domingo, 3 de maio de 2020

Fim de festa


Morro ainda hoje
A luz vermelha atravessou meu corpo e
Os dedos sangram entre os cacos da luva quebrada
Todos foram embora deixando para trás o vinho derramado
Eu lavo as mãos...
A pele ressecada de idas e vindas à porta
Renovam a certeza de que
Morro ainda hoje
Outra vez lavo as mãos e a coroa de vírus desceu no ralo
Alguém voltou a me chamar...
Estou ocupada em limpar a mesa
Repetem aos gritos: “Antônia!!!”
Deixo chamar... Alguns minutos se passaram
O silêncio ocupa espaço enquanto enterro os restos
E aí, depois de décadas enfiado no estrume, encontro
O meu besouro azul

Ana Barros

Natal, 21 de março de 2020
(No isolamento da Covid-19)
   

quarta-feira, 11 de março de 2020

Noturnos


Os amigos conversam em meio a doses de aguardente e café na grande mesa retangular. Conversam e riem como se de um momento para o outro o defunto fosse soltar a gargalhada engasgada da saliva escura de tabaco mascado. Gargalhada de fumante bonachão e gozador que era. Ninguém ali se livrou das brincadeiras do velho senhor alto, magro e sempre a pedalar a bicicleta na direção da chácara onde cansava o corpo e revigorava o espírito nalgum buraco de terra. Num canto da sala, afastados dos demais, estão dois homens que tentei o dia todo, sem sucesso, encontrar no meio das rodas que se formaram da sala ao quintal. Os dois camaradas do meu avô vieram ao último encontro. Pareciam ter morrido com ele, tamanha a tristeza em seus rostos magros. 

Fui o neto mais próximo do meu avô, apesar de seu amor ser claramente dos netos que vinham apenas uma vez no ano embolsar a mesada, fruto da colheita feita pelos colonos e por mim, que ficava de fora do rateio por “não merecer”, uma vez que, diferente dos primos, eu havia me beneficiado das regalias da mesa, sentenciava meu avô. Sempre aceitei a decisão sem reclamar. Não escolhi estar ali por dinheiro e sim pelos esconderijos que encontrei longe da casa dos meus pais. Ensimesmado e sempre a andar pensativo no entorno da propriedade eu estava longe de ser querido por avós que limpavam a culpa da má consciência na ausência no desregramento dos netos. Aquela aproximação só teve um lado, o meu. Uma aproximação enviesada, tímida, olfativa,  em que mais contavam os cheiros, os espaços vazios, os movimentos involuntários, os recantos escondidos, as nuanças captadas pela mente aguda de um menino que, educado sem os mimos dos pais nem o carinho dos irmãos mais velhos, passa então a afiar a astúcia sensorial. Foi na casa do meu avô que encontrei os elementos necessários às especulações com as quais escrevi três livros de poemas. Com a imaginação estendida no entorno da casa dos meus avós tornei-me um homem perturbado pelos segredos alheios, que, involuntariamente, chegavam até mim. Foi aí que compreendi a relação sensual e religiosa do meu avô com a existência. Gostei do que vi. Era diferente da vida na cidade. Contemplei mais uma vez o rosto sereno e duro que dormia para sempre. Deixei-me levar aos dias em que vi os dois amigos que velavam meu avô juntar-se a ele na sala de luz nublada pela névoa de fumaça dos cachimbos.

A escuridão é quebrada pela chama mortiça do candeeiro e dos cachimbos que soltam um cheiro embriagador. Muitas vezes fumei cigarros feitos de fumo picado pelo meu avô e vomitei bêbado. Assim, condicionado a fumar, cuspir e vomitar tornei-me viciado em tabaco. Gostava particularmente do efeito da nuvem da fumaça saída dos cachimbos dos três amigos, cuja imagem sombria àquela hora da noite dava à sala um quê de mistério, um quê de coisa escondida, um quê do domínio de homens orgulhosos. Na sala retangular com dois bancos de madeira rústicos, um de cada lado da parede, as horas pareciam congeladas diante do aspecto estático e solene dos três. Às vezes pareciam cochilar. Mas logo a tosse gorda do fumo mastigado quebrava o silêncio pesado da madrugada. Era comum chegar à meia noite sem que os amigos dessem sinal de partida. Na completa entrega às baforadas e às xícaras de café preto, sequer lembravam que dali a algumas horas estariam de pé para dar continuidade ao serviço cuja importância era o assunto recorrente nas poucas falas entre os três: Preço do milho, preço da saca de farinha, previsão de chuvas para o próximo ano, aquisição de mantimentos... Orgulhava-me do meu avô por ser ele o dono daquela planície na qual todos os anos, chovesse ou não, plantávamos os grãos da nossa alimentação diária. As brincadeiras das férias nunca foram outras senão jogar pedras no poço de pedra centenário para ouvir o eco de sino, fumar, tanger o jumento carregado ora com mandiocas, ora com lenhas, ora com barris cheios da água apanhada na lagoa que se formava no período das chuvas, jogar as sementes na cova aberta, cobri-las com a areia fofa e úmida que deixava meus pés enegrecidos e cravados de espinhos. Voltava à escola com os dedos gretados e as unhas duras de barro branco. Fazia questão que fosse assim. Exibia os ferimentos e a sujeira como troféu aos colegas de uniforme e unhas limpas de acordo com o manual da escola. Graças ao relaxamento dos adultos tive a liberdade de ir à escola como bem quisesse. Exibia o meu desregramento como poder.

