o adoravam como santo enxergam em seu semblante exaltado de desejos sexuais a figura de um vampiro. Por que vampiro? Talvez a imagem tenha sido usada pelo autor por representar a eterna fúria do desejo e da morte sobre a carne. O abade é a encarnação viva dos impulsos sexuais que a Igreja nega e recolhe à periferia do corpo como imundície. Paphnucio não consegue de forma alguma, mesmo com todos os suplícios e tormentos do deserto cheio de demônios que o tentam dia e noite, ser espírito santo. Termina a história com o santo cristão tomado pela consciência despertada e revoltada contra Deus, a metafísica e a má consciência.

ALÉM DE SANTO ANTÃO

Em Thais, Anatole France, pensador moderno, faz uma devassa nas crenças da Igreja na época em que Santo Antônio (ou Santo Antão- nascido em 251 e falecido em 356) foi tentado pelo diabo no deserto do Egito e resistido aos encantamentos do demo com muita penitência, reclusão, afastamento do mundo e dos desejos da carne. Paphnucio era um dos monges seguidores dos ensinamentos do Santo. No entanto, quanto mais renunciava ao mundo e se auto-flagelava, mais tormento e fracasso na empreitada conquistava, ele um homem jovem, ex-aluno de filosofia junto ao filósofo cínico Nicias, de Alexandria. Ambos tiveram uma história mundana nesta cidade de gozo, prazer, luxo e banquetes regados de todos os tipos de fantasias sexuais e discursos filosóficos, tão em moda naquela época dos grandes debates em torno do absoluto, da verdade, da relativização ou negação das coisas.

Aos grandes políticos, religiosos e filósofos da época, juntavam-se cortesãs e atrizes de sucesso do teatro, que levavam juventude, beleza e divertimento aos homens ilustres e entediados. Thais era a atriz-cortesã do momento, a mais nova encarnação de Helena de Tróia, segundo Nicias, e que Paphnucio (inconsciente de seus desejos sexuais pela beldade), pensava estar predestinado a salvá-la do mundo. Mas coitado, tinha apenas ciúmes da mulher que ia para a cama com muitos homens ricos e felizes. Ele, cada vez mais se tornava hediondo, miserável e louco, pois escondia no fundo se si o instinto bruto do gozo. Isso fica evidente quando, perversamente, vence Thais e a arrasta descalça pelo deserto e, torturado pelas lembranças lúbricas dela com Nicias e os outros amantes, cospe-lhe no rosto e profetisa sentenças terríveis.

O que mais chama a atenção em Thais é a perversão do dogma que toma forma na superfície da carne. Por mais que Paphnucio expulse o demônio de seus domínios, mais seu físico aparenta ser dominado pelos instintos. Fato que leva todos os santos do deserto olharem-no com ressalvas e conselhos para uma observação maior dos mandamentos de Deus. No entanto, o pobre religioso sectário, o anti-herói de Anatole, jamais encontrará Deus apesar de ter a convicção de sua presença. Ele estará para sempre atado às necessidades da terra e da carne. Em Thais podemos ver a agonia do homem moderno que mata Deus e dá início, ainda que cheio de revolta metafísica, o seu destino num mundo vazio de céu.

Thais, ao contrário de Édipo, morre por ter conhecido, por ter visto demais e não suportar a vida sem dogmas. Não faz concessões nem ao luxo nem ao amor, nem tampouco à lucidez última de Paphnucio, que os transportaria ao paraíso terreno. Paphnucio, ao contrário, desmascara o dogma. Nega com ódio o Deus que o abandona depois de todos os sacrifícios e de toda entrega para resgatar Thais, ou seja, para salvar a moral das mãos dos homens pérfidos, ele também, um homem pérfido, cheio de vontade, desejo e ardendo de paixão por uma fêmea. Ah, é de enlouquecer o pobre monge de Antinoé, cujas forças e energia foram desperdiçadas na exaltação de uma mentira, de uma loucura, da luta vã da alma contra o corpo.

Ana Barros
Natal, 21 de março de 2011.

Um comentário:

  1. Me identifiquei com um desses personagens... é lúdico e real, fascina e assusta, me fez ver quanta coisa relmente ídiota nos preocupamos!
    Ainda mais do jeito que você comenta é um convite a uma reflexão violenta do mundo, de si e de tudo.
    Até que se possa sentir a segurança de engradecer a sua própria história sem vergonha, e sem medo.

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