Observava seu rosto quando me detive na imagem
tantos anos a mesma e só agora completamente dada.
Confirmava que o tempo expõe nossos vícios
à contemplação que suspeitou algo escondido,
criando lodo no fundo até um dia irromper na superfície
sem mais cuidados nem pudor. Você não me surpreendeu...
Desde o primeiro momento sabia que nos veríamos de frente para o espelho.
Você com o semblante alterado, a voz raivosa, a pele
marcada pelo cinismo cruel dos velhos míopes.
Eu a esconder o lado ruim que agoniza no subsolo e morre antes do gesto.
Pensei no encontro que teríamos na casa de R
e não senti vontade de ir nem de ver de novo a imagem
gasta que hoje sei por que nunca enxerguei de frente.
Talvez receasse encontrar a verdade
revelando-se aos poucos a uma percepção esquiva
sempre a desviar do foco quando a nudez é completa.
Mas a sua nudez era tão visível quanto a minha coberta.
domingo, 22 de agosto de 2010
sábado, 21 de agosto de 2010
Minimalismo
Aprendi a bordar com as aranhas
No labirinto minhas mãos tecem com Aracne
E teu corpo é o meu corpo, teu suor meu sangue
O verbo salta dos teus sonhos. Silêncio
Escrevo – nada
No labirinto minhas mãos tecem com Aracne
E teu corpo é o meu corpo, teu suor meu sangue
O verbo salta dos teus sonhos. Silêncio
Escrevo – nada
domingo, 8 de agosto de 2010
O olhar enviesado
Íamos em direção à Rua. Falávamos de nossas vidas. Você sofria não de você, mas de mundo. Vi seus olhos levemente molhados e parei no meio do caminho para beijá-los. Você estava triste pela humanidade e feliz porque eu compreendia o seu devotamento. Amei-o ainda mais e tive vontade, se o físico deixasse, de carregá-lo nos braços como quem carrega um troféu. Contentei-me, contudo, em apertar-lhe as mãos longas e magras como a dizer “você é o cara!” De mãos dadas e a sua cabeça doendo de mundo, a minha não pensava senão fotografar nuances de sua nobreza. Diminui o passo para aproveitar as impressões que a tagarelice intelectual dava início. Atravessamos a esquina que separa a Avenida do Beco, onde alguns jovens fumavam crak. Procurei seus olhos na certeza de encontrar a doçura que minutos atrás tanto amei quando você sofria de humanidade. E o que vi foi um olhar enviesado de quem não queria encontrar no caminho a Humanidade. Soltou minhas mãos, apressou o passo, voltou e puxou-me enfim pelo braço e, sem dissimular o repentino ar de enfado do rosto disse retirando o celular do bolso e digitando cento e noventa: “Vamos sair daqui!” Meu amado não tinha mais o olhar úmido nem quebrado, esperava ansioso a viatura da polícia.
domingo, 25 de julho de 2010
Religiosos e amorais
Há uma fundamental diferença entre os religiosos e os não religiosos. Ou se quiser, entre os que aprendem e incorporam uma moral e aqueles para quem viver é entregar-se à existência sem censuras nem impedimentos; viver de acordo com os sentidos. Aos religiosos uma existência plana e sem culpas, apesar de manterem uma angustiante e permanente “confissão” de seus “pecados”, uma meia vida, uma vida cortada por grandes intervalos de penitência e auto-flagelação. Nesse compassado e meticuloso caminho do religioso a criatividade e poder do indivíduo morrem para dar lugar ao santo, pois que a besta amoral é amarrada continuamente para poder continuar existindo, às vezes, miseravelmente.
Ser religioso não significa apenas seguir uma orientação cristã ou não. É mais profundo. Ser religioso é um comportamento que vai além do social. É uma atitude de mundo. É uma forma adotada de caminhar na terra. E isso está inscrito na filosofia, na poesia, na política, na literatura e em todas as magias intuídas sobre o real. Mas... e o amoral? Ah, esse é o sal da terra, a paixão, o vigor, os instintos, os sentidos, a sensualidade, a consciência que age e pensa no corpo inteiro e não apenas pela razão culposa do homem que conhece.
O amoral não adota rédeas e assim não anda sobre o chão mas voa sobre todas as coisas, pois seu tempo é intenso e curto. Diferente do religioso o amoral não conhece a prudência nem a regra. É explícito em sua dor e em suas paixões. Não tem compaixão por nada nem por ninguém porque é o próprio miolo do ser do mundo. E ele sabe que o ser do mundo é trágico igualmente a ele e que ambos se fundem no mesmo abraço fatal. Para quem não sente em si mesmo as duas pulsões de vida, para a imensa maioria que não passa da superfície de suas próprias experiências, é inaceitável que existam seres amorais. São estes os mais odiados e incompreendidos. Apesar de serem os mais profundos e verdadeiros, são acusados de loucos, demônios, depravados, excessivos etc. etc.
Mas olhemos para trás e façamos um apanhado dos grandes homens que fizeram a história dos homens, das artes dos homens, da política dos homens, da filosofia... São em sua maioria amorais. Um dos exemplos mais exaltados é Rimbaud, a mais fiel expressão do deus pagão Dionísio. Isso não quer dizer que mais tarde, se não morressem cedo, pudessem ser senhores ou senhoras religiosos. Um grande exemplo dessa transformação é Oscar Wilde. Lendo De Profundis podemos ver como ele lutou consigo mesmo para ir do irracional Dionísio ao luminoso Apolo.
È doloroso para um homem viver apenas num dos lados, entregar-se à religiosidade, a um ascetismo moral/científico ou a um desregramento total, a uma amoralidade completa. Em ambos a morte (do poder do indivíduo) e não a vida é a vitoriosa, pois viver requer a comunhão dos dois lados – claro escuro – sem deixar que um sufoque o outro, mas sabendo o instante exato do aniquilamento de um ou do outro. O que restará depois? Talvez uma doce melancolia... e um novo recomeçar...
Ana Barros
Natal, 16 de janeiro de 2009.
Ser religioso não significa apenas seguir uma orientação cristã ou não. É mais profundo. Ser religioso é um comportamento que vai além do social. É uma atitude de mundo. É uma forma adotada de caminhar na terra. E isso está inscrito na filosofia, na poesia, na política, na literatura e em todas as magias intuídas sobre o real. Mas... e o amoral? Ah, esse é o sal da terra, a paixão, o vigor, os instintos, os sentidos, a sensualidade, a consciência que age e pensa no corpo inteiro e não apenas pela razão culposa do homem que conhece.
O amoral não adota rédeas e assim não anda sobre o chão mas voa sobre todas as coisas, pois seu tempo é intenso e curto. Diferente do religioso o amoral não conhece a prudência nem a regra. É explícito em sua dor e em suas paixões. Não tem compaixão por nada nem por ninguém porque é o próprio miolo do ser do mundo. E ele sabe que o ser do mundo é trágico igualmente a ele e que ambos se fundem no mesmo abraço fatal. Para quem não sente em si mesmo as duas pulsões de vida, para a imensa maioria que não passa da superfície de suas próprias experiências, é inaceitável que existam seres amorais. São estes os mais odiados e incompreendidos. Apesar de serem os mais profundos e verdadeiros, são acusados de loucos, demônios, depravados, excessivos etc. etc.
Mas olhemos para trás e façamos um apanhado dos grandes homens que fizeram a história dos homens, das artes dos homens, da política dos homens, da filosofia... São em sua maioria amorais. Um dos exemplos mais exaltados é Rimbaud, a mais fiel expressão do deus pagão Dionísio. Isso não quer dizer que mais tarde, se não morressem cedo, pudessem ser senhores ou senhoras religiosos. Um grande exemplo dessa transformação é Oscar Wilde. Lendo De Profundis podemos ver como ele lutou consigo mesmo para ir do irracional Dionísio ao luminoso Apolo.