Aprendi com meu avô prestar atenção ao tempo e usá-lo para pendurar-me na preguiça que ele, o tempo, dá àquele que ama o devaneio. Errava quem pensasse ser de tédio os momentos silenciosos passados pelo meu avô na cadeira de frente para a estrada, de onde vinham as mulas carregadas de mantimentos. Eram finais de tarde entregues ao ócio, direito adquirido pela dedicação radical ao trabalho. Seus olhos falavam com o nada, falavam com a ausência de motivo, apesar de ser ele o motivo e a ação a brincar com o tempo naquele chão. Afora o encanto por aquele velho, que despertara em mim a vontade de ter vontade  mesmo quando deixava de plantar o milho e entregava o terreno às belas cebolas-brabas, foi na casa de farinha que senti os primeiros latejos sexuais. Lá ouvi as primeiras conversas sobre sexo e tomei gosto pelas crônicas depravadas das mulheres. Elas me consideravam um menino tolo e davam vazão a uma sexualidade sem peias. Mais tarde compreendi por que as mulheres da casa do meu avô as qualificavam de “putas”. Eram mulheres  contratadas por alguns centavos, e um prato de feijão com carnes, para descascar os tubérculos e moê-los no motor adaptado de algum veículo abandonado no ferro velho. Havia entre elas uma competição para ver quem desmanchava mais mandiocas nas serras amoladas. “O que ganha a vencedora...? Um bolo de massa pro café da manhã”, cantava Matilde, a rainha do serrote, como ficou conhecida por seus braços roliços e ágeis no manuseio das raízes tantas vezes exibidas por ela como grandes falos. Aquelas mulheres não eram iguais às mulheres da casa do meu avô. Elas não tinham uma vida de prazeres escondidos e outra, recatada, para exibir ao mundo das convenções. As mulheres da casa de farinha não eram casadas, não iam à igreja, não tinham medo do diabo, tampouco de Deus. Gostavam de pinga e, aqui acolá, baixavam no terreiro de Vicente para encomendar uma “amarração”. “Catimbozeiro sem vergonha”, dizia minha tia mais velha sobre o velho pai de santo.  Ao mesmo tempo em que riam dos “cafajestes,” narravam com palavrões e risos as “trepadas” com aqueles homens sem a menor preocupação em jogar nelas as suas sementes. “Ai, como dei ontem a Zé do Caroço…”, disse Josefina revirando os olhos e abraçada a uma longa e grossa raiz. Referia-se à noite passada com o forneiro que adquirira um gânglio na axila direita pela pressão do rodo. O hábito pedrou a carne e ele virou Zé do Caroço.  Não raro, cada filho tinha um pai diferente. Ouvi muitas vezes minha avó contar a história de Jacinta, que morreu solteira quando já passava dos 80. Jacina, segundo a narrativa repetida como lição de moral nas rodas de conversas em que minha avó fazia questão de aparecer, tivera oito filhos de oito amantes.  Deixara os bebês morrer de fome no fundo da rede, pois, nem bem murchava a barriga, voltava à lida nalgum campo de roça e, sem demora, a deitar de novo no paiol do sótão apelidado de cama dos gatos.

Na época das farinhadas meu avô conduzia as filhas, a esposa e eu à casa de farinha logo terminado o jantar. Era o lazer das mulheres depois de um dia entregue ao fogão e a lavar panelas. Lá ficávamos na penumbra das lamparinas até às 21 horas. Eu, calado, via e ouvia tudo com prazer e atenção naquele ambiente silencioso e dissimulado, diferente do ambiente matinal das raspadeiras sem travas na língua e no sexo. Minhas tias namoram dois rapazes que chegam sem que meu avô perceba. Sentam próximo ao monte de mandiocas e ali ficam, semi-escondidos. Fingem raspar os tubérculos enquanto a mão escorrega para debaixo das saias das moças. Elas riem baixinho enquanto a mãe cochila na rede armada no alpendre e o pai fuma o cachimbo de costas para os casais. A ele interessa que as moças casem seja lá com quem for. As duas haviam já passado dos 30 e ele não gostava da ideia de mantê-las solteiras. Tinha atitudes pragmáticas tanto na vida familiar, casar as filhas para economizar nas despesas da casa, quanto nos negócios: “Francisco, tem mandioca para amanhã de manhã?”, ele me pergunta sem tirar o cachimbo da boca. “Tem”, respondo sem tirar os olhos do homem nu da cintura para cima, calças arregaçadas à altura dos joelhos e descalço, que anda de um lado para o outro na calçada comprida e estreita com o rodo gigante na mão. Vaivém maquinal do cozimento da farinha no fogo à lenha. É pago para torrar no correr da noite cem quilos. Meu avô vigia a qualidade do produto. Retira-se só quando tem certeza das previsões para aquela noite. Terminada a primeira fornada abro a boca do saco e o forneiro joga as cuias contadas por meu avô ali dentro. Faz uma média rudimentar e conclui com exatidão o número de sacas produzidas até o nascer do dia, quando o trabalhador abandona o serviço levando com ele três cuias de farinha como pagamento pelo serviço. 

