Acabo
de deixar a prisão. Três anos atrás das grades por tentar matar uma mulher. Paguei
completa e exemplarmente a pena. Porém, faria tudo outra vez se hoje ainda fosse
um homem divido entre dois cheiros. Pois bem, naquele dia vesti a roupa mais adequada.
Borrifei o perfume economizado para momentos como aquele. Pelo efeito que se
daria adiante, considero que, como sempre fizera, tentava esconder com a
fragrância comprada na loja o meu verdadeiro cheiro. Olhei-me no espelho e
aprovei o conjunto: era um homem bonito. Tinha trabalho e um plano de saúde,
ambos modestos. Tomei o ônibus uma hora antes da consulta. Sofria de ansiedade
e fadiga. Quarenta minutos depois estava de frente ao prédio luxuoso. Os vidros
escuros ofuscaram meus olhos: “como entrar aqui?”, pensei preocupado diante da
imponência da clínica. Demorei alguns minutos procurando a campainha. Desesperado
pelo adiantado da hora bati forte nos vidros. Logo a atendente apareceu. “O
Senhor vai quebrar a porta? Não viu o interfone?” “Vi não, moça... Onde está?”
“Aí, do seu lado”, apontou ela mal humorada. Aquilo era novo e inacessível para
mim, que só conhecia a cigarra estridente
do ônibus. Logo a atendente preencheu a ficha do paciente e me anunciou:
“Miguel Ângelo, sala 03!”. Ao entrar na sala 03 quase perdi o fôlego. Ela era a
cópia de uma das celebridades que via à noite na TV, bela, jovem e, como a apresentadora repete para as mulheres da plateia,
“empoderada”. Não apertou a minha
mão. Pediu que sentasse na cadeira longe dela o suficiente para indicar o seu e o meu lugar, este, compreendido
naquele dia. Ainda assim, deu para sentir o perfume doce e caro que saia dela. Pensei no meu, forte e ordinário. Duas molduras
sobre a mesa justificavam a sua felicidade. Tinha marido e um casal de filhos
adolescentes. Passeavam em lugares que eu só conhecia das revistas que folheava
no banheiro da escola. “Então, o que traz o senhor aqui?”, ela perguntou
empinando o nariz com impaciência. “Sou ansioso e cansado”, eu disse. “Academia
e mudança na alimentação”, disse apertando o botão da impressora. “Em que
trabalha?” “Sou professor.” “Ah...”, ela acrescentou arqueando um dos olhos e o
lábio superior. “Bem, o senhor vai tomar estas vitaminas e matricular-se na
academia. Temos os dois aqui”. “Quanto custa o tratamento completo, doutora?”,
quis saber. “A vitamina, que vem dos Estados Unidos, custa R$ 300. A academia,
R$ 250”, disse entregando-me duas folhas impressas com as taxas do laboratório.
Pensei: “R$ 250 do plano de saúde, mais 300 da vitamina, mais 250 da academia
igual a R$ 800...” “Não tem um tratamento mais em conta, doutora?”, perguntei
angustiado. “Sim, tem!”, ela disse estirando o pescoço e fitando-me com aqueles
olhos arregalados da cor de violeta. “Procure o Posto de Saúde, lá eles têm o
acompanhamento adequado para o senhor.” “Mas eu pago um plano de saúde para não
ir ao Posto de Saúde”, argumentei humilhado. “O senhor sabe quanto eu ganho por
uma consulta deste nível?” “Não!”, respondi. “Pois bem, a partir de hoje
estarei me desligando do seu plano de saúde. Só me traz aborrecimentos e perda
de tempo”, disse chamando a atendente no interfone: “traga o Bom Ar!”. A moça entrou agitada e borrifou
o ambiente. Cheirei ao redor de mim, cheirei as axilas, a camisa... Estaria
fedendo? Porém o pior aconteceu quando a atendente, obedecendo a um gesto sutil
da mão da médica, desinfetou os meus pés. Foi aí que, cego de ódio, pulei sobre
aquele pescoço arrogante e apertei-o até ela defecar. “Pronto, doutora, agora
sim esse é o seu verdadeiro cheiro!” A polícia apareceu de repente e me levou
algemado.
Há
quanto tempo não pegava o ônibus. Sentei no banco ao lado da moça com uniforme.
Era ela, a atendente. Devido estar de olhos fechados não me reconhecera. Porém
fungou três vezes dando sinal de que alguém fedia. Eu havia ocupado o último
assento disponível naquele ônibus lotado, ali, perto dela. Mais de uma hora
levaria para chegar ao meu destino. Ah, a atendente morava no mesmo bairro que
eu. Pois bem, a moça estava tão cansada que adormeceu deixando pender a cabeça
sobre o meu ombro. Observei que ela tinha os sapatos gastos e Cheirava a Bom Ar. Os cabelos, roçando o meu nariz,
constrangiam com dois dedos de fios brancos e pixains crescidos na raiz. A
minha parada era a próxima. Tomei os cuidados necessários para não acordá-la e
aconcheguei sua cabeça no casaco que trouxera do cárcere.
Ana
Barros
Natal,
19 de fevereiro de 2020.
Pobreza e mal estar social não resolve com "Bom Ar" e nem esfregando muito com água sanitária. É pra importunar mesmo!
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