È doloroso para um homem viver apenas num dos lados, entregar-se à religiosidade, a um ascetismo moral/científico ou a um desregramento total, a uma amoralidade completa. Em ambos a morte (do poder do indivíduo) e não a vida é a vitoriosa, pois viver requer a comunhão dos dois lados – claro escuro – sem deixar que um sufoque o outro, mas sabendo o instante exato do aniquilamento de um ou do outro. O que restará depois? Talvez uma doce melancolia... e um novo recomeçar...
Ana Barros
Natal, 16 de janeiro de 2009.
Arte pós-moderna em Natal: hedonismo e afirmação
O tempo redescoberto pode presentear o observador com o poder da razão que olha o passado e dele retira o real que se deixa encobrir, ou pela imaturidade dos anos, ou pela ausência de mecanismos psicológicos capazes de fazer enxergar algo que era feito e sentido, porém não compreendido. E por não ser compreendido racionalmente considerado louco, alienado, sem sentido. No entanto, é essencialmente o sem sentido que provoca e desconcerta um mundo ordenado; um mundo acomodado numa tradição cultural e estética cuja estabilidade é quebrada por indivíduos ou movimentos em profunda sintonia com um presente incerto, trágico, niilista, ou de afirmação na existência caótica.
É o aparente caos em que mergulham as artes visuais de Natal do final da década de 1980 e correr dos anos noventa, no qual vemos nascer a tendência pós-moderna com suas ironias, hedonismo, erotismo, afirmação na ausência de esperança em algo, bem como ausência de qualquer metafísica, que hoje, depois de duas décadas, retorna como conceito, História da Arte.
A pós-modernidade causaria impacto por aqui, no entanto, já era conhecida na França desde a década de 1970, sendo seus principais seguidores os remanescentes desiludidos de 1968. Mas em Natal não houve, como aconteceu na França mais madura e integrante de uma civilização mais avançada histórico e politicamente que a nossa, nenhuma desilusão de algo prometido e não realizado. Havia sim o começo de uma democratização de valores individuais, políticos e sociais, cuja expansão inevitavelmente acabaria dando origem a uma nova vertente das artes.
Tanto em Natal como no restante do Brasil, as artes visuais passam a ser um importante veículo de divulgação e politização dos movimentos de massa, incluindo aí negros, mulheres, ecologistas, homossexuais e sem teto, transformando o belo contemplado numa arte que analisa e interpreta o mundo com seus elementos tão diversos quanto efêmeros numa sociedade não mais contida por ideologias morais ou políticas, mas aberta a uma multiplicidade de ideias e a uma infinidade de bens de consumo da era pós-industrial.
Pode ser que na França a pós-modernidade tenha representado a reação niilista diante do fracasso de todas as esperanças coletivas de progresso moral e social, porém, em Natal, herdeira de um provincianismo rural e de uma cultura saída das fraldas de uma ditadura militar, a pós-modernidade é mais um grito, um chamado, um desmoronamento de estruturas nas quais se cultivou a mentira, a fraude, o ódio e o desprezo pela identidade não só individual mas de povo. Neste contexto não há desgosto e sim busca por afirmação, mesmo sabendo ser afirmação sem qualquer base sólida, sem qualquer verdade sagrada; uma afirmação que, mesmo aparentando uma hiper-racionalidade, tem no sonho, no lúdico, no efêmero, nos impulsos, a exaltação da vida. Paulo Rouanet, em As origens do iluminismo (1987), observa que o prefixo pós tem muito mais o sentido de exorcizar o velho do que articular o novo, sendo o pós-moderno “a fadiga crepuscular de uma época que parece extinguir-se ingloriosamente que o hino de júbilo de amanhãs que despontam.”
Os pós-modernos incomodam justamente por uma atitude aparentemente desinteressada e despolitizada, quando trazem à cena as reivindicações de emancipação do cotidiano com sua multiplicidade de elementos banalizados e desprezados pela chamada alta cultura. Num sentido moral existe mesmo a ação deliberada pelo respeito às diferenças e os costumes diversos, criando um ambiente de aceitação do sensível com todos os desníveis possíveis. LIMA (2004) observa que no campo da arte e da estética parece incomodar a “emancipação do vulgar” e a mistura de gêneros. No campo da moral, existe a tendência a tolerância, o respeito às diferenças humanas, o pluralismo radical, ou seja, “sem inimigos a derrotar.”
Guaraci Gabriel: Xamã da nova arte
Poucos são os artistas dessa época que se envolveram no processo pós-moderno em Natal e que chamam a atenção para as suas intervenções. Talvez pela exposição ao público, talvez pelo exibicionismo, hedonismo, narcisismo, exagero em todos os sentidos, talvez pela afirmação de sua homossexualidade, evidente em algumas de suas esculturas fálicas, o escultor Guaraci Gabriel tenha se destacado como expoente maior das artes visuais do período. Há nomes como J. Pinheiro, Civone Medeiros, estes dois de estilo performático, e Saionara Pinheiro, talento inquestionável, no entanto, todos obscurecidos pela força e poder individual de Guaraci, que chama para si as atenções mesmo quando zomba de si mesmo. Suas atitudes e arte revelam um ser de grande capacidade criadora e discernimento de valores em desacordo com os padrões vigentes. Em seus trabalhos e na vida pessoal, Guaraci mergulha numa verdade que abraça com escárnio e irreverência, pois está aberto a novas possibilidades de experiências e aventuras, negando desse modo “o abismo niilista ao qual tantas das aventuras modernas conduzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda quando tudo em volta se desfaz”, Berman (2007).
O homem e o artista Guaraci Gabriel têm consciência dessa destruição simbólica, dessa niilidade e por isso recriam o mundo através dos elementos mais variados, dos resíduos, do refugo, do lixo; das sucatas e dos materiais imprestáveis dá nova ordem, sopra vida onde há corrupção dos sentidos. Há, em seus trabalhos, uma mística que transcende na própria realidade que, sem negar nem cultuar, zomba de seres supra-terrestres e dos símbolos de ideologias decadentes, cujos ícones são deformados nas mãos pervertidas do escultor. São objetos criados, ou recriados a partir de outros com o intuito de expressar conceitos de uma anti-moral, de uma antiestética.
Além da crítica ao formalismo, causando incômodo tanto entre artistas tradicionalistas quanto na Imprensa local, os artistas da pós-modernidade de Natal atacam com ironia e escárnio as instituições, os salões de artes plásticas e o mercado de artes. É emblemático desse comportamento a instalação realizada por Guaraci Gabriel no dia da inauguração da Capitania das Artes – Funcarte, em 1995. Inconformado com a arquitetura burocratizada, idealizada por funcionários sem visão histórica do casarão centenário, outrora Capitania dos Portos, distanciando-o de sua origem, do povo e dos artistas de vanguarda, Guaraci simula um incêndio do prédio numa instalação de carvões que emite fogo e fumaça na parte externa da Fundação e que deixa os vigias em pânico com a possibilidade real de incêndio.
Uma antiarte, uma representação não artística para ser compreendida por todos? Guaraci não se incomoda com as opiniões, apenas age, age numa cultura que não lhe diz nada além do chamado para o caos que ela mesma reverbera; para o profundo sentido de caos universal que move o poder criativo e irrompe na visão translúcida que seria de todos se, junto à agonia visionária do artista, compreendessem o real que há debaixo da bruma percebida pelo decifrador de enigmas, para quem Tápies (1979) vê “não como sendo o testemunho de um momento que se afasta, mas um profeta da nova arte pobre que constitui uma tradição visual do movimento da juventude radical.” E Baudelaire (1995) completa: “O prazer que obtemos com a representação do presente deve-se não apenas à beleza de que ele pode estar revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente.”
É desse presente que Guaraci Gabriel forja uma expressão e um conceito através de suas instalações, de seus vídeoarte, de suas esculturas monumentais, enfim, de seus projetos transformados, eles mesmos, em obra de arte.