A escuridão do pequeno trajeto entre a casa de farinha e o casarão dava-me a certeza de ver formas estranhas se moverem debaixo das árvores. Era só clarear para eu correr àquele ponto do caminho em que ainda vive o grande pé de jacas. Nada além dos galhos, raízes e formigas eu encontrava. O prazer secreto de falar com o desconhecido na escuridão da estradinha me fez retornar ao casarão de meus avós em períodos de férias escolares por anos seguidos. Sonhava com o momento em que abandonaria livros e cadernos e corria ao sítio mais curioso e com rendimento escolar medíocre. No lugar dos conceitos e cálculos, o obscuro, o não dito. Estabeleci a técnica de estudar as pessoas ao meu redor com todos os sentidos afiados e a malícia dos meninos solitários. Pois bem, foi assim que me dei conta de que observava três velhos na sala iluminada por lamparinas e brasas de cachimbos. 

O trabalho começa as sete e vai até às dezessete. Uma bacia de ágata branca com água limpa espera meu avô, que encosta a enxada à parede, tira o chapéu, a camisa suada, arregaça as pernas das calças até os joelhos e, sentado no umbral da porta da cozinha, lava os pés, os braços e o rosto. Permanece ali alguns instantes. Contempla o crepúsculo e entrega-se ao espetáculo melancólico do fim. Aquele velho sólido e grato representa as palavras empoladas do locutor que dramatiza no rádio A Hora do Ângelus: “Ave Maria! Hora da prece e do perdão!...” Chega dezembro com as férias escolares e o fim da lida na terra. À Ave Maria chorada com os raios do sol cansado, meu avô escolhe a rede armada no alpendre e ali se balança até o momento em que vê os dois amigos aparecem. As visitas continuam até a chegada das chuvas, esperadas entre janeiro e março, quando começa o plantio e alguns meses depois, outra vez, colheita e farinhadas. Havia entre os três homens o tempo de suar na esfrega da terra e outro para compartilhar algo cujo silêncio atiçava a minha imaginação com possíveis e impossíveis possibilidades. Era o silêncio do meu avô e de seus dois amigos naquele período de ócio motivo que tirava meu sono e me levava a escrever páginas e páginas a adivinhar o que eles diziam sem falar. Por várias vezes tentei colar o ouvido à porta do quarto, que dava para a sala de visitas, na tentativa de ouvir o que os três. Jamais captei algo inteligível capaz de confirmar as minhas especulações. Era o mesmo ritual: cumprimentavam-se tirando o chapéu, sem o aperto de mãos, enchiam os cachimbos com o fumo picado sobre a tábua da mesa, acendia-os com a luz da lamparina e acomodavam-se nos bancos rústicos. Minha tia mais velha aparecia bocejando em sua última obrigação do dia. Trazia o bule de café e as xícaras de porcelana encardida. Deixava-os sobre a mesa e só recolhia no dia seguinte. Após ter certeza de que ela não voltaria, levantava-me na ponta dos pés e observava os três pela porta entreaberta. Passei minha infância na expectativa de descobrir o que eles pensavam ao chupar os cachimbos, soltar a fumaça pela boca relaxada com olhos baços de quem entrava em contato com um mundo diferente daquele que desaparecia com a noite. A luz da lamparina decorava a ampla sala com as sombras das figuras solitárias refletidas na parede branca. Fumavam, fumavam, fumavam... Minha avó tossia aqui acolá sob o efeito da nuvem que chegava até ela pelas frestas da porta. Diziam alguma banalidade a respeito dos acontecimentos do dia. Calavam. Fumavam, fumavam, fumavam... O silêncio aprofundava mais e mais na quietude da noite. Toda a casa dormia, menos eu. Os trabalhadores dormiam. Mas os três homens não tinham sono. Desperto com a inalação do tabaco eu não perdia um só movimento dos três. “Será um ritual?”, penso ao lembrar as histórias de lobisomem que as raspadeiras contavam. Cheguei mesmo a ter certeza de que meu avô e os dois amigos eram os personagens nunca conhecidos daquelas fábulas. As mulheres se referiam aos lobisomens com o mesmo erotismo com que falavam dos amantes. As descrições dos personagens com seus cachimbos cheios de fumo reunidos à meia noite atrás da casa de farinha levavam aos três homens que,  nessa hora exata, levantavam-se e meu avô os seguia na escuridão. Voltando sozinho algum tempo depois. Exalava não mais o odor de tabaco, mas o mesmo cheiro do suor de Teresa, que ajudava na cozinha. “Mas... será que eles não se reúnem para pensar como eu faço debaixo da jaqueira?”, considerei. Porém não, eles não eram assombrações, tampouco poetas... Eram homens sólidos, sensuais, inteiros como a própria existência. Devotos dos santos e tementes a um Deus a quem amavam através dos fenômenos. Jamais souberam o que era um espírito perturbado, daqueles que, aqui acolá, o padre era chamado para acalmar. Plano e simples como os campos de mandioca, assim eu compreendi o espírito dos três companheiros noturnos cuja devoção às sombras da noite era a mesma com a qual aravam ao sol. Dia e noite eram apenas claro e escuro, som e silêncio de uma natureza que, diferente dos homens, trabalhava feliz e sem descanso. E foi assim que a intransigência de rapaz me levou à certeza de ter encontrado o real sentido daquelas reuniões entregues a longas e solitárias baforadas.  Enfim afirmei nas páginas do caderno que os três velhos se encontravam regularmente para quebrar a imposição do tempo, pois sabiam haver algo escondido nos recantos da escuridão, nos sussurros e nos silêncios profundos que falava com eles, só com eles, seres iguais à vontade indiferente ao relógio. Mas este tirano do tempo contado lembra, “meia noite!”. No começo não gostava do cheiro forte do fumo picado. Certa vez, quase sufoquei e, graças à resistência dos pulmões não tossi livrando-me assim de ser descoberto pelos fumantes que pareciam escrutar alguma coisa que vinha dos alpendres, do vento frio, da escuridão, das árvores gemendo no aconchego sensual dos galhos. O peso da névoa de fumaça afastava do ambiente qualquer pretensão ao transporte místico dos que combatem o cansaço enrolando-se no cobertor macio da oração. Agora, ao observar os dedos amarelos de nicotina e os bigodes queimados dos dois amigos que choram a morte do meu avô, que tem também os bigodes queimados e os dedos amarelos de nicotina, abandono as  certezas de rapaz e passo a ter a certeza de que os três amigos se reuniam na sala nublada de tédio só pelo prazer efêmero de nascer com o dia.

