O que dizer
ainda sobre Joker (Coringa), de Todd Phillips? Talvez nada. Porém não é demais
repetir que o filme é pura alegoria do começo ao fim. Imagem da diversidade num
mundo que não consegue encobrir as múltiplas composições de formas e
subjetividades. Há no filme elementos capazes de fazer pensar por vários dias nuances
imbricadas num enredo paradoxalmente caótico e libertador. Poder e morte de uma
sociedade que evidencia a face cruel sem conseguir impedir que o movimento
aconteça, que o indivíduo destrua nele próprio o que o fez louco e marginal.
Joker não é uma catarse coletiva como muitos querem, mas a ação individual sobre
o constrangimento de ser diferente. A evolução circular de Arthur Flexer,
revelada mais na fotografia escuro/claro do que no enredo em si, é o que
realmente interessa no subtexto do filme, cuja tensão psicológica eleva-se à completa
ruptura entre o indivíduo e o social. Uma pupila dilatada, assim é o inconsciente
de Arthur Flexer. Nem assassina, nem suicida. Tampouco alienada. Ele aprende a descer
com o farol, foca o buraco escuro. Arthur Flexer, não é Coringa, poderia ser um paciente da esquizoanálise
de Deleuze e Guattari, filósofos da diferença que ainda dialogam com o século XXI:
“É verdade que a filosofia é inseparável
de uma cólera contra a época, mas também de uma serenidade que ela nos assegura”,
ensina o experiente Deleuze. O caos força a percepção do diferente e, por isso,
socialmente invisível. Chega de análises, tarja preta, enganações, discursos de
uma falsa política. Arthur Flexer quer dançar no lodo. Aliás, a alegação de ter
matado os três investidores da bolsa no metrô foi a de que eles “cantavam mal”, metáfora apropriada para
ridicularizar a pobreza moral de uma classe que é incapaz de sonhar. Aqui a doença passou a ser saúde e ele diz triunfante: “O que me faz rir de verdade é pensar que a
minha vida era uma tragédia. Mas agora entendi que é uma puta comédia”, refere-se
à passagem do buraco escuro à singularidade daquele que juntou dor ao riso. Há
no labirinto de Arthur Flexer o desdém à retirada do remédio que controla a sua
vontade mais secreta, qual seja a de ser ele mesmo. Na primeira fase do filme, obediente
e controlado, o personagem é uma caricatura dolorosa do adestramento
psiquiátrico. A fotografia é escura, suja. Arthur Flexer denuncia a corrupção
moral de seu tempo: curvado, magro, mal vestido, incompreendido e tido por
todos como “estranho”, “doido”, ou seja, inadequado no mundo
que o construiu e que o quebrou. A indiferença social fica evidente na cena em
que a psicóloga diz que a terapia chegava ao fim. Os programas sociais estavam
encerrados. Ele perdia o direito aos remédios, ela, o emprego. Ela, negra e da mesma
classe social que ele, representa o profissional indesejado tanto quanto o paciente.
Diferente da cena final do filme na qual há uma assistente social conforme as
regras. O ambiente já não é sujo nem escuro. A profissional, também negra, mas
de aspecto branqueado, finge não fazer parte da classe social de Arthur Flexer.
Mas é no ambiente seguro, branco e
higienizado do hospital que se dá o clímax da metamorfose daquele que aprendeu dançar no escuro. “Parei de tomar os remédios. Estou bem melhor agora”, ele diz. Ergue
a coluna, se veste de cores vibrantes e não sobe mais a longa escada como se
caminhasse para a morte. Ele é Ele no
sentido cru da palavra. Emancipado, desce a escadaria e encara a realidade que
o esmaga. Livre, mesmo que para morrer num hospício, destrói as máscaras com as
quais representou até ali. Vem daí
pedir para que o apresentador de televisão o chame de “Coringa”, Arthur Flexer também é um farsante. Se ele mata a psicóloga? Isso é tão secundário como achar
os personagens de Shakespeare psicopatas sem conhecer o emaranhado sociopolítico-psicológico
de suas tragédias. Basta acompanhar a trilha sonora e observar o semblante do
homem que reflete o passado e se lança no presente com o cuidado de não mais
permitir que pisem os seus sonhos para enxergar derrota e ação, não violência,
como partes do jogo. A psicóloga quer saber por que ele sorrir: “Você quer contar para mim?”, ela
pergunta sem marcar o semblante com expressão de sentir com o outro. “Você não entenderia...”, ele responde
sem o ressentimento com o qual expõe sua angústia à primeira funcionária. Instantes
depois, caminha deixando fortes pisadas de sangue no corredor de paredes e piso
brancos. Temos pressa em saber: “ele a matou?”.
A imagem transborda significados para além de suposições. Ao ouvir Frank
Sinatra radicalizar, “algumas pessoas se
divertem pisando sonhos/ mas eu não deixo, não deixo isso me abater/ porque
esse belo e velho mundo continua a girar”, compreende-se que Arthur Flexer é Zorba
e não Coringa. Quem pisa o branco (sistema) e imprime o vermelho ativo da
existência singular não é um assassino, mas o artista que diz sim à vida, à vida cuja liberdade ele encontra, só,
na subjetividade que triunfa sobre o comum.
Ana
Barros
Foto: Domínio do Google |
Que análise profunda e maravilhosa, Ana. O filme é mesmo uma alegoria. E sem o Batman para estragar, ficou ainda melhor.
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