Solidez, estabilidade num mundo que se descobriu efêmero, pêndulo do engano e da insegurança, são palavras com as quais os pós-modernos brincam e assustam os desavisados com uma linguagem pautada na objetividade e frieza do real; do presente que surge sem os véus das metáforas e se revela concretude plena de sentido. E aqui, envolto num grande paradoxo entre o auto-desenvolvimento e um mundo pós-industrializado que tudo abarca e aniquila num constante fluir, Guaraci Gabriel, artista dos resíduos, do caos, mas também de uma velada transcendência, mesmo sendo esta uma transcendência na própria matéria destroçada, é a representação do poeta fáustico contemporâneo. Para ele, as palavras de Berman, com apenas uma ressalva, apesar de ser uma referência aos modernistas do século XIX: “Um mercado mundial que a tudo abarca, em crescente expansão, capaz de um estarrecedor desperdício e devastação, capaz de tudo exceto solidez e estabilidade. Todos os grandes modernistas do século XIX atacam esse ambiente, com paixão, e se esforçam por fazê-lo ruir ou explorá-lo a partir do seu interior; apesar disso, todos se sentem surpreendentemente à vontade em meio a isso tudo, sensíveis às novas possibilidades, positivos ainda em suas negações radicais, jocosos e irônicos ainda em seus momentos de mais grave seriedade e profundidade.”
A ressalva é que Guaraci Gabriel, como pós-moderno, jamais atacou nem difamou o mundo contemporâneo; jamais se mostrou um niilista passivo diante da existência banalizada. São características fortes dos seus trabalhos o culto à personalidade, o hedonismo e a afirmação do indivíduo sobre a diluição de valores e objetos até então sacralizados por uma arte ou ideologia de uma minoria agora obrigada a conviver com a diversidade e uma massa ávida de consumo de toda espécie. Um exemplo magnífico dessa nuance ao mesmo tempo trágica e irônica do presente são os trabalhos expostos na mostra A Porta do Céu, na praia de Santa Rita-RN, em 1999. No meio de ferros, vidros, paus, papéis, pedras e tantos outros materiais, Guaraci Gabriel expôs um fusca velho sobre as ruínas de um casarão, junto a duas outras esculturas em ferro, de grande porte. Depois de alguns meses de completo abandono, arrastado para lá e para cá pela maré, veio enfim uma grande onda e levou a carcaça do fusca. As outras duas peça, mais pesadas, os ladrões roubaram e certamente venderam num ferro velho qualquer. Indagado à época por alguns jornalistas se não iria tentar recuperar os objetos, Guaraci riu e disse que o destino delas era aquele mesmo, ou seja, na ação amoral do mar e dos ladrões estava o sentido que o artista imprimia à precariedade da vida; do efêmero que, apesar do peso, é levado assim mesmo, quer queira ou não o homem de posse de uma razão luminosa.
Compreender a linguagem caótica de Guaraci Gabriel é entender o caos da natureza e, redundância, do próprio homem; é ler símbolos que desmistificam a dor e o niilismo dos modernistas por aniquilar toda e qualquer esperança que não surja da própria ação do homem no mundo como é dado. O próprio Guaraci é um instrumento dessa experiência não só artística, mas também humana.
Uma década de megaexposições
Toda a década de 1990 foi tomada por megaexposições e instalações de Guaraci Gabriel que, apesar da monumentalidade, poucas vezes foram levadas a sério pelos artistas consagrados no mercado local. No entanto, Guaraci sempre teve o apoio de instituições governamentais (Estado e Prefeitura) e do empresário do ramo de sucata (Compal) Joaquim Patrício, cujos incentivos levaram o artista à bienal de Cuba (várias), Áustria, Portugal e Rio Grande do Sul.
De personalidade contraditória, jamais alguém sabendo ao certo de que lado está, às vezes se assemelhando às idiossincrasias de Salvador Dali, de quem é profundo admirador, Guaraci aproveitou o máximo do escárnio, do lixo, do resíduo industrial, do abjeto e do proibido em suas criações levadas ao extremo da elaboração em projetos nos quais detalha seus trabalhos para uma maior compreensão dos símbolos, estes, múltiplos de significados apreendidos pelo artista. Em suas mãos os materiais de todo tipo tomam forma e falam a linguagem mais banal, mais cotidiana, mas que esconde em si uma verdade cruel como bem expõe Baudrillard (1985) ao afirmar que “Os papéis se invertem: é a banalidade da vida, a vida corrente, tudo o que se estigmatizara como pequeno-burguês, abjeto e apolítico (inclusive o sexo) que se torna o tempo forte.” Aqui Baudrillard, apesar de contrário ao conceito de pós-modernidade, parece descrever o substrato da arte pós-moderna propagada em Natal por Guaraci Gabriel e que iria banalizar-se em comportamentos e atitudes de minorias (homossexuais, feministas, ecológicas e étnicas), cujo ideário libertário alguns malucos haviam ousado afirmar. O próprio Guaraci Gabriel, ser e objeto da afirmação homossexual, afirma aonde vai que é gay, apesar de ninguém o levar a sério devido seu porte viril estar de acordo com o protótipo do macho. Civone Medeiros e J. Pinheiro o acompanhavam em performances nas quais tiravam a roupa, num rasgado e anunciado começo de exposição do privado e da intimidade pessoal, hoje vulgarizados pelo modismo performático e Realities Shows.
Peso que se faz leve
Símbolo da própria leveza, dançarino do caos, Zaratustra contemporâneo, Guaraci Gabriel é a encarnação do paradoxo quando escolhe o volumoso, o ferro e o aço para representar o efêmero num claro desafio ao tempo que tudo tritura e engole, semelhante a Ítalo Calvino, que propõe a leveza em Seis propostas para o próximo milênio: “Minha intervenção se traduziu por uma subtração do peso; esforcei-me por retirar peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades”, Calvino (1990).
Mas por levitar na multiplicidade e na frivolidade das coisas, há aqui a ameaça do homem perder o sentido do peso existencial; do peso metafísico que faz recuar diante da ameaça do Nada; diante de um niilismo passivo cuja saída é a morte, simbólica ou real. No entanto, é esse peso que o artista tão bem conhece e que aprendeu a dançar sobre ele com a doce ironia somente encontrada entre os indivíduos, ou seja, entre aqueles que, na própria vida, na arte e na moral, criam seus próprios valores. Guaraci Gabriel faz isso quando dança sobre a frivolidade e a seriedade das coisas entregando ao mundo um outro mundo no qual sobrevive apenas quem é capaz de rir de si mesmo e do angustiante fluxo dos fenômenos. Nietzsche (1991) ajuda a compreender esse artista, ou, se quiser, esse anti-herói, ao lembrar que “não sei quem afirmou que todos os indivíduos, como indivíduos, são cômicos e por isso não trágicos: de onde se poderia concluir que os gregos simplesmente não podiam suportar indivíduos sobre o palco trágico.”
É precipitado dizer aqui que os artistas pós-modernos de Natal representam o indivíduo nietzschiano, uma vez que os mesmos desprezam, ou desconhecem, os valores trágicos que tão bem caracterizam o homem moderno. Eles são crias do não-trágico, e por isso expressão viva da liberação, não libertação no sentido filosófico de transmutação, de um indivíduo sem o peso dorido do contingencial, mas oprimido justamente pela ausência de trágico num cotidiano sem as experiências com as quais povos civilizados davam mostras de esgotamento, de cansaço e desejo de transcendência; de um indivíduo dionisíaco sequioso de experiências diversas como liberdade sexual, consumo de drogas, consumo de bens industriais e culturais; indivíduo amante das massas e dos aglomerados, enfim, um indivíduo hedonista, provocador e diluído num espaço que ele não nega nem ama, uma vez que transformado em sua própria extensão humana num momento em que a informatização chega para coroar o processo. Processo cuja diversidade de valores, com a quebra de fronteiras entre povos, etnias, gêneros e todas as minorias sociais, já iniciada pelos pós-modernos e aprofundada nos dias de globalização, junto ao desenvolvimento científico e tecnológico que dilui e aproxima, fragmenta o tempo e o espaço, pensadores como Michel Mafesolli chamam de heteronomia estrutural.