O relógio bate quatro horas. Os dois tossem, assuam o nariz e tomam o café frio. A chama das velas expira. Meu avô não vai mais se levantar do banco para acompanhá-los à saída. Todos dormem. Os velhos vão à janela e olham o começo da agitação. A sala está vazia e os amigos podem se despedir. Sentam-se ao lado do caixão, acendem os cachimbos, dão várias e longas baforadas. O fumo vira cinzas com a noite e os dois se espreguiçam, vestem os casacos, repõem o chapéu e abandonam o morto. (Ana Barros)
Foto: Fernando Mourão Gutiérrez (domínio do Google)







terça-feira, 3 de março de 2020

Bom Ar


Acabo de deixar a prisão. Três anos atrás das grades por tentar matar uma mulher. Paguei completa e exemplarmente a pena. Porém, faria tudo outra vez se hoje ainda fosse um homem divido entre dois cheiros. Pois bem, naquele dia vesti a roupa mais adequada. Borrifei o perfume economizado para momentos como aquele. Pelo efeito que se daria adiante, considero que, como sempre fizera, tentava esconder com a fragrância comprada na loja o meu verdadeiro cheiro. Olhei-me no espelho e aprovei o conjunto: era um homem bonito. Tinha trabalho e um plano de saúde, ambos modestos. Tomei o ônibus uma hora antes da consulta. Sofria de ansiedade e fadiga. Quarenta minutos depois estava de frente ao prédio luxuoso. Os vidros escuros ofuscaram meus olhos: “como entrar aqui?”, pensei preocupado diante da imponência da clínica. Demorei alguns minutos procurando a campainha. Desesperado pelo adiantado da hora bati forte nos vidros. Logo a atendente apareceu. “O Senhor vai quebrar a porta? Não viu o interfone?” “Vi não, moça... Onde está?” “Aí, do seu lado”, apontou ela mal humorada. Aquilo era novo e inacessível para mim, que só conhecia a cigarra estridente do ônibus. Logo a atendente preencheu a ficha do paciente e me anunciou: “Miguel Ângelo, sala 03!”. Ao entrar na sala 03 quase perdi o fôlego. Ela era a cópia de uma das celebridades que via à noite na TV, bela, jovem e, como a apresentadora repete para as mulheres da plateia, “empoderada”. Não apertou a minha mão. Pediu que sentasse na cadeira longe dela o suficiente para indicar o seu e o meu lugar, este, compreendido naquele dia. Ainda assim, deu para sentir o perfume doce e caro que saia dela. Pensei no meu, forte e ordinário. Duas molduras sobre a mesa justificavam a sua felicidade. Tinha marido e um casal de filhos adolescentes. Passeavam em lugares que eu só conhecia das revistas que folheava no banheiro da escola. “Então, o que traz o senhor aqui?”, ela perguntou empinando o nariz com impaciência. “Sou ansioso e cansado”, eu disse. “Academia e mudança na alimentação”, disse apertando o botão da impressora. “Em que trabalha?” “Sou professor.” “Ah...”, ela acrescentou arqueando um dos olhos e o lábio superior. “Bem, o senhor vai tomar estas vitaminas e matricular-se na academia. Temos os dois aqui”. “Quanto custa o tratamento completo, doutora?”, quis saber. “A vitamina, que vem dos Estados Unidos, custa R$ 300. A academia, R$ 250”, disse entregando-me duas folhas impressas com as taxas do laboratório. Pensei: “R$ 250 do plano de saúde, mais 300 da vitamina, mais 250 da academia igual a R$ 800...” “Não tem um tratamento mais em conta, doutora?”, perguntei angustiado. “Sim, tem!”, ela disse estirando o pescoço e fitando-me com aqueles olhos arregalados da cor de violeta. “Procure o Posto de Saúde, lá eles têm o acompanhamento adequado para o senhor.” “Mas eu pago um plano de saúde para não ir ao Posto de Saúde”, argumentei humilhado. “O senhor sabe quanto eu ganho por uma consulta deste nível?” “Não!”, respondi. “Pois bem, a partir de hoje estarei me desligando do seu plano de saúde. Só me traz aborrecimentos e perda de tempo”, disse chamando a atendente no interfone: “traga o Bom Ar!”. A moça entrou agitada e borrifou o ambiente. Cheirei ao redor de mim, cheirei as axilas, a camisa... Estaria fedendo? Porém o pior aconteceu quando a atendente, obedecendo a um gesto sutil da mão da médica, desinfetou os meus pés. Foi aí que, cego de ódio, pulei sobre aquele pescoço arrogante e apertei-o até ela defecar. “Pronto, doutora, agora sim esse é o seu verdadeiro cheiro!” A polícia apareceu de repente e me levou algemado.

