Conheci recentemente Epitáfio, da banda inglesa King Crimson. E graças à Internet, pude ter acesso a essa música de tão alta qualidade poética e metafísica. Comparei de imediato a complexidade da letra a uma das histórias de Kafka, Diante da lei (capítulo de O processo), que li há algum tempo e, semelhante a Epitáfio, me deixou durante vários dias com um peso, uma sensação de derrota, mas ao mesmo tempo de inquietação básica dos que forjam no caos a fenda da travessia. Ouvindo Epitáfio compreendia o drama kafkiano que viria a ser sentido e ritmado pelos roqueiros progressistas de King Crimson.
Epitáfio é um lamento à jornada do homem num mundo hostil e insensível às peculiaridades do que é humano. O ponto alto da música é quando o vocalista, com a voz triste e suave sentencia: “Entre as portas de ferro do destino foram semeadas as origens do tempo.” Por mais que se desespere o homem não consegue derrubar as vigas que o separam da existência feliz. “A confusão será o meu epitáfio. Enquanto rastejo por caminhos tortuosos. Se conseguirmos todos poderemos sentar e rir. Mas temo que amanhã estarei chorando. Sim, temo que amanhã estarei chorando”, lamenta o músico sem demonstrar esperança diante dos exemplos reais de massacre, injustiças, violência e todo tipo de exclusão no mundo finito dos homens.
Para o Sísifo de Epitáfio apenas a expulsão do paraíso, a sarjeta e a morte como castigo eterno para quem espera redenção concedida e não potencialmente conquistada por um indivíduo pleno de suas forças e discernimento. “Se conseguirmos todos poderemos sentar e rir. Mas temo que amanhã estarei chorando.” Aqui a crença numa revolução, crença num ideal de paz planetária, crença num sentido, mas ao mesmo tempo dúvida e lágrimas num mundo no qual não se apresenta nenhuma segurança, nenhuma porta aberta por um Messias.
No entanto, no comecinho da música – “ As paredes nas quais os profetas escreveram estão rachando. Sobre os instrumentos da morte a luz do sol brilha resplandecente” – há uma visão de aniquilamento e superação se o homem souber aproveitar o instante de profunda dor e conhecimento diante de um sol que brilha resplandecente. Mas o homem dividido entre um imaginário divino e um existir pleno suspeita que em vez de sorrir vai chorar. E as portas de ferro estarão para sempre plantadas no umbral de quem se atreve intervir no Destino.
O capítulo Diante da lei (O processo – Kafka) é bem semelhante à profecia de Epitáfio: “Diante da Lei está um guarda.” Esse guarda não vai deixar jamais o cidadão da província entrar na sala. Além dele, há uma infinidade de guardas imediatamente superior. O homem insiste passar pela porta e o guarda o repreende severamente: “Se tanto o seduz, tente passar contra a minha proibição!” E o desiludido camponês, depois de contemplar mais de perto a cara brava do guarda “chega à conclusão de que esperar é melhor até que seja outorgada permissão para entrar.” Aqui também o homem enfraquece diante do poder invisível, diante da força da Lei, uma Lei que não é vista e cujo desconhecimento tem que ser obedecido ou então forjada uma abertura. Uma Lei que obriga o sujeito esperar indefinidamente até que lhe seja outorgada a passagem. Infelizmente não vamos encontrar em Kafka a realização dessa outorga, dessa superação niilista com toda a sua consequente carga problemática. Para nossa frustração o personagem morre de tanto esperar diante do guarda impassível, que espera em vão um impulso de rebeldia do camponês contra a ordem estabelecida.
O pesadelo, as portas de ferro, as paredes nas quais os profetas escreveram e que estão rachando, o guarda terrível impedindo o conhecimento da Lei são símbolos que ilustram o imaginário do homem de Epitáfio; do homem esperançoso de algo eterno e fora de si, Algo a quem possa entregar seu destino finito e tortuoso e poder enfim sorrir com os outros no paraíso eterno de benesses. Mas ambos, Epitáfio e Diante da lei, à semelhança de Esperando Godot, de Beckett, representam a busca angustiante de redenção além das contingências existenciais, as quais se apresentam com toda a fúria concreta, deixando os homens cegos de esperança espantados diante da recorrente negação de paraíso, de unidade, de felicidade e necessidade de guerrear com todos os obstáculos contrários a sua particular e universal autonomia; outorga não de um ser metafísico, mas da vontade que afirma sobre a vontade que nega, da vontade que se revolta diante das portas de ferro e do guarda que ameaça.
Ana Barros
Natal, 17/04/2011.
Epitaph
King Crimson
The wall on which the prophets wrote
A parede nas quais os profetas escreveram
Is cracking at the seams.
Estão rachando
Upon the instruments of death
Sobre os instrumentos da morte
The sunlight brightly gleams.
A luz do sol brilha resplandecente
When every man is torn apart
Quando cada homem se distancia
With nightmares and with dreams,
Com pesadelos e sonhos,
Will no one lay the laurel wreath
Ninguém colocará a raivosa coroa de loros
As silence drowns the screams.
Quando o silêncio afoga os gritos
Between the iron gates of fate,
Entre as portas de ferro do destino
The seeds of time were sown,
Foram semeadas as origens do tempo
And watered by the deeds of those
Pelos feitos daqueles
Who know and who are known;
Que conhecem e são conhecidos
Knowledge is a deadly friend
O conhecimento é um amigo mortal
When no one sets the rules.
Quando ninguém estabelece regras.
The fate of all mankind I see
O destino de toda humanidade eu vejo
Is in the hands of fools.
Está nas mãos de loucos
Confusion will be my epitaph.
A confusão será o meu epitáfio.
As I crawl a cracked and broken path
Enquanto rastejo por caminhos tortuosos
If we make it we can all sit back and laugh,
Se conseguirmos todos poderemos sentar e rir
But I fear tomorrow I'll be crying,
Mas temo que amanhã estarei chorando
Yes I fear tomorrow I'll be crying.
Sim, temo que amanhã estarei chorando
Diante da Lei (O Processo – Kafka)
www.esquerda.net/media/Diante_da_lei.pdf
Esperando Godot (Samuel Beckett)
comumlugar.files.wordpress.com/.../samuel-beckett-esperando-godot.pdf
Oi, Ana,
ResponderExcluirO King Crimson é uma grande banda e Robert Fripp um dos maiores guitarristas do rock.
Não tinha sacado a semelhança temática da letra de Epitaph com o Processo, um dos livros mais arrebatadores e inquietantes de Kafka.
Bom poder dividir o espaço virtual com você - volto outras vezes, ok?
Abraços!