Compreender a pós-modernidade em Natal com o pensamento de hoje, quando o preconceito dá lugar a um olhar crítico e imparcial sobre a importância estética, política e social do momento; quando um olhar cúmplice por também ter compartilhado do processo se abre e enxerga com exatidão o momento às vezes abominado por uns e afirmado por outros, é analisar o fenômeno como fluxo de uma potência vital; de uma transcendência no próprio existir. É Mafesolli (1985) quem enxerga essa nova transcendência submersa no cotidiano: “De uma certa maneira, a proliferação de imagens multiformes, seja a imagem televisiva, a imagem publicitária, a teatralidade quotidiana, as pequenas imagens íntimas, tudo isso consegue, de algum modo, fazer brotar uma ambiência, uma aura específica. Uma aura que supera cada um de nós e que supera a sociedade em seu conjunto. É aquilo que eu chamo de uma transcendência imanente. Quer dizer que se tinha pensado a sociedade a partir de uma transcendência, seja Deus, o Estado, a História ou as coisas distantes. Atualmente há uma transcendência que emergiu do corpo social.”
Uma década de cultura do caos
Toda a década de 1990 até os dias de hoje representam um contínuo e progressivo desenvolvimento do comportamento massificado que Baudrillard (1985), diferente do olhar positivo de Maffesoli, chama de “situação da simulação incondicional ou do simulacro incondicional.” Nesse contexto de acelerada civilização dos costumes, Natal, cidade sem uma identidade cultural fortalecida nas bases tradicionais de um Nordeste arcaico, aberta às influências de fora, mostra-se receptiva e adaptada às mudanças e objetos àquela época ignorados ou desprezados como “lixo”, porém agora corriqueiros: banalizado mundo contemporâneo.
Independente de conceitos e correntes diversas, o que chama a atenção na fase pós-moderna de Natal é a rebeldia feliz de jovens artistas, cuja atitude contribuiu para formar uma cultura, uma história com suas ramificações em múltiplos espaços, em múltiplas tendências. Mais do que em qualquer época, e, depois de duas décadas de pós-modernidade, podemos dizer com Mafesolli: “Ora, o que é vivido é atualmente algo que é bem mais sensível, bem mais hedonista, bem mais aquilo que chamo de doméstico e que não faz parte dos universais conceitos da modernidade.”
REFERÊNCIAS
BARROS, Ana Maria. in: Equilíbrio no caos, 1997 – A estética além do tempo, 2001 – Fragmento do Nada, 2001 – Anjo Mau, 2004. (Textos avulsos)
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade – Rio de Janeiro – Paz e Terra, 1996. Coleção Leitura.
BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas – São Paulo – Editora Brasiliense, 1985.
BERMAN, Marshall.Tudo que é sólido desmancha no ar – São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o próximo milênio – São Paulo – Companhia das Letras, 1990.
LIMA, Raymond de. Revista espaço acadêmico – nº 35 – abril/2004. Disponível na Internet. (Acesso em 11/12/2009)
MAFFESOLI, Michel e BAUDRILLARD, Jean. in: Textos de cultura e comunicação – nº 28 – Universidade Federal da Bahia – Salvador, 1985.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Obras incompletas – São Paulo – Nova Cultural, 1991. (Os pensadores – I volume).
ROUANET, Paulo. Citado em LIMA, Raymond. in: Revista Espaço Acadêmico, nº 35 – abril/2004. Disponível na Internet. (Acesso em 11/12/2009)
TÁPIES, Antoni. Entrevista. in: Arte Abstrata e arte figurativa – Salvat Editora do Brasil, S.A. – Rio de Janeiro, 1979.
É o aparente caos em que mergulham as artes visuais de Natal do final da década de 1980 e correr dos anos noventa, no qual vemos nascer a tendência pós-moderna com suas ironias, hedonismo, erotismo, afirmação na ausência de esperança em algo, bem como ausência de qualquer metafísica, que hoje, depois de duas décadas, retorna como conceito, História da Arte.
A pós-modernidade causaria impacto por aqui, no entanto, já era conhecida na França desde a década de 1970, sendo seus principais seguidores os remanescentes desiludidos de 1968. Mas em Natal não houve, como aconteceu na França mais madura e integrante de uma civilização mais avançada histórico e politicamente que a nossa, nenhuma desilusão de algo prometido e não realizado. Havia sim o começo de uma democratização de valores individuais, políticos e sociais, cuja expansão inevitavelmente acabaria dando origem a uma nova vertente das artes.
Tanto em Natal como no restante do Brasil, as artes visuais passam a ser um importante veículo de divulgação e politização dos movimentos de massa, incluindo aí negros, mulheres, ecologistas, homossexuais e sem teto, transformando o belo contemplado numa arte que analisa e interpreta o mundo com seus elementos tão diversos quanto efêmeros numa sociedade não mais contida por ideologias morais ou políticas, mas aberta a uma multiplicidade de ideias e a uma infinidade de bens de consumo da era pós-industrial.
Pode ser que na França a pós-modernidade tenha representado a reação niilista diante do fracasso de todas as esperanças coletivas de progresso moral e social, porém, em Natal, herdeira de um provincianismo rural e de uma cultura saída das fraldas de uma ditadura militar, a pós-modernidade é mais um grito, um chamado, um desmoronamento de estruturas nas quais se cultivou a mentira, a fraude, o ódio e o desprezo pela identidade não só individual mas de povo. Neste contexto não há desgosto e sim busca por afirmação, mesmo sabendo ser afirmação sem qualquer base sólida, sem qualquer verdade sagrada; uma afirmação que, mesmo aparentando uma hiper-racionalidade, tem no sonho, no lúdico, no efêmero, nos impulsos, a exaltação da vida. Paulo Rouanet, em As origens do iluminismo (1987), observa que o prefixo pós tem muito mais o sentido de exorcizar o velho do que articular o novo, sendo o pós-moderno “a fadiga crepuscular de uma época que parece extinguir-se ingloriosamente que o hino de júbilo de amanhãs que despontam.”
Os pós-modernos incomodam justamente por uma atitude aparentemente desinteressada e despolitizada, quando trazem à cena as reivindicações de emancipação do cotidiano com sua multiplicidade de elementos banalizados e desprezados pela chamada alta cultura. Num sentido moral existe mesmo a ação deliberada pelo respeito às diferenças e os costumes diversos, criando um ambiente de aceitação do sensível com todos os desníveis possíveis. LIMA (2004) observa que no campo da arte e da estética parece incomodar a “emancipação do vulgar” e a mistura de gêneros. No campo da moral, existe a tendência a tolerância, o respeito às diferenças humanas, o pluralismo radical, ou seja, “sem inimigos a derrotar.”
Guaraci Gabriel: Xamã da nova arte
Poucos são os artistas dessa época que se envolveram no processo pós-moderno em Natal e que chamam a atenção para as suas intervenções. Talvez pela exposição ao público, talvez pelo exibicionismo, hedonismo, narcisismo, exagero em todos os sentidos, talvez pela afirmação de sua homossexualidade, evidente em algumas de suas esculturas fálicas, o escultor Guaraci Gabriel tenha se destacado como expoente maior das artes visuais do período. Há nomes como J. Pinheiro, Civone Medeiros, estes dois de estilo performático, e Saionara Pinheiro, talento inquestionável, no entanto, todos obscurecidos pela força e poder individual de Guaraci, que chama para si as atenções mesmo quando zomba de si mesmo. Suas atitudes e arte revelam um ser de grande capacidade criadora e discernimento de valores em desacordo com os padrões vigentes. Em seus trabalhos e na vida pessoal, Guaraci mergulha numa verdade que abraça com escárnio e irreverência, pois está aberto a novas possibilidades de experiências e aventuras, negando desse modo “o abismo niilista ao qual tantas das aventuras modernas conduzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda quando tudo em volta se desfaz”, Berman (2007).