Há quanto tempo não pegava o ônibus. Sentei no banco ao lado da moça com uniforme. Era ela, a atendente. Devido estar de olhos fechados não me reconhecera. Porém fungou três vezes dando sinal de que alguém fedia. Eu havia ocupado o último assento disponível naquele ônibus lotado, ali, perto dela. Mais de uma hora levaria para chegar ao meu destino. Ah, a atendente morava no mesmo bairro que eu. Pois bem, a moça estava tão cansada que adormeceu deixando pender a cabeça sobre o meu ombro. Observei que ela tinha os sapatos gastos e Cheirava a Bom Ar. Os cabelos, roçando o meu nariz, constrangiam com dois dedos de fios brancos e pixains crescidos na raiz. A minha parada era a próxima. Tomei os cuidados necessários para não acordá-la e aconcheguei sua cabeça no casaco que trouxera do cárcere.


Ana Barros                  
Natal, 19 de fevereiro de 2020.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

O labirinto de Arthur Flexer


O que dizer ainda sobre Joker (Coringa), de Todd Phillips? Talvez nada. Porém não é demais repetir que o filme é pura alegoria do começo ao fim. Imagem da diversidade num mundo que não consegue encobrir as múltiplas composições de formas e subjetividades. Há no filme elementos capazes de fazer pensar por vários dias nuances imbricadas num enredo paradoxalmente caótico e libertador. Poder e morte de uma sociedade que evidencia a face cruel sem conseguir impedir que o movimento aconteça, que o indivíduo destrua nele próprio o que o fez louco e marginal. Joker não é uma catarse coletiva como muitos querem, mas a ação individual sobre o constrangimento de ser diferente. A evolução circular de Arthur Flexer, revelada mais na fotografia escuro/claro do que no enredo em si, é o que realmente interessa no subtexto do filme, cuja tensão psicológica eleva-se à completa ruptura entre o indivíduo e o social. Uma pupila dilatada, assim é o inconsciente de Arthur Flexer. Nem assassina, nem suicida. Tampouco alienada. Ele aprende a descer com o farol, foca o buraco escuro. Arthur Flexer, não é Coringa, poderia ser um paciente da esquizoanálise de Deleuze e Guattari, filósofos da diferença que ainda dialogam com o século XXI: “É verdade que a filosofia é inseparável de uma cólera contra a época, mas também de uma serenidade que ela nos assegura”, ensina o experiente Deleuze. O caos força a percepção do diferente e, por isso, socialmente invisível. Chega de análises, tarja preta, enganações, discursos de uma falsa política. Arthur Flexer quer dançar no lodo. Aliás, a alegação de ter matado os três investidores da bolsa no metrô foi a de que eles “cantavam mal”, metáfora apropriada para ridicularizar a pobreza moral de uma classe que é incapaz de sonhar. Aqui a doença passou a ser saúde e ele diz triunfante: “O que me faz rir de verdade é pensar que a minha vida era uma tragédia. Mas agora entendi que é uma puta comédia”, refere-se à passagem do buraco escuro à singularidade daquele que juntou dor ao riso. Há no labirinto de Arthur Flexer o desdém à retirada do remédio que controla a sua vontade mais secreta, qual seja a de ser ele mesmo. Na primeira fase do filme, obediente e controlado, o personagem é uma caricatura dolorosa do adestramento psiquiátrico. A fotografia é escura, suja. Arthur Flexer denuncia a corrupção moral de seu tempo: curvado, magro, mal vestido, incompreendido e tido por todos como “estranho”, “doido”, ou seja, inadequado no mundo que o construiu e que o quebrou. A indiferença social fica evidente na cena em que a psicóloga diz que a terapia chegava ao fim. Os programas sociais estavam encerrados. Ele perdia o direito aos remédios, ela, o emprego. Ela, negra e da mesma classe social que ele, representa o profissional indesejado tanto quanto o paciente. Diferente da cena final do filme na qual há uma assistente social conforme as regras. O ambiente já não é sujo nem escuro. A profissional, também negra, mas de aspecto branqueado, finge não fazer parte da classe social de Arthur Flexer. Mas é no ambiente seguro, branco e higienizado do hospital que se dá o clímax da metamorfose daquele que aprendeu dançar no escuro. “Parei de tomar os remédios. Estou bem melhor agora”, ele diz. Ergue a coluna, se veste de cores vibrantes e não sobe mais a longa escada como se caminhasse para a morte. Ele é Ele no sentido cru da palavra. Emancipado, desce a escadaria e encara a realidade que o esmaga. Livre, mesmo que para morrer num hospício, destrói as máscaras com as quais representou até ali. Vem daí pedir para que o apresentador de televisão o chame de “Coringa”, Arthur Flexer também é um farsante. Se ele mata a psicóloga? Isso é tão secundário como achar os personagens de Shakespeare psicopatas sem conhecer o emaranhado sociopolítico-psicológico de suas tragédias. Basta acompanhar a trilha sonora e observar o semblante do homem que reflete o passado e se lança no presente com o cuidado de não mais permitir que pisem os seus sonhos para enxergar derrota e ação, não violência, como partes do jogo. A psicóloga quer saber por que ele sorrir: “Você quer contar para mim?”, ela pergunta sem marcar o semblante com expressão de sentir com o outro. “Você não entenderia...”, ele responde sem o ressentimento com o qual expõe sua angústia à primeira funcionária. Instantes depois, caminha deixando fortes pisadas de sangue no corredor de paredes e piso brancos. Temos pressa em saber: “ele a matou?”. A imagem transborda significados para além de suposições. Ao ouvir Frank Sinatra radicalizar, algumas pessoas se divertem pisando sonhos/ mas eu não deixo, não deixo isso me abater/ porque esse belo e velho mundo continua a girar”, compreende-se que Arthur Flexer é Zorba e não Coringa. Quem pisa o branco (sistema) e imprime o vermelho ativo da existência singular não é um assassino, mas o artista que diz sim à vida, à vida cuja liberdade ele encontra, só, na subjetividade que triunfa sobre o comum.

