domingo, 2 de fevereiro de 2020

O labirinto de Arthur Flexer


O que dizer ainda sobre Joker (Coringa), de Todd Phillips? Talvez nada. Porém não é demais repetir que o filme é pura alegoria do começo ao fim. Imagem da diversidade num mundo que não consegue encobrir as múltiplas composições de formas e subjetividades. Há no filme elementos capazes de fazer pensar por vários dias nuances imbricadas num enredo paradoxalmente caótico e libertador. Poder e morte de uma sociedade que evidencia a face cruel sem conseguir impedir que o movimento aconteça, que o indivíduo destrua nele próprio o que o fez louco e marginal. Joker não é uma catarse coletiva como muitos querem, mas a ação individual sobre o constrangimento de ser diferente. A evolução circular de Arthur Flexer, revelada mais na fotografia escuro/claro do que no enredo em si, é o que realmente interessa no subtexto do filme, cuja tensão psicológica eleva-se à completa ruptura entre o indivíduo e o social. Uma pupila dilatada, assim é o inconsciente de Arthur Flexer. Nem assassina, nem suicida. Tampouco alienada. Ele aprende a descer com o farol, foca o buraco escuro. Arthur Flexer, não é Coringa, poderia ser um paciente da esquizoanálise de Deleuze e Guattari, filósofos da diferença que ainda dialogam com o século XXI: “É verdade que a filosofia é inseparável de uma cólera contra a época, mas também de uma serenidade que ela nos assegura”, ensina o experiente Deleuze. O caos força a percepção do diferente e, por isso, socialmente invisível. Chega de análises, tarja preta, enganações, discursos de uma falsa política. Arthur Flexer quer dançar no lodo. Aliás, a alegação de ter matado os três investidores da bolsa no metrô foi a de que eles “cantavam mal”, metáfora apropriada para ridicularizar a pobreza moral de uma classe que é incapaz de sonhar. Aqui a doença passou a ser saúde e ele diz triunfante: “O que me faz rir de verdade é pensar que a minha vida era uma tragédia. Mas agora entendi que é uma puta comédia”, refere-se à passagem do buraco escuro à singularidade daquele que juntou dor ao riso. Há no labirinto de Arthur Flexer o desdém à retirada do remédio que controla a sua vontade mais secreta, qual seja a de ser ele mesmo. Na primeira fase do filme, obediente e controlado, o personagem é uma caricatura dolorosa do adestramento psiquiátrico. A fotografia é escura, suja. Arthur Flexer denuncia a corrupção moral de seu tempo: curvado, magro, mal vestido, incompreendido e tido por todos como “estranho”, “doido”, ou seja, inadequado no mundo que o construiu e que o quebrou. A indiferença social fica evidente na cena em que a psicóloga diz que a terapia chegava ao fim. Os programas sociais estavam encerrados. Ele perdia o direito aos remédios, ela, o emprego. Ela, negra e da mesma classe social que ele, representa o profissional indesejado tanto quanto o paciente. Diferente da cena final do filme na qual há uma assistente social conforme as regras. O ambiente já não é sujo nem escuro. A profissional, também negra, mas de aspecto branqueado, finge não fazer parte da classe social de Arthur Flexer. Mas é no ambiente seguro, branco e higienizado do hospital que se dá o clímax da metamorfose daquele que aprendeu dançar no escuro. “Parei de tomar os remédios. Estou bem melhor agora”, ele diz. Ergue a coluna, se veste de cores vibrantes e não sobe mais a longa escada como se caminhasse para a morte. Ele é Ele no sentido cru da palavra. Emancipado, desce a escadaria e encara a realidade que o esmaga. Livre, mesmo que para morrer num hospício, destrói as máscaras com as quais representou até ali. Vem daí pedir para que o apresentador de televisão o chame de “Coringa”, Arthur Flexer também é um farsante. Se ele mata a psicóloga? Isso é tão secundário como achar os personagens de Shakespeare psicopatas sem conhecer o emaranhado sociopolítico-psicológico de suas tragédias. Basta acompanhar a trilha sonora e observar o semblante do homem que reflete o passado e se lança no presente com o cuidado de não mais permitir que pisem os seus sonhos para enxergar derrota e ação, não violência, como partes do jogo. A psicóloga quer saber por que ele sorrir: “Você quer contar para mim?”, ela pergunta sem marcar o semblante com expressão de sentir com o outro. “Você não entenderia...”, ele responde sem o ressentimento com o qual expõe sua angústia à primeira funcionária. Instantes depois, caminha deixando fortes pisadas de sangue no corredor de paredes e piso brancos. Temos pressa em saber: “ele a matou?”. A imagem transborda significados para além de suposições. Ao ouvir Frank Sinatra radicalizar, “algumas pessoas se divertem pisando sonhos/ mas eu não deixo, não deixo isso me abater/ porque esse belo e velho mundo continua a girar”, compreende-se que Arthur Flexer é Zorba e não Coringa. Quem pisa o branco (sistema) e imprime o vermelho ativo da existência singular não é um assassino, mas o artista que diz sim à vida, à vida cuja liberdade ele encontra, só, na subjetividade que triunfa sobre o comum.

Ana Barros
Foto: Domínio do Google




Um comentário:

  1. Que análise profunda e maravilhosa, Ana. O filme é mesmo uma alegoria. E sem o Batman para estragar, ficou ainda melhor.

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