O homem e o artista Guaraci Gabriel têm consciência dessa destruição simbólica, dessa niilidade e por isso recriam o mundo através dos elementos mais variados, dos resíduos, do refugo, do lixo; das sucatas e dos materiais imprestáveis dá nova ordem, sopra vida onde há corrupção dos sentidos. Há, em seus trabalhos, uma mística que transcende na própria realidade que, sem negar nem cultuar, zomba de seres supra-terrestres e dos símbolos de ideologias decadentes, cujos ícones são deformados nas mãos pervertidas do escultor. São objetos criados, ou recriados a partir de outros com o intuito de expressar conceitos de uma anti-moral, de uma antiestética.
Além da crítica ao formalismo, causando incômodo tanto entre artistas tradicionalistas quanto na Imprensa local, os artistas da pós-modernidade de Natal atacam com ironia e escárnio as instituições, os salões de artes plásticas e o mercado de artes. É emblemático desse comportamento a instalação realizada por Guaraci Gabriel no dia da inauguração da Capitania das Artes – Funcarte, em 1995. Inconformado com a arquitetura burocratizada, idealizada por funcionários sem visão histórica do casarão centenário, outrora Capitania dos Portos, distanciando-o de sua origem, do povo e dos artistas de vanguarda, Guaraci simula um incêndio do prédio numa instalação de carvões que emite fogo e fumaça na parte externa da Fundação e que deixa os vigias em pânico com a possibilidade real de incêndio.
Uma antiarte, uma representação não artística para ser compreendida por todos? Guaraci não se incomoda com as opiniões, apenas age, age numa cultura que não lhe diz nada além do chamado para o caos que ela mesma reverbera; para o profundo sentido de caos universal que move o poder criativo e irrompe na visão translúcida que seria de todos se, junto à agonia visionária do artista, compreendessem o real que há debaixo da bruma percebida pelo decifrador de enigmas, para quem Tápies (1979) vê “não como sendo o testemunho de um momento que se afasta, mas um profeta da nova arte pobre que constitui uma tradição visual do movimento da juventude radical.” E Baudelaire (1995) completa: “O prazer que obtemos com a representação do presente deve-se não apenas à beleza de que ele pode estar revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente.”
É desse presente que Guaraci Gabriel forja uma expressão e um conceito através de suas instalações, de seus vídeoarte, de suas esculturas monumentais, enfim, de seus projetos transformados, eles mesmos, em obra de arte.
Solidez, estabilidade num mundo que se descobriu efêmero, pêndulo do engano e da insegurança, são palavras com as quais os pós-modernos brincam e assustam os desavisados com uma linguagem pautada na objetividade e frieza do real; do presente que surge sem os véus das metáforas e se revela concretude plena de sentido. E aqui, envolto num grande paradoxo entre o auto-desenvolvimento e um mundo pós-industrializado que tudo abarca e aniquila num constante fluir, Guaraci Gabriel, artista dos resíduos, do caos, mas também de uma velada transcendência, mesmo sendo esta uma transcendência na própria matéria destroçada, é a representação do poeta fáustico contemporâneo. Para ele, as palavras de Berman, com apenas uma ressalva, apesar de ser uma referência aos modernistas do século XIX: “Um mercado mundial que a tudo abarca, em crescente expansão, capaz de um estarrecedor desperdício e devastação, capaz de tudo exceto solidez e estabilidade. Todos os grandes modernistas do século XIX atacam esse ambiente, com paixão, e se esforçam por fazê-lo ruir ou explorá-lo a partir do seu interior; apesar disso, todos se sentem surpreendentemente à vontade em meio a isso tudo, sensíveis às novas possibilidades, positivos ainda em suas negações radicais, jocosos e irônicos ainda em seus momentos de mais grave seriedade e profundidade.”
A ressalva é que Guaraci Gabriel, como pós-moderno, jamais atacou nem difamou o mundo contemporâneo; jamais se mostrou um niilista passivo diante da existência banalizada. São características fortes dos seus trabalhos o culto à personalidade, o hedonismo e a afirmação do indivíduo sobre a diluição de valores e objetos até então sacralizados por uma arte ou ideologia de uma minoria agora obrigada a conviver com a diversidade e uma massa ávida de consumo de toda espécie. Um exemplo magnífico dessa nuance ao mesmo tempo trágica e irônica do presente são os trabalhos expostos na mostra A Porta do Céu, na praia de Santa Rita-RN, em 1999. No meio de ferros, vidros, paus, papéis, pedras e tantos outros materiais, Guaraci Gabriel expôs um fusca velho sobre as ruínas de um casarão, junto a duas outras esculturas em ferro, de grande porte. Depois de alguns meses de completo abandono, arrastado para lá e para cá pela maré, veio enfim uma grande onda e levou a carcaça do fusca. As outras duas peça, mais pesadas, os ladrões roubaram e certamente venderam num ferro velho qualquer. Indagado à época por alguns jornalistas se não iria tentar recuperar os objetos, Guaraci riu e disse que o destino delas era aquele mesmo, ou seja, na ação amoral do mar e dos ladrões estava o sentido que o artista imprimia à precariedade da vida; do efêmero que, apesar do peso, é levado assim mesmo, quer queira ou não o homem de posse de uma razão luminosa.
Compreender a linguagem caótica de Guaraci Gabriel é entender o caos da natureza e, redundância, do próprio homem; é ler símbolos que desmistificam a dor e o niilismo dos modernistas por aniquilar toda e qualquer esperança que não surja da própria ação do homem no mundo como é dado. O próprio Guaraci é um instrumento dessa experiência não só artística, mas também humana.
Uma década de megaexposições
Toda a década de 1990 foi tomada por megaexposições e instalações de Guaraci Gabriel que, apesar da monumentalidade, poucas vezes foram levadas a sério pelos artistas consagrados no mercado local. No entanto, Guaraci sempre teve o apoio de instituições governamentais (Estado e Prefeitura) e do empresário do ramo de sucata (Compal) Joaquim Patrício, cujos incentivos levaram o artista à bienal de Cuba (várias), Áustria, Portugal e Rio Grande do Sul.
De personalidade contraditória, jamais alguém sabendo ao certo de que lado está, às vezes se assemelhando às idiossincrasias de Salvador Dali, de quem é profundo admirador, Guaraci aproveitou o máximo do escárnio, do lixo, do resíduo industrial, do abjeto e do proibido em suas criações levadas ao extremo da elaboração em projetos nos quais detalha seus trabalhos para uma maior compreensão dos símbolos, estes, múltiplos de significados apreendidos pelo artista. Em suas mãos os materiais de todo tipo tomam forma e falam a linguagem mais banal, mais cotidiana, mas que esconde em si uma verdade cruel como bem expõe Baudrillard (1985) ao afirmar que “Os papéis se invertem: é a banalidade da vida, a vida corrente, tudo o que se estigmatizara como pequeno-burguês, abjeto e apolítico (inclusive o sexo) que se torna o tempo forte.” Aqui Baudrillard, apesar de contrário ao conceito de pós-modernidade, parece descrever o substrato da arte pós-moderna propagada em Natal por Guaraci Gabriel e que iria banalizar-se em comportamentos e atitudes de minorias (homossexuais, feministas, ecológicas e étnicas), cujo ideário libertário alguns malucos haviam ousado afirmar. O próprio Guaraci Gabriel, ser e objeto da afirmação homossexual, afirma aonde vai que é gay, apesar de ninguém o levar a sério devido seu porte viril estar de acordo com o protótipo do macho. Civone Medeiros e J. Pinheiro o acompanhavam em performances nas quais tiravam a roupa, num rasgado e anunciado começo de exposição do privado e da intimidade pessoal, hoje vulgarizados pelo modismo performático e Realities Shows.
Peso que se faz leve
Símbolo da própria leveza, dançarino do caos, Zaratustra contemporâneo, Guaraci Gabriel é a encarnação do paradoxo quando escolhe o volumoso, o ferro e o aço para representar o efêmero num claro desafio ao tempo que tudo tritura e engole, semelhante a Ítalo Calvino, que propõe a leveza em Seis propostas para o próximo milênio: “Minha intervenção se traduziu por uma subtração do peso; esforcei-me por retirar peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades”, Calvino (1990).