Ana Barros
Foto: Domínio do Google




sexta-feira, 8 de novembro de 2019

A festa de Ló

As galinhas morrem penduradas de cabeça para baixo. Alguém amola a faca para retirar o couro e as vísceras dos animais abatidos. As crianças acordam com o berro das ovelhas. Duas horas se passaram. No lugar do sangue e das fezes há agora grande quantidade de carnes limpas com água quente e sal. As crianças voltaram a dormir. O silêncio é quebrado apenas pelo manuseio dos utensílios nas mãos das mulheres que, até ali, olhavam modorrentas à ação violenta dos homens. O cheiro do café coado anima as duas vizinhas que estabelecem entre elas uma divisão amigável das tarefas. Decidem que o tempero fica sob a responsabilidade da dona da casa, uma vez que os convidados conhecem o toque picante dos pratos da velha senhora. Assim começa o dia do aniversário de minha mãe, a quem desde sempre chamei Ló, apelido de Lótus. A festa sempre começava com algazarra e bom humor, porém logo enveredava numa correnteza tão azeda quanto o vinagre usado no preparo da comida. Era assim todos os anos e ninguém deixava de vir alegando cansaço ou constrangimento das repetições dos dramas familiares com data marcada para acontecer, o dia do aniversário de Ló. Havia motivos cristalizados para não faltar. Um deles era a mesa farta o dia todo. O outro, as cenas burlescas entre a anfitriã e os filhos, cuja tensão aumentava à medida que as garrafas esvaziavam e os convidados, já embriagados, entravam na história, fosse como plateia silenciosa, fosse como bobos da corte. O Enredo teria início logo a filha mais velha chegasse da capital onde morava há mais de vinte anos. Aparecia só naquele dia, carregada de mau-humor e presentes caros. “Trouxe meu uísque?”, pergunta Ló mal a filha desce do carro importado rebocando malas e sacolas de grifes. “Maravilha!”, disse Ló agarrando a caixa da bebida sem cumprimentar minha irmã e os filhos. Estes, de fones nos ouvidos e celular na mão, não viam nem ouviam além deles mesmos. Estavam preocupados em encontrar tomadas. O mais novo para carregar a bateria do aparelho e o mais velho para ligar o secador dos cabelos. Eu olhava do alpendre sem me dispor ajudar a minha irmã, que ficara para trás com as bagagens e a cadela Minnie. “Voltem aqui, seus filhos da puta!” “Vou cancelar a viagem à Disney, esperem só!”, grita enquanto arrasta as malas e a cachorra vestida com saiotes de bolas vermelhas.

Ló tomava a primeira dose dupla de uísque daquele dia, fazia setenta e sete anos. Três filhos. Eu era a segunda, o terceiro, deixo para falar dele mais adiante. Dois netos, nenhum genro e um marido que desaparecera quando comemorávamos a Páscoa na casa da madrinha do meu irmão, comadre de Ló, que também fugira naquele mesmo dia. A fuga dos dois se tornou motivo recorrente de lamentações e brigas entre nós, mas não desculpas para cancelar a festa do aniversário de Ló. Há mais de dez anos reuníamos parentes e amigos que vinham de longe saborear os pratos de galinha e bode, cuja engorda se dava ali mesmo no quintal sob os cuidados de Ló. Além das duas filhas e dos netos, faziam parte da festa alguns tios velhos, muitos primos, compadres, comadres, afilhados e pouquíssimos amigos. Ló não fazia questão de tê-los por perto, nem naquele dia, tampouco nos outros. Na ausência deles eu era a única presença naquela casa que enchia uma vez no ano de pessoas com as quais não mantínhamos relações próximas. Vinham para comer, beber e participar das nossas brigas. Por sermos apenas ela e eu, sem muita conversa e, consequentemente, excesso de ironia e dissimulação desempenhadas na rotina silenciosa de duas mulheres com a idade há muito passada das cobranças do mundo, tirávamos proveito da reunião anual para repetir cenas de ciúme e agressões mútuas que todos já conheciam. Não era por isso que os convidados deixavam de ser simpáticos ao combate entre mãe e filhas. Eram discussões regadas à carne, álcool, cigarros e doces. Iniciavam invariavelmente com alguma observação maliciosa de tio Feliciano, cuja tolice e megalomania impulsionadas por alguns copos de cachaça já eram há muito conhecidas de todos. Com a sua chegada triunfal sobre o cavalo marrom tinha início à conversa animada que comandaria a festa dali em diante. “E aí, Ló, convidou o meu compadre?”, pergunta o velho mal pisa o chão. Sem perder o hábito ela estira o dedo médio em direção a tio Feliciano e dispara: “Vá tomar no cu, velho safado!”. Acontecimentos recorrentes como traições do meu pai e falta de sexo voltavam à memória estimulada pelo uísque e, no caso das filhas, pelo prazer de ver Ló, despojada das armas fatais da libido, com as quais enfrentou o marido e o mundo, ameaçar com a voz entornada de uísque: “Parem ou eu acabo já com esta merda!”. Não parávamos. Quase sem voz pulávamos de um xingamento a outro para depois, sem mais o que dizer diante da indiferença das outras mulheres, que mexiam as panelas num frenesi sensual dos quadris, escorregarmos para os nossos esconderijos: Ló engolia mais uma dose dupla e corria ao quarto dos fundos com a garrafa, dois copos e um maço de cigarros. A porta se abria como se alguém observasse de dentro e soubesse que ela iria. Era o meu irmão, o filho caçula que esperava.  Já a minha irmã, se isolava num canto da sala e dava cabo da tigela de doce de leite saída do fogo naquele instante. Quanto a mim, corria ao banheiro com a valise preta e só saía de lá quando o calor entre as pernas havia esfriado.

