sábado, 30 de abril de 2011

A morte do prefeito

Ele era o prefeito da cidade. Humano. Um tanto paternalista, admirado por muitos e odiado também por muitos. O estilo sensual e sofisticado, simples em todos os sentidos, fez com que na hora extrema a casa se enchesse de amigos, estranhos e correligionários de todos os lados da cidade e de regiões vizinhas para vê-lo uma vez mais. Da sala à cozinha, do quintal ao quarto do enfermo formou-se uma longa fila com pequenos aglomerados comentando em voz baixa as suas peripécias. Agonizava diante de uma multidão, cuja curiosidade dissimulada em lágrimas não dava para dizer se era de compaixão ou maldade: “Será que ele entende alguma coisa”? indagavam os mais sensatos sem querer acreditar que aquele homem desmemoriado e com câncer nas cordas vocais, há pouco tempo altivo, voluntarioso, fosse chegar ao fim sem a lucidez e ascese moral de um Ivan Ilitch na hora da morte.

Semelhante a Ivan o Prefeito teve também sua grandeza moral, orgulho, vaidade, sensualidade, qualidades que fazem de um ser mortal parecer aos demais, comuns e vulgares, uma espécie de deus adorado justamente pelo seu comportamento exuberante e alheio às convenções e regras sociais. Completamente intuitivo e sem instrução, sabia apenas ler e escrever muito mal, tinha gosto apurado para a moda em todas as vertentes. Na música, consumia o melhor que o mercado oferecia no momento; nas roupas e acessórios, ele e a mulher, compravam em lojas especializadas da capital; na culinária, os melhores restaurantes da época. Era um assíduo freqüentador do Grande Hotel, único hotel de luxo da Natal da década de mil novecentos e setenta. Carros, casas, passeios, sempre o melhor. Ah! o primeiro televisor da cidade foi ele quem comprou, ainda não era prefeito, para assistir com os amigos em sua casa a Copa do Mundo de 1970. Formavam-se plateias barulhentas todos os dias na sala ampla e sem cadeiras para acomodar todos, principalmente homens.

Dado às coisas do mundo, o Prefeito poderia muito bem entregar-se ao luxo e ao orgulho dos heróis programados e, longe dos eleitores, na sua torre de cristal propositadamente criada por algum profissional do marketing, provocar na imaginação do vulgo as mais apaixonadas lendas. Mas não foi assim. Não havia na cidade quem, como seu convidado, não comeu em sua mesa e nos melhores restaurantes da capital; não só experimentou ótimas refeições em ambientes caros, mas banhos de mar e piscinas, jogos no Machadão (Vasco da Gama, time do coração), vaquejadas, bares e todo tipo de festa pagã e religiosa. Poderia alguém insinuar: “Era político, tinha interesses!” Porém, não. A política para ele, como a fortuna do pai e a herança do sogro, vale lembrar que o Prefeito jamais trabalhou antes de ser prefeito, era mais um meio de confraternização ampliada, confraternização tão expandida que o levou ao vício e à morte precoce aos cinquenta e três anos.

Bebeu. Fumou. Amou. Dançou. Agora estava sem razão... e tinha câncer. Será que no meio daqueles curiosos havia inimigos? Sim, o Prefeito tinha inimigos. Naquele momento muitos deles rondavam seu leito de morte apenas com o intuito de gozar de perto a agonia de quem se atreveu desdenhar a religião, a moral, a tradição, apesar de, paradoxalmente, ser profundamente religioso, pois não era devoto de São José e de Nossa Senhora de Fátima? Não ia à missa aos domingos e pedia a bênção e beijava a mão de sua mãe, dona Ritinha, que o amava mais do que às duas filhas, não porque a amasse também, mas por ser ele o mais doce, o mais silencioso, o mais sublime... ou não seria o mais...dissimulado? Quantos porres! Quantos adultérios! Quantas lágrimas derramadas pela esposa! Quantas amantes desoladas... e maridos corneados!

Alguns contemplavam o moribundo como a querer naquele momento final que ele pedisse perdão pelas suas depravações. Mas era tão somente o desejo de homens sérios, sensatos e virtuosos que, ao contrário do Prefeito, amavam a ordem e respeitavam as leis sem jamais, apesar de todo um trabalho de convencimento, ter conseguido conquistar o dândi para as trincheiras moralistas. Qualquer intenção, boa ou má, era inútil naquele momento. O Prefeito não mais via nem conhecia ninguém. Nenhum gesto ou juízo atingiria sua honra, se é que ele acreditou que a tivesse um dia de acordo com os seus contemporâneos.

A cama estava posicionada de frente para a porta. Quem entrasse na sala de estar já dava de cara com o doente. As carpideiras choravam e desfiavam o rosário de lamentação. Os evangélicos estavam lá também e ajudavam com seus cantos desprovidos de humanidade a aumentar ainda mais a indiferença no semblante do Prefeito. Do homem pleno, cujo mistério na hora da morte jamais saberemos se escondia paixão ou desprezo, restava a imagem impotente sob a vigília do fim.

Havia perdido a voz e a consciência, elementos supérfluos para quem entra noutros territórios que não os espaços previsíveis da tagarelice do homem normal. Nele, o olhar magnífico de quem desconhece por completo o tempo e a sua nulidade. Olhar longo, vertical, parado no instante presente; olhar anunciador de que entrara em contato com algo além da compaixão dos que o contemplavam. Ele não mais o sedutor ébrio de ilusões, mas o último tic tac de uma natureza sem culpa.

Ana Barros

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