Mas por levitar na multiplicidade e na frivolidade das coisas, há aqui a ameaça do homem perder o sentido do peso existencial; do peso metafísico que faz recuar diante da ameaça do Nada; diante de um niilismo passivo cuja saída é a morte, simbólica ou real. No entanto, é esse peso que o artista tão bem conhece e que aprendeu a dançar sobre ele com a doce ironia somente encontrada entre os indivíduos, ou seja, entre aqueles que, na própria vida, na arte e na moral, criam seus próprios valores. Guaraci Gabriel faz isso quando dança sobre a frivolidade e a seriedade das coisas entregando ao mundo um outro mundo no qual sobrevive apenas quem é capaz de rir de si mesmo e do angustiante fluxo dos fenômenos. Nietzsche (1991) ajuda a compreender esse artista, ou, se quiser, esse anti-herói, ao lembrar que “não sei quem afirmou que todos os indivíduos, como indivíduos, são cômicos e por isso não trágicos: de onde se poderia concluir que os gregos simplesmente não podiam suportar indivíduos sobre o palco trágico.”
É precipitado dizer aqui que os artistas pós-modernos de Natal representam o indivíduo nietzschiano, uma vez que os mesmos desprezam, ou desconhecem, os valores trágicos que tão bem caracterizam o homem moderno. Eles são crias do não-trágico, e por isso expressão viva da liberação, não libertação no sentido filosófico de transmutação, de um indivíduo sem o peso dorido do contingencial, mas oprimido justamente pela ausência de trágico num cotidiano sem as experiências com as quais povos civilizados davam mostras de esgotamento, de cansaço e desejo de transcendência; de um indivíduo dionisíaco sequioso de experiências diversas como liberdade sexual, consumo de drogas, consumo de bens industriais e culturais; indivíduo amante das massas e dos aglomerados, enfim, um indivíduo hedonista, provocador e diluído num espaço que ele não nega nem ama, uma vez que transformado em sua própria extensão humana num momento em que a informatização chega para coroar o processo. Processo cuja diversidade de valores, com a quebra de fronteiras entre povos, etnias, gêneros e todas as minorias sociais, já iniciada pelos pós-modernos e aprofundada nos dias de globalização, junto ao desenvolvimento científico e tecnológico que dilui e aproxima, fragmenta o tempo e o espaço, pensadores como Michel Mafesolli chamam de heteronomia estrutural.
Compreender a pós-modernidade em Natal com o pensamento de hoje, quando o preconceito dá lugar a um olhar crítico e imparcial sobre a importância estética, política e social do momento; quando um olhar cúmplice por também ter compartilhado do processo se abre e enxerga com exatidão o momento às vezes abominado por uns e afirmado por outros, é analisar o fenômeno como fluxo de uma potência vital; de uma transcendência no próprio existir. É Mafesolli (1985) quem enxerga essa nova transcendência submersa no cotidiano: “De uma certa maneira, a proliferação de imagens multiformes, seja a imagem televisiva, a imagem publicitária, a teatralidade quotidiana, as pequenas imagens íntimas, tudo isso consegue, de algum modo, fazer brotar uma ambiência, uma aura específica. Uma aura que supera cada um de nós e que supera a sociedade em seu conjunto. É aquilo que eu chamo de uma transcendência imanente. Quer dizer que se tinha pensado a sociedade a partir de uma transcendência, seja Deus, o Estado, a História ou as coisas distantes. Atualmente há uma transcendência que emergiu do corpo social.”
Uma década de cultura do caos
Toda a década de 1990 até os dias de hoje representam um contínuo e progressivo desenvolvimento do comportamento massificado que Baudrillard (1985), diferente do olhar positivo de Maffesoli, chama de “situação da simulação incondicional ou do simulacro incondicional.” Nesse contexto de acelerada civilização dos costumes, Natal, cidade sem uma identidade cultural fortalecida nas bases tradicionais de um Nordeste arcaico, aberta às influências de fora, mostra-se receptiva e adaptada às mudanças e objetos àquela época ignorados ou desprezados como “lixo”, porém agora corriqueiros: banalizado mundo contemporâneo.
Independente de conceitos e correntes diversas, o que chama a atenção na fase pós-moderna de Natal é a rebeldia feliz de jovens artistas, cuja atitude contribuiu para formar uma cultura, uma história com suas ramificações em múltiplos espaços, em múltiplas tendências. Mais do que em qualquer época, e, depois de duas décadas de pós-modernidade, podemos dizer com Mafesolli: “Ora, o que é vivido é atualmente algo que é bem mais sensível, bem mais hedonista, bem mais aquilo que chamo de doméstico e que não faz parte dos universais conceitos da modernidade.”
REFERÊNCIAS
BARROS, Ana Maria. in: Equilíbrio no caos, 1997 – A estética além do tempo, 2001 – Fragmento do Nada, 2001 – Anjo Mau, 2004. (Textos avulsos)
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade – Rio de Janeiro – Paz e Terra, 1996. Coleção Leitura.
BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas – São Paulo – Editora Brasiliense, 1985.
BERMAN, Marshall.Tudo que é sólido desmancha no ar – São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o próximo milênio – São Paulo – Companhia das Letras, 1990.
LIMA, Raymond de. Revista espaço acadêmico – nº 35 – abril/2004. Disponível na Internet. (Acesso em 11/12/2009)
MAFFESOLI, Michel e BAUDRILLARD, Jean. in: Textos de cultura e comunicação – nº 28 – Universidade Federal da Bahia – Salvador, 1985.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Obras incompletas – São Paulo – Nova Cultural, 1991. (Os pensadores – I volume).
ROUANET, Paulo. Citado em LIMA, Raymond. in: Revista Espaço Acadêmico, nº 35 – abril/2004. Disponível na Internet. (Acesso em 11/12/2009)
TÁPIES, Antoni. Entrevista. in: Arte Abstrata e arte figurativa – Salvat Editora do Brasil, S.A. – Rio de Janeiro, 1979.
sábado, 24 de julho de 2010
O olho cego de Maya
O envelhecimento somado a certeza de que não se tem mais um tempo infinito leva a descobertas surpreendentes por aqueles que empreenderam uma vida percorrendo labirintos quase sempre sem saída. Mas eis que o tempo passa e o que parecia encruzilhada se transforma em lucidez, certeza de uma chegada há muito começada.
São sempre os caminhos mais difíceis, com obstáculos quase intransponíveis que, na maturidade, se abrem com uma intensa luz que chega a ofuscar a visão sempre tão curta de quem se entrega ao presente pensando que o instante é uma eternidade. Quantas vezes o êxtase da felicidade ou da dor sufocante parecem chegar e se implantar de vez! E isso se repete quase à exaustão levando muitas vezes a saídas nem um pouco racionais. Entretanto, aquele que amadurece e passa a enxergar no seu dia a dia a mesma repetição dos acontecimentos e antes de Maya cegá-lo salta sobre o feitiço com uma lança de gelo, descobre com um misto de prazer e serenidade que o tempo do homem é uma escala em movimento, a qual ele, quando descobre, pode aniquilar os pontos que, de tão repetidos na jornada banal, deixam de lhe agitar os sentidos.
São tantos os acontecimentos que contamos e recontamos em nossas vidas que estão sempre se repetindo com uma fúria de poder que chegam a envergonhar quando o efeito da embriaguez se extingue e damos conta do fiasco que foi entregar-se de novo a tão desgastada e odiosa ilusão. Há um exemplo que, por ser comum a homens e mulheres, e que por ser tido como verdade, me chama a atenção pela força e pela repetição com que todos se deixam enganar, é encontrar aquela pessoa que, quando isso acontece, nos transporta para terras imaginárias, para uma outra dimensão de erotismo, de sensações diversas, de sonhos, etc. etc. Esse tipo de experiência, não raras às vezes, se dá com pessoas completamente diferentes de nós mesmos, completamente outros naquilo que mais desprezamos em nós. Mesmo assim, como nos sentimos atraídos, apesar de saber no mais fundo da alma a tragédia que nos espera!