A casa já não era a casa da filha mais velha. Há muito havia deixado para trás os afetos corrompidos. Mesmo assim, quando retornava aquela única vez no ano, era como se os ressentimentos se renovassem, não só entre mãe e filha, mas com os netos também. “Feche a geladeira, filho da puta!”, gritou a avó para o neto indeciso se pegava a garrafa amarela ou a roxa. “Beba mijo. Os refrigerantes são para o almoço”, ela diz e toma a garrafa da mão do rapaz. Virando-se para minha irmã ordena: “Leve embora esses frescos.” Às costas de Ló, minha irmã simula um chute em seu traseiro, abre a geladeira e entrega a garrafa ao filho que escorrega na ponta dos pés.“Esta é a última vez que eu venho aqui!”, diz minha irmã encaminhando-se para o carro com os filhos e a cadela, que ameaça morder o calcanhar de Ló. O mais velho, que não largava a necessaire de oncinhas na qual carrega o secador de cabelo, caminha lento e debochado. Vai atrás rebolando e de dedo do meio estirado para os que observam e dão gritos de “urra!”. Minha irmã, contorcendo-se de raiva atira na direção dos convidados uma caixa cheia das embalagens dos doces que havia comido. Em silêncio, e de queixo erguido, Ló passa por todos e se encaminha para o quarto. Fecha a porta e destrói os presentes que havia recebido de nós, suas filhas e netos. Não poupa nem os litros vazios do Old Parr que bebera em goles rápidos. Antes, porém, inclina-os na boca para descer as últimas gotas. O arremesso das garrafas quase atingiu a filha, que resolve voltar depois do cavalo de pau que ensaiou com os filhos na estrada poeirenta.

Cortar os alimentos, prepará-los com mexidas leves ou apressadas nas quais o corpo acompanha o manejo num ritmo violento e sensual, imprimia às conversas um jogo erótico e dramático no qual os desentendimentos entre Ló e nós, suas filhas, misturavam-se à comida igualmente os condimentos essenciais como o alho e o sal. Nada ficava por dizer na atmosfera dosada de gordura, álcool e açúcar. As conversas cresciam, inchavam como as claras em neve batidas pelas cozinheiras. Ameaçavam explodir igualmente a gula sobre os pratos ora doces, ora picantes, ora azedos. No ritmo crescente de acusações não prestávamos atenção ao que dizia a outra. Cada uma representa o seu monólogo como se o que dissesse fosse de grande importância para os que ali cortam, mexem, lavam, bebem, escutam, ou fingem escutar. A confusão atinge o ponto alto quando minha irmã abre a boca e puxa um par de dentaduras postiças impregnadas de resíduos de doce. Ela está transtornada. Treme, grita. A saliva faz chuvisco sobre as comidas expostas à mesa. “Todos perdidos!”, diz minha irmã com o dedo no buraco murcho sem os dentes. “E de quem é a culpa? Dela!”, aponta com furor para Ló, que ouve a história contraindo os músculos do rosto. “Sim, a Senhora é culpada!” A frase é cortada por um acesso de tosse. “Tragam água, batam-lhe nas costas!”, pede aos gritos uma das cozinheiras. Ló dá de ombros e bebe mais uma dose dupla.

Os pratos foram enfileirados na grande mesa retangular. Abro a caixa forrada com veludo e retiro os talheres junto com os guardanapos de linho vermelho. “Para a mesa, todos!”, ordena Ló. Minha irmã é a primeira a sentar à cabeceira num claro desafio a quem se atrevesse dizer que aquele lugar não era o seu. Foi ainda a primeira a fazer o prato antes mesmo dos convidados se acomodarem. Ló anda de um lado para o outro da mesa a encher os pratos com o mesmo controle de quando passamos por grande privação de alimentos: éramos proibidos de fazer nosso prato. Passam por suas mãos as travessas fumegantes e perfumadas. Todos repetem duas, três, quatro vezes, até não restar mais nada nas vasilhas. Bode, galinha, porco, bacalhau, feijão, arroz, farofa, saladas… Quarenta minutos e nem mais um grão de arroz sobre a mesa. “Tragam a sobremesa!”, Pede Ló ainda em pé. Levo ao centro da mesa a grande tigela de chouriço, doce preferido de Ló que ela faz questão de preparar com o sangue colhido do porco. Cinco minutos depois não havia nem mais uma colher da sobremesa.“Não deixaram o chouriço de Ló?”, perguntei ao perceber que ela ainda não havia sentado à mesa após servir os convidados. Estes, agora fartos e silenciosos, relaxavam em redes estendidas nos alpendres. Alguns fumam, outros cochilam. Os mais românticos dançam ao som de modinhas sertanejas. Ninguém se preocupa com a sujeira deixada para trás. Os filhos da minha irmã se fecharam no quarto com o celular e o secador de cabelo. Os meus dois vira-latas e as moscas tomaram conta da cozinha. Ló, de semblante fechado, tem o copo de uísque numa das mãos e o cigarro na outra. Está sentada na espreguiçadeira diante da louça suja. Há em seu rosto o tédio resignado do fim. Fuma bebericando a quinta dose dupla de uísque. Por fim, senta-se à mesa para comer os miúdos dos bichos. Divide com as duas velhas que lavam a louça os pés das galinhas e as vísceras do porco. Mal havia levado a primeira porção à boca ouve o grito da filha mais velha: “Meu Deus, o bolo! Tem que ter o bolo dos parabéns!” A cozinha ocupada pelos vira-latas e às velhas que chupam os ossos é invadida outra vez pelas mulheres que têm pressa em mexer, bater, amassar, coar, pois o tempo é curto e o bolo tem que ser servido antes do jantar. Não havia quem fosse à mercearia comprar os ingredientes. “Ló, vá até à venda! Compre farinha, fermento e morangos. Vai ser com recheio de morango.” “E uma vela no meio.” “Sim. Uma vela no meio.” “Os refrigerantes estão na geladeira.” “Uísque também.” “Uísque também.” “Vamos cantar o parabéns às sete.” “Quero a toalha vermelha.” “Sim, Ló.” “Quero muitas fotos no Facebook.” "Sim, Ló, o celular está carregado."