Pois bem, passamos boa parte de nossas vidas procurando esse indivíduo “singular”. Para uns, são raras as vezes no curso da vida que se deparam com esse ser. Para outros, aqueles que insistem na busca, estão sempre em contato com esse alguém tão buscado e sonhado. Entretanto, quando chega a maturidade para aquele que se incomodou com as frustrações dessas escolhas, e ainda está com aquela necessidade de encontrar quem lhe faça companhia e agrados e encontra ainda quem o engane percebe em segundos que a farsa acabou, que o véu de Maya foi rasgado pelo tempo que se encarregou de devolver ao homem o ser do homem. E esse indivíduo renovado descobre com uma doce ironia o ridículo de muitas de suas escolhas, principalmente as escolhas amorosas. E aí chora de desgosto e de felicidade ao perceber que jamais foram escolhas amorosas e sim uma simulação, uma corrida para os braços de uma infância que insistimos conservar.
Ana Barros
Natal,15 de fevereiro de 2009.
São sempre os caminhos mais difíceis, com obstáculos quase intransponíveis que, na maturidade, se abrem com uma intensa luz que chega a ofuscar a visão sempre tão curta de quem se entrega ao presente pensando que o instante é uma eternidade. Quantas vezes o êxtase da felicidade ou da dor sufocante parecem chegar e se implantar de vez! E isso se repete quase à exaustão levando muitas vezes a saídas nem um pouco racionais. Entretanto, aquele que amadurece e passa a enxergar no seu dia a dia a mesma repetição dos acontecimentos e antes de Maya cegá-lo salta sobre o feitiço com uma lança de gelo, descobre com um misto de prazer e serenidade que o tempo do homem é uma escala em movimento, a qual ele, quando descobre, pode aniquilar os pontos que, de tão repetidos na jornada banal, deixam de lhe agitar os sentidos.
São tantos os acontecimentos que contamos e recontamos em nossas vidas que estão sempre se repetindo com uma fúria de poder que chegam a envergonhar quando o efeito da embriaguez se extingue e damos conta do fiasco que foi entregar-se de novo a tão desgastada e odiosa ilusão. Há um exemplo que, por ser comum a homens e mulheres, e que por ser tido como verdade, me chama a atenção pela força e pela repetição com que todos se deixam enganar, é encontrar aquela pessoa que, quando isso acontece, nos transporta para terras imaginárias, para uma outra dimensão de erotismo, de sensações diversas, de sonhos, etc. etc. Esse tipo de experiência, não raras às vezes, se dá com pessoas completamente diferentes de nós mesmos, completamente outros naquilo que mais desprezamos em nós. Mesmo assim, como nos sentimos atraídos, apesar de saber no mais fundo da alma a tragédia que nos espera!
Pois bem, passamos boa parte de nossas vidas procurando esse indivíduo “singular”. Para uns, são raras as vezes no curso da vida que se deparam com esse ser. Para outros, aqueles que insistem na busca, estão sempre em contato com esse alguém tão buscado e sonhado. Entretanto, quando chega a maturidade para aquele que se incomodou com as frustrações dessas escolhas, e ainda está com aquela necessidade de encontrar quem lhe faça companhia e agrados e encontra ainda quem o engane percebe em segundos que a farsa acabou, que o véu de Maya foi rasgado pelo tempo que se encarregou de devolver ao homem o ser do homem. E esse indivíduo renovado descobre com uma doce ironia o ridículo de muitas de suas escolhas, principalmente as escolhas amorosas. E aí chora de desgosto e de felicidade ao perceber que jamais foram escolhas amorosas e sim uma simulação, uma corrida para os braços de uma infância que insistimos conservar.
Ana Barros
Natal,15 de fevereiro de 2009.
Literatura: negação e afirmação
Se fôssemos livres da obscuridade que impede conhecer o nada de nossas perturbações e angústias; se a natureza se despisse dos véus que enganam e encobrem a verdade não haveria literatura. Ou melhor, poderia até haver um tipo de escrita, robusta, afirmativa em todos os sentidos, na qual reconheceríamos o prazer de existir e não o sofrimento, o pessimismo, matéria-prima de quase toda a literatura. Mas pensando bem, será que literatura não é apenas uma fase do homem inquieto e impulsivo se olhar no espelho para num tempo depois, longo ou curto, quebrá-lo, conhecer e aniquilar-se no espaço e no tempo vazios de valores que até então a eles se emaranhou como se fosse a sua natureza?
Quantos autores nos causam impacto por dizer aquilo que sentimos, aquilo que também vivemos! Uns vasculham os escondidos da alma com perícia de adivinho; outros vão fundo nas pequenas misérias humanas e delas fazem um peso insuportável de carregar; ficamos angustiados e cheios de uma espécie de ódio pelo mundo e pelo que é diferente de nós mesmos. Vale lembrar que, quando jovens e iniciados, quase por encanto, nas leituras críticas, e isso se dá geralmente através, quando não de nós mesmos numa espécie de pedido de socorro aos livros que buscamos nas horas de extremo sofrimento, de amigos ou de professores de inteligência aguda, nos deparamos com pensamentos e inquietações iguais aos nossos. São essas as leituras mais perigosas, uma vez que nos abre os olhos para um mundo até então ignorado.
Mas eis que depois da leitura e da inevitável descoberta, nos achamos estranhos, intranquilos, não raras as vezes com impulsos suicidas. Seria o termo niilista adequado para qualificar essa experiência pela qual passam todos aqueles de natureza inquieta e espasmos noturnos em sua tortuosa experiência de mundo. No entanto, esse é apenas um entre múltiplos estilos de leitura, de leitor e de escritor.
Há, entretanto, autores que ridicularizam a existência com as suas peculiaridades de vir a ser, fazendo com que quem os leia encontre em sua obra uma fonte de ironia, gozação ou desprezo pelo existente. São comuns as sátiras, comédias e novelas de costume do século dezenove, nas quais vamos encontrar e nos identificar com uma sociedade mesquinha, subserviente, corrupta, medíocre política, artística e moralmente, da qual passamos, não raro, a odiar e a nos envergonhar de fazer parte.
Há ainda aqueles autores, de estilo otimista que, sabedores ou fingidores da insegurança e da fugacidade existenciais, negam tal evidência e em seu lugar criam uma segunda natureza, eterna, racional e administrada com conceitos, que dá ao homem um poder fictício sobre o existente com toda a sua carga finita e perturbadora. Vale lembrar que aqui, como nos dois casos citados, há também niilismo, ou seja, falta ainda a grande surpresa, a grande dor, a superação da negação. Há autores que jamais são lidos por travar no leitor o entendimento e não conseguir deixá-lo ir adiante num texto erudito que tenta revelar, com diversos recursos linguísticos, ou a certeza da felicidade construída na base da bondade e da virtude, ou o desespero vazio de existir (o nada sobre o nada), ou o ascetismo moral.
É comum o leitor crítico passar a juventude e parte da vida adulta lendo e relendo os clássicos e, com o tempo, amadurecer o olhar e os sentidos passando a ler e a conhecer com agudeza as entrelinhas e o pensamento do escritor, pois amadureceu no tempo e no entendimento. È comum ainda o abandono de autores que outrora ajudaram a construir raciocínios, cujos significados passaram ao óbvio e não mais à surpresa. Aqui o leitor, já amadurecido em suas próprias experiências e reflexões, supera a literatura conhecida como porta voz da realidade. Mas é vendo-se nesse espelho superado e superando-se também, que o leitor atento vai criando outros olhares para outro tipo de leitura. Chegou o momento em que se vê no espelho, mas nega esse espelho ou, se o queria e o afirmava com todas as forças, não consegue despertar os sentimentos que outrora o abismavam em choros e convulsões. Resumindo, está morto para uma realidade também morta.