Faltavam alguns minutos para 19 horas quando a aniversariante apareceu na sala vestida de roxo. Eu a penteara e fizera a maquiagem com a intenção de deixá-la mais jovem. Ló tinha os olhos no grande espelho e gostava da própria imagem. A base escondera as rugas e o batom vermelho imprimira volume aos lábios murchos. “Grande dama!”, eu disse sem perceber que minha irmã havia entrado no quarto e observava: "Que coisa mais ridícula! Não adiante enganar. Todos percebem que não passa de uma velha sem vergonha!”, ela disse e se retirou. Ló endureceu na cadeira de frente para o espelho. Abriu enormemente os olhos e soltou uma gargalhada obscena. “Pegue o uísque!”, pediu de dentes serrados. Corri à cozinha e levei até ela a dose dupla do segundo litro. “Mais uma!”, ordenou. “Agora vamos!”, disse aprumando-se nas pernas bambas.“Ló Chegou!” “Viva Ló!” “Apaguem a luz!” Gritam os convidados. A vela é acesa e todos cantam o parabéns. Ló apaga a vela. A lâmpada é acesa outra vez e, sem que ninguém esperasse, meu irmão surge nu, de braços abertos e feliz. Sorrir para Ló. Ela, sem demonstrar surpresa, acolhe em seus braços o filho caçula. “Mamãe…”, “mamãe…”, “mamãe…”, ele repete a palavra jamais dita por mim e a outra filha.

Ana Barros
Natal, novembro de 2019.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Vaga-lumes e vitrais

No museu da cidadezinha de Arês, escondida entre o mar de Tibau e a Lagoa de Guaraíras, me deparei com coleções de garras separadas pelo tamanho, volume e cor. Garrafas cujas cores encheram os meus olhos da alegria infantil encontrada no contato com os materiais mais simples e precários, como são os vidros coloridos à luz do interior de uma igreja. Sim, o museu de Arês é na igreja de estilo barroco São João Batista. Pois bem, por este detalhe, escolher um lugar sagrado para acomodar resíduos profanos, aumentou em mim a sensação de completude, de aniquilamento de   culpa: quis a infância. Desta trazemos a memória de ordem, de disciplina, de cuidado e disposição dos objetos sobre um mundo a impor um ideal de permanência. Ideal este conquistado nem que seja da contemplação de um caco de vidro azul... do vinho (do padre?), da cachaça barata (do cabaré?), do licor (da beata?), do azeite (do bispo glutão?). Não importa ali a origem dos frascos, se divina ou diabólica, e sim o congelamento do tempo. Existir para o colecionador de Arês, tão disciplinado em guardar e arrumar garrafas e garrafinhas secas, possivelmente não consumidas por ele, tinha a ver com tempo e cor. Uma escolha estética em meio ao cotidiano cinza e vulgar das obrigações. Sabido é que de dentro dos frascos escorreram líquidos maravilhosamente iguais à beleza das garrafas. Deleite sensual para aquele, ou aquela, que enganou o tédio com vaga-lumes e vitrais.

Ana Barros






quinta-feira, 2 de maio de 2019

Alfinete da armadilha


                                                                      A Eloisa Araújo*
                       
        
Caminhava na avenida perfurada de gritos de homens maus
quando a chuva lavou os meus cabelos com os dedos finos
de Nanã. A minha mãe é um plano bruto
Além e atrás habita o pântano de onde comanda o fim e o começo
E eu sou o começo. Minha mãe é rizoma e também é morte
À noite vai à casa da velha deusa e torce o pescoço do galo
Tenho comigo o bastão retrátil que ganhei do meu padrasto
Meu pai caminha no gelo e malha ferro
Meu pai, que deita ao meio dia e sonha com ostras e pombos
É dele que guardo deserto e lâmina: Saias escondem facas
Da minha mãe não guardei nem perdi. Sou idêntica e mesma
força a modelar o barro que não endurece. Sou filha do lodo
Armadilha roxa presa no pescoço


Ana Barros
02 de maio de 2019.


*Jovem feminista de 21 anos agredida na Av. Paulista
por três homens eleitores do presidente Jair Bolsonaro.
Sete de abril de 2019