Um dia, um leitor de mente muito aguda disse numa roda de conversa entre amigos que, ao ler a biografia de dois grande escritores, o biógrafo afirmava que ambos haviam abusado sexualmente de adolescentes na juventude e que esse fato poderia ser responsável pela angústia em que mergulhara a alma dos dois, tão bem expressa em suas histórias e personagens moral e psicologicamente construídos. No instante em que ele, leitor, tomava conhecimento daquelas revelações disse perceber quão permeada de patologia era a literatura e como ela servia de espelho de si próprio. Descobria naquele instante que muitas, senão todas as suas perturbações eram criações do imaginário. Todas as lágrimas, lamentações, angústias, sofrimentos e maldade em relação ao outro com quem convivia nos momentos de tensões eram apenas construções psicológicas e, se tivesse talento, construções literárias. Percebia que os dois grandes romancistas eram exemplos de superação de si mesmos na encarnação de personagens ora niilistas, ora trágicos, ora ridículos, ora sublimes, ou seja, personagens demasiado humanos.
Quanta patologia, quantos surtos, quanta depressão por não querer ser como se é ou por se querer como se é. E daí o nascimento de teorias, ideias, filosofias, poesias que negam ou afirmam a vida de uma maneira pessoal e ao mesmo tempo universal e que flui como verdade, uma verdade gritada dos escombros de frustrações sexuais, perturbações dos nervos, inquietações metafísicas, de uma personalidade complexa e sensível.
Entretanto, um paradoxo: para que chafurdar em nossas vísceras? Que sentido tem buscar entender a vida através do conhecimento de nós mesmos, do outro e do mundo? Será que necessitamos da literatura para encontrar a nossa comunhão com a natureza? Seria então o drama literário, desde o começo, o choque necessário ao nosso aniquilamento, um meio de conhecer para poder sentir o grande abismo no qual a vida é despejada e que somos obrigados a parar o fluxo e, feito Dioniso, juntar os pedacinhos e reiniciar a realidade para a qual estivemos cegos? Ou seja, a história que se torna cinzas diante de um presente que acaba de nascer não se liberta do passado, mas o aceita como triunfo e não como derrota. Só a arte faz esse milagre. E a literatura é a arte da negação, e também da afirmação.
Ana Barros
Natal, 05 de julho de 2009.
Quantos autores nos causam impacto por dizer aquilo que sentimos, aquilo que também vivemos! Uns vasculham os escondidos da alma com perícia de adivinho; outros vão fundo nas pequenas misérias humanas e delas fazem um peso insuportável de carregar; ficamos angustiados e cheios de uma espécie de ódio pelo mundo e pelo que é diferente de nós mesmos. Vale lembrar que, quando jovens e iniciados, quase por encanto, nas leituras críticas, e isso se dá geralmente através, quando não de nós mesmos numa espécie de pedido de socorro aos livros que buscamos nas horas de extremo sofrimento, de amigos ou de professores de inteligência aguda, nos deparamos com pensamentos e inquietações iguais aos nossos. São essas as leituras mais perigosas, uma vez que nos abre os olhos para um mundo até então ignorado.
Mas eis que depois da leitura e da inevitável descoberta, nos achamos estranhos, intranquilos, não raras as vezes com impulsos suicidas. Seria o termo niilista adequado para qualificar essa experiência pela qual passam todos aqueles de natureza inquieta e espasmos noturnos em sua tortuosa experiência de mundo. No entanto, esse é apenas um entre múltiplos estilos de leitura, de leitor e de escritor.
Há, entretanto, autores que ridicularizam a existência com as suas peculiaridades de vir a ser, fazendo com que quem os leia encontre em sua obra uma fonte de ironia, gozação ou desprezo pelo existente. São comuns as sátiras, comédias e novelas de costume do século dezenove, nas quais vamos encontrar e nos identificar com uma sociedade mesquinha, subserviente, corrupta, medíocre política, artística e moralmente, da qual passamos, não raro, a odiar e a nos envergonhar de fazer parte.
Há ainda aqueles autores, de estilo otimista que, sabedores ou fingidores da insegurança e da fugacidade existenciais, negam tal evidência e em seu lugar criam uma segunda natureza, eterna, racional e administrada com conceitos, que dá ao homem um poder fictício sobre o existente com toda a sua carga finita e perturbadora. Vale lembrar que aqui, como nos dois casos citados, há também niilismo, ou seja, falta ainda a grande surpresa, a grande dor, a superação da negação. Há autores que jamais são lidos por travar no leitor o entendimento e não conseguir deixá-lo ir adiante num texto erudito que tenta revelar, com diversos recursos linguísticos, ou a certeza da felicidade construída na base da bondade e da virtude, ou o desespero vazio de existir (o nada sobre o nada), ou o ascetismo moral.
É comum o leitor crítico passar a juventude e parte da vida adulta lendo e relendo os clássicos e, com o tempo, amadurecer o olhar e os sentidos passando a ler e a conhecer com agudeza as entrelinhas e o pensamento do escritor, pois amadureceu no tempo e no entendimento. È comum ainda o abandono de autores que outrora ajudaram a construir raciocínios, cujos significados passaram ao óbvio e não mais à surpresa. Aqui o leitor, já amadurecido em suas próprias experiências e reflexões, supera a literatura conhecida como porta voz da realidade. Mas é vendo-se nesse espelho superado e superando-se também, que o leitor atento vai criando outros olhares para outro tipo de leitura. Chegou o momento em que se vê no espelho, mas nega esse espelho ou, se o queria e o afirmava com todas as forças, não consegue despertar os sentimentos que outrora o abismavam em choros e convulsões. Resumindo, está morto para uma realidade também morta.
Um dia, um leitor de mente muito aguda disse numa roda de conversa entre amigos que, ao ler a biografia de dois grande escritores, o biógrafo afirmava que ambos haviam abusado sexualmente de adolescentes na juventude e que esse fato poderia ser responsável pela angústia em que mergulhara a alma dos dois, tão bem expressa em suas histórias e personagens moral e psicologicamente construídos. No instante em que ele, leitor, tomava conhecimento daquelas revelações disse perceber quão permeada de patologia era a literatura e como ela servia de espelho de si próprio. Descobria naquele instante que muitas, senão todas as suas perturbações eram criações do imaginário. Todas as lágrimas, lamentações, angústias, sofrimentos e maldade em relação ao outro com quem convivia nos momentos de tensões eram apenas construções psicológicas e, se tivesse talento, construções literárias. Percebia que os dois grandes romancistas eram exemplos de superação de si mesmos na encarnação de personagens ora niilistas, ora trágicos, ora ridículos, ora sublimes, ou seja, personagens demasiado humanos.
Quanta patologia, quantos surtos, quanta depressão por não querer ser como se é ou por se querer como se é. E daí o nascimento de teorias, ideias, filosofias, poesias que negam ou afirmam a vida de uma maneira pessoal e ao mesmo tempo universal e que flui como verdade, uma verdade gritada dos escombros de frustrações sexuais, perturbações dos nervos, inquietações metafísicas, de uma personalidade complexa e sensível.
Entretanto, um paradoxo: para que chafurdar em nossas vísceras? Que sentido tem buscar entender a vida através do conhecimento de nós mesmos, do outro e do mundo? Será que necessitamos da literatura para encontrar a nossa comunhão com a natureza? Seria então o drama literário, desde o começo, o choque necessário ao nosso aniquilamento, um meio de conhecer para poder sentir o grande abismo no qual a vida é despejada e que somos obrigados a parar o fluxo e, feito Dioniso, juntar os pedacinhos e reiniciar a realidade para a qual estivemos cegos? Ou seja, a história que se torna cinzas diante de um presente que acaba de nascer não se liberta do passado, mas o aceita como triunfo e não como derrota. Só a arte faz esse milagre. E a literatura é a arte da negação, e também da afirmação.
Ana Barros
Natal, 05 de julho de